Este artigo foi publicado no WSWS, originalmente em inglês,
no dia 3 de janeiro de 2007.
O esforço da elite política de Washington e seus
serviçais da imprensa burguesa em gerar uma onda de sentimento
patriótico com o funeral de Gerald Ford foi em vão.
O enforcamento de Saddam Hussein e a funesta notícia da
morte de mais de 3.000 soldados norte-americanos no Iraque ganhou
a cena.
O homem de 93 anos de idade, que foi presidente não
eleito do país há 30 anos - permanecendo menos de
29 meses no cargo - é desconhecido da maioria da população
estadunidense atualmente. Sua morte não foi capaz de servir
como um impulso ao sentimento nacionalista, tão desgastado
diante das amargas e duras notícias do fiasco no Iraque.
A verdade é que Ford - que permitiu que sua oposição
pessoal ao início da guerra do Iraque e às políticas
de extrema direita do partido republicano se tornasse pública
apenas depois de sua morte - tem mais do que uma leve conexão
com a atual catástrofe criminosa levada a cabo pelo governo
Bush.
Se há algo pelo qual Ford pode ser lembrado é
a sua decisão, um mês depois de assumir o cargo,
de perdoar o seu antecessor, Richard Nixon, por todas as
ofensas contra os Estados Unidos que ele... cometeu ou possa ter
cometido ou tomado parte durante seus mais de cinco anos
e meio na Casa Branca.
(O serviço prestado por Ford na Comissão Warren
é pouco lembrado, mas é, no entanto, altamente significativo,
se quisermos entender o papel desempenhado por ele na política
norte-americana. Nesta comissão ele se tornou um dos mais
veemente defensores da teoria do homem de uma bala só,
uma tese desenvolvida para encobrir as divisões políticas
e conspirações que estavam por trás do assassinato
de Kennedy).
O perdão concedido por Ford a Nixon, publicado em 8
de setembro de 1974, evitou que este fosse condenado pelos inúmeros
crimes que vinham sendo denunciados por meio de pedidos de impeachment
endereçados a ele, em julho de 1974. Nixon foi acusado
de obstrução da justiça, de espionagem ilegal
de cidadãos norte-americanos e de uso de poderes extra-constitucionais,
que transformaram o presidencial num completo ditador.
Outra acusação levantada - embora não
aprovada pelo Comitê de Justiça - foi a da existência
de uma campanha secreta e ilegal de bombardeio ao Camboja, em
1969, um ato que ignorava a prerrogativa constitucional que dava
somente ao Congresso o poder de declarar guerra.
Atualmente os crimes de Nixon e seus comparsas reaparecem de
forma muito mais ameaçadora, por meio da guerra ilegal
no Iraque, de inúmeras vendas de grampos telefônicos
NSA, de prisões ilegais, de torturas e de rendições
extraordinárias daqueles que são considerados,
por alguma razão, combatentes inimigos, etc. Além
disso, a realização destes crimes só têm
sido possível por meio da ação de pessoas
que eram intimamente ligadas à Ford - em particular seus
dois antigos chefes da equipe de apoio, Dick Cheney e Donald Rumsfeld.
Usar o histórico destes políticos para promover
um sentimento de orgulho nacional entre a população
não é um trabalho fácil.
Mas, mesmo assim, os órgãos da grande imprensa
se esforçaram para tal: eles homenagearam Ford como sendo
o político republicano vitalício, como a personificação
da decência e franqueza, o Grande
Curandeiro, quem acabou com o longo pesadelo
dos últimos dias do governo Nixon.
Certamente, um dos artigos mais repugnantes produzidos pela
imprensa para santificar o 38° presidente norte-americano
- e efetivamente falsear a história - foi publicado no
dia do funeral pelo Washington Post, sob o título
O Valor de seu Perdão.
Escrito pelo editor da Newsweek, Jon Meacham, o artigo
considerou o perdão de Ford à Nixon - que foi na
verdade uma violação corrupta da justiça
e o acobertamento de um crime de Estado - uma tarefa divina e
uma caridade cristã.
Meacham enaltece o fato de que ao perdoar um homem indiscutivelmente
culpado de graves crimes, Ford invocou as leis de Deus,
alegando que estas estavam acima da Constituição
dos Estados Unidos.
Inacreditavelmente, ele justifica a proteção
ilegal de um político aliado que realizou um enorme ataque
aos direitos democráticos e ao governo constitucional,
por meio de uma declaração vulgar de divindade -
o que não é propriamente uma novidade entre os políticos
ligados ao grande capital - citando a referência feita por
Lincoln a Deus, no seu segundo discurso de posse.
Em particular, Meacham cita a passagem na qual Ford parafraseia
o juramento de Lincoln, para continuar com afinco na certeza
de que Deus age para que façamos o que é correto,
uma frase usada por Lincoln para justificar a continuidade da
guerra civil com o objetivo de abolir a escravidão. Lincoln
defendeu que todas as gotas de sangue derramadas pelo chicote
fossem pagas por outro golpe da espada. É difícil
imaginar uma comparação mais inapropriada.
Na semana de luto oficial, o corpo do ex-presidente foi transportado
da Califórnia, a fim de ser levado em carreata em Washington,
e depois ser velado na sede do parlamento norte-americano durante
três dias, antes de ser trazido para o funeral público
na terça-feira (02/01). Ele foi enterrado em Michigan.
Durante todo o tempo, a imprensa deu ampla cobertura às
várias homenagens que lembravam as realizações
do ex-presidente.
Há algo de retrógrado e de bárbaro nestes
funerais oficiais. Se abstrairmos as pompas oficiais, não
sobra nada do suposto luto nacional pela morte de Ford.
Funerais compatíveis aos dos Reis
A pompa que envolve estas cerimônias assemelha-se às
dinastias monárquicas, completamente estranhas a uma genuína
democracia. Os fundadores da república norte-americana
provavelmente se escandalizariam com tais atitudes.
George Washington, que morreu em 14 de dezembro de 1799, foi
enterrado no dia seguinte no túmulo da família,
em Mont Vernon, na Virgínia. Embora ele tenha pedido um
funeral simples, o Congresso insistiu em enviar tropas e uma banda
militar.
John Adams e Thomas Jefferson, ambos falecidos em 4 de Julho
de 1826 - o 50° aniversário da declaração
da independência - foram enterrados com simplicidade, um
deles em Quincy, Massachussetts, e o outro no cemitério
da família, em Monticello, Virginia.
Da mesma forma, James Madison, que morreu em 1836, foi enterrado
no dia seguinte em Montpelier, Virginia.
Os funerais públicos eram exceções, realizadas
somente para aqueles que morriam - ou eram assassinados - a serviço
do Estado, como aqueles de William Henry Harrison, em 1841, de
Abraham Lincoln, em 1865, de James Garfield, em 1881, de William
McKinley, em 1901 e de Kennedy, em 1963. William Howard Taft,
que morreu algumas semanas depois de se tornar chefe de justiça
da Corte Suprema, em 1930 - o único ex-presidente a ocupar
tal posição - também teve um funeral realizado
com honras semelhantes.
A preparação de cerimônias elaboradas para
ex-presidentes, repletas de ornamentos militares e com permanência
em local público, é um fenômeno relativamente
moderno, que surgiu na década de 1960, com Herbert Hoover,
seguido dos funerais de Dwight Eisenhower, Lyndon Johnson e Ronald
Reagan. É uma prática ligada ao aumento do poder
do presidente, que se assemelha a um poder imperial.
As pompas oficiais concedidas a Gerald Ford alcançaram
seu ápice na terça-feira (02/01), com o funeral
público na Catedral Nacional de Washington, antes de uma
recepção - restrita a convidados - com cerca de
3.000 pessoas. Os discursos se referiram mais aqueles que atualmente
mandam em Washington do que àquele que ocupou a Casa Branca
há 30 anos.
O antigo presidente George H. W. Bush elogiou Ford como o homem
que reinstaurou a honra do Salão Oval e ajudou a
América a superar um dos nossos mais tristes capítulos.
Ele continuou: a história tem seus meios de encontrar
o homem para cada momento. Assim como a teimosa devoção
do Presidente Lincoln a nossa Constituição manteve
a união durante a guerra civil, assim como o otimismo da
FDR foi o antídoto ao desespero de uma grande depressão,
assim, também, nós podemos dizer que a decência
de Jarry Ford foi o remédio ideal para a decepção
de Watergate.
Se, de fato, a história encontra o homem para cada momento,
pode-se dizer que a política levada a cabo por Bush pai
foi responsável pelo aprofundamento da degeneração
da elite governante norte-americana. Mais uma vez compara-se de
maneira absurda Lincoln a Ford. O primeiro foi o líder
de uma das maiores transformações revolucionárias
na história. O segundo foi o representante de uma época
abalada por crises e escândalos, ansioso por escapar das
mãos de um povo furioso e radicalizado.
Depois foi a vez de Henry Kissinger falar. Ele foi um dos beneficiários
diretos do perdão de Ford a qualquer processo judicial
relacionado aos crimes realizados durante o governo Nixon. Como
secretário de estado de ambos os governos, ele representava
uma figura chave na continuidade daqueles crimes. Kissinger permanece
até hoje como um importante conselheiro do governo Bush,
ajudando a elaborar a política de agressão colonial
no Iraque.
Seu elogio representou uma série de mentiras que serviam
para ele próprio. Ele elogiou a prudência e
o bom senso de Ford para manter conflitos étnicos
em Chipre e no Líbano como conflitos regionais.
No primeiro país, Kissinger desempenhou o papel de pivô
no estímulo à invasão turca, que custou milhares
de vidas. No segundo, o governo dos EUA serviu como patrocinador
da falange libanesa fascista, mantendo uma colaboração
direta da CIA ao massacre dos palestinos e da esquerda libanesa.
Kissinger continuou seu discurso declarando que Ford teve
a iniciativa de dar a liberdade à grande parte da região
sul da África, uma política que foi determinante
para acabar com o colonialismo naquela região.
Ao ousar dizer tais mentiras, Kissinger deve considerar que
todos ignoram a história. Sob o governo Ford, Washington
se aliou à África do Sul, fornecendo ajuda da CIA
à sangrenta guerra em Angola que aniquilou milhares de
vidas, e continuou a sustentar o regime de Apartheid com a inauguração
da vergonhosa política de Bantustan (áreas povoadas
por negros sul-africanos com certa autonomia política).
Kissinger concluiu: historiadores debaterão durante
muito tempo sobre qual presidente contribuiu mais para a vitória
na Guerra Fria. Poucos perceberão que os EUA poderiam ter
perdido a Guerra Fria se Gerald Ford não tivesse surgido
num período trágico da história de nosso
país para restaurar o equilíbrio e a confiança
do papel desempenhado pela América no âmbito internacional.
O que ele não falou foi que parte desta vitória
na Guerra Fria foi conquistada por meio da brutal repressão,
que continuou se espalhando durante o governo Ford por toda a
América Latina, estimulada pelo contínuo apoio norte-americano
fornecido pela CIA - instaurando ditaduras que submeteram a maior
parte do continente, assassinando, torturando e prendendo centenas
de milhares de pessoas. Da mesma forma, foi o governo Ford que
deu a luz verde para a Indonésia invadir o Timor Leste,
uma operação militar que custou a vida de um terço
da população timorense.
O ponto fundamental desenvolvido pelo ex-secretário
de estado, entretanto, foi que a contínua ação
do imperialismo no exterior teria sido impossível sem o
controle da crise política e da oposição
popular massiva no seu próprio país.
Kissinger foi seguido pelo ex-âncora do NBC News,
Tom Brokaw. Seu discurso serviu para demonstrar a corrupção
e subserviência da grande imprensa ao Estado norte-americano.
Relembrando a época em que cobria o governo Ford, ele disse:
cobrir as notícias da Casa Branca trazia para nós
algumas vantagens. Nós fomos para Vail no natal e Palm
Springs na páscoa com as nossas famílias. Agora,
os cínicos estão argumentando que eles contribuíram
para a nossa afeição por Ford. Isso eu não
vou nem discutir.
A consideração arrancou risadas dos presentes,
que sabiam que personalidades da imprensa como Brokaw,
ganhando salários anuais multimilionários, têm
agora suas próprias casas em Vail, em Palm Springs ou em
termas semelhantes, cujo acesso é exclusivo às elites.
Eles sabem também que todos podem contar com tais personalidades
para fazer propaganda.
Finalmente, o presidente George W. Bush fez seu pronunciamento,
descrevendo Ford como uma rocha de estabilidade dentre
um período terrível da história da
nossa nação.
O atual presidente foi direto ao ponto, declarando que quando
Ford pensou que a nação precisava deixar Watergate
para trás, ele refletiu e tomou a decente decisão
de perdoar o Presidente Nixon, ainda que esta decisão provavelmente
tenha lhe custado a eleição presidencial.
Em outras palavras, Ford realizou o trabalho para o qual ele
foi designado, mesmo que este trabalho fosse o ataque às
formas constitucionais de governo, o que lhe custou a hostilidade
da maioria da população norte-americana.
Bush concluiu que o período do presidente Ford
no governo foi breve, mas a história não se esquecerá
da coragem e do bom senso que ajudou a restaurar a confiança
dos trabalhadores na nossa democracia.
Sem dúvida, o 43° presidente dos EUA, enfrentando
índices extremamente baixos nas pesquisas de opinião,
sendo responsável por uma brutal violação
das leis nacionais e internacionais - de espionagem interna em
Guantánamo, em Abu Ghraib e na própria guerra do
Iraque - considera Ford como mais do que um inspirador.
Ao final, entretanto, a história dará a Ford
o seu legítimo lugar: o lugar de um político corrupto,
fiel servidor do capital norte-americano, que ajudou a controlar
uma crise política profunda e potencialmente fatal, adiando
desse modo a possibilidade da abertura de um processo revolucionário.