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Arte e Liberdade

André Breton e os problemas da cultura no século XX

Em junho e julho de 1938, Leon Trotsky, revolucionário russo exilado, e o francês André Breton, poeta e pensador surrealista, colaboraram no México com a escrita do extraordinário “Manifesto por uma arte revolucionária independente”. Esta declaração permanece sendo a expressão mais eloqüente já produzida da comunhão de interesses do artista e do revolucionário marxista.

A declaração começa: “Pode-se dizer, sem exagero, que nunca a civilização humana esteve ameaçada por tantos perigos como agora”. Os autores notam a “violação cada vez mais generalizada das leis que governam a criação intelectual, particularmente na Alemanha nazista e na Rússia stalinista”. Se rejeitamos qualquer solidariedade com a casta atualmente dirigente na URSS, é precisamente porque no nosso entender ela não representa o comunismo, mas é o seu inimigo mais pérfido e mais perigoso”, coloca o manifesto.

“A revolução comunista”, continua o manifesto, “não teme a arte. Ela aprendeu, ao estudar o desenvolvimento das artes na sociedade capitalista em colapso, que o impulso criativo só pode ser resultado do choque entre o indivíduo e as formas sociais que lhe são adversas. “A declaração conclui: O que queremos: a independência da arte—para a revolução; a revolução—para a liberação definitiva da arte.” [1]

O fato de terem sido essas duas personalidades, Trotsky e Breton, que em 1938 escreveram o manifesto, não pode ser considerado um mero acaso. Nenhum indivíduo na história tinha tido uma concepção mais ampla e profunda da transformação socialista da sociedade do que Leon Trotsky, a personificação viva das tradições do bolchevismo. Por isso mesmo que os atuais disseminadores oficiais de informação hoje universalmente excluem seu nome ou falsificam o seu papel de liderança nos eventos.

Breton também não se deu muito melhor. Na França, ele é ignorado ou no máximo tratado como “pré-histórico” por intelectuais contemporâneos; na América do Norte, onde a maior parte de seu trabalho ainda não tinha sido traduzida até recentemente, ele é taxado pelos círculos acadêmicos e literários como um líder despótico de um grupo de vanguarda.

É preciso trazer André Breton de volta à vida. Com o centenário de seu nascimento, o escritor surrealista começou a ser relembrado, e agora temos à nossa disposição uma nova biografia completa, o livro Revolution of the Mind: The Life of André Breton (New York: Farrar, Straus & Giroux, 1995) de Mark Polizzotti. Ainda mais vital para essa reconsideração do artista francês é a enxurrada de traduções de trabalhos de Breton que apareceram na última década (muitos deles vindos da gráfica da universidade de Nebraska): The Communicating Vessels, Arcanum 17, The Immaculate Conception, Mad Love, Earthlight, Lost Steps, Free Rein e Conversations: The Autobiography of Surrealism.

Elas nos dão a oportunidade de lançar um novo olhar sobre Breton—é como se um novo grande escritor subitamente surgisse em cena, alguém enormemente e gloriosamente descompassado com a moda intelectual corrente; cada linha de Breton é repleta do comprometimento apaixonado que os cínicos frios e irônicos do pós-modernismo abominam.

Uma avaliação crítica

O propósito desse artigo é o de reviver o interesse nos textos e pensamentos de Breton, “para impulsionar a tendência de esquecimento na qual ele foi que absorvido” (como disse o artista certa vez, referindo-se ao socialista utópico Charles Fourier).[2] Os marxistas, é claro, não precisam resguardar ninguém de suas críticas, nem mesmo as lideranças de seu próprio movimento. Ao analisar Breton como uma figura intelectual e literária de destaque, acabamos assumindo diversas das grandes contradições do século XX.

De um ponto de partida objetivo, o período mais produtivo de Breton se estendeu de meados da década de 20 até meados da década de 40. No fim das contas, ele foi incapaz de escapar do destino reservado a quase todos os intelectuais que se aproximaram da Revolução de Outubro e que repudiavam a burocracia stalinista. O estrangulamento das revoluções de 1936-8 na Espanha e na França (nesta última, Breton teve um importante papel), os julgamentos de Moscou, a morte de Trotsky em 1940, a 2ª Guerra imperialista e o novo equilíbrio que a sucedeu, o aparente fortalecimento do estalinismo, as dificuldades da IV Internacional—tudo acabou pesando em suas reservas intelectuais.

(Vale notar que o manifesto de 1938 lançou a International Federation of Independent Revolutionary Art (IFIRA). Nela, Breton conseguiu reunir alguns de seus colegas surrealistas como o poeta Benjamin Péret, os pintores Yves Tanguy e André Masson; Victor Serge, Marcel Martinet, Ignazio Silone, Herbert Read [que, por sua vez, solicitou o apoio de George Orwell] e outros. Apesar disso, a seção francesa da IFIRA cessou as suas operações depois da publicação de dois números do jornal Clé (Chave), em janeiro e fevereiro de 1939. As diferenças internas tiveram um papel importante para a falência da IFIRA, mas o maior problema era o ambiente político, extremamente difícil: havia a influência do aparato stalinista na intelligentsia, a condição desmoralizada de muitos dos que não eram manipulados por esse aparato, e, é claro, a explosão da guerra na Europa. Em sua última carta para Trotsky, em junho de 1939, Breton escreveu: “Talvez eu não seja muito talentoso como organizador, mas ao mesmo tempo parece que lutei contra obstáculos imensos” [3]. O elemento trágico desse depoimento não pode ser ignorado).

No começo dos anos 50, Breton rejeitou formalmente o marxismo em favor do protesto esquerdista: o anarquismo (cujo papel traidor na Revolução Espanhola foi denunciado no próprio manifesto de 1938) e o socialismo utópico (através do trabalho de Fourier). O artista não foi o primeiro intelectual que, em um clima de recuo político e estagnação, repentinamente lembrou que os bolcheviques tinham sido responsáveis por conduzir a “brutal supressão do levante de Cronstadt em março de 1921”.[4] É difícil não perceber que o trabalho crítico e poético de Breton decaiu, tanto em qualidade quanto em quantidade, nos últimos 20 anos da sua vida, como uma conseqüência das condições gerais desanimadoras dentro das quais ele trabalhou.

A atitude de Breton em relação às tendências artísticas “concorrentes” é outra complicação trazida à tona por sua vida e obra. O filósofo alemão Hegel sustentava que o espírito absolutista tinha tido sua maior expressão no estado e na monarquia prussiana. De um modo similar, Breton tendia a ver o surrealismo como o ponto culminante em toda a história dos esforços intelectuais e artísticos. Ninguém é obrigado a aceitar sua visão ou a de sua seita de admiradores acríticos, mas não há dúvida de que as condições difíceis dos anos 30 e 40 ajudaram a solidificar a sua insistência doutrinária de que só o surrealismo expressava progresso artístico, e de que apenas o seu panteão de heróis artísticos tinham expressado tal progresso no passado.

Em outras palavras, quem se confronta com Breton é obrigado a fazer uma boa seleção, para encontrar, então, verdadeiras pedras preciosas.

Revolução apenas da mente?

A nova biografia de Polizzotti é uma consideração cuidadosa da vida e da obra de Breton, mas tem as suas limitações. O título, Revolution of the Mind (Revolução da Mente), faz Breton parecer mais idealista do que ele de fato era. De 1925 em diante o eixo fundamental de sua atividade era a construção de ligações entre a “revolução da mente” e a “revolução da realidade social”. Para Breton, as duas chaves do surrealismo eram a injunção de Marx de transformar o mundo e a de Rimbaud de transformar a vida.[5]

Apesar de Polizzotti ser um biógrafo inteligente, o seu livro aparentemente não traz nenhuma estrutura teórica nem um comprometimento intelectual que sustente seu modo de tratar Breton. Uma imagem distorcida pode surgir: um exemplo disso está no fato de que, no seu trabalho, as relações pessoais são colocadas em primeiro plano em detrimento de desenvolvimentos históricos, artísticos e políticos, distorcendo ou obscurecendo alguns dos fatos relatados.

Apesar de tudo, para aqueles capazes de preencher as lacunas ou ler nas entrelinhas, esta biografia, lucidamente escrita e bem documentada, abre uma janela de uma das grandes vidas do século XX. É uma vida de sofrida relevância, uma vida significativa para os nossos dias, porque Breton se dedicou a uma batalha que ainda precisa ser travada, unindo a vanguarda da arte e a vanguarda da revolução socialista.

Esta “relevância” tem um caráter contraditório. Para muitos ela pode não ser auto-evidente. Em grande medida ela existe na forma de uma crítica destrutiva da vida intelectual contemporânea; ela destaca o que é preponderantemente ausente. Muitas das atitudes e visões, por exemplo, que Breton e seus camaradas tomaram por certas—um genuíno não-conformismo, um desdém pelo patriotismo e pelo nacionalismo, um ódio pelas restrições morais da sociedade burguesa—são muito raras hoje. Vejamos, por exemplo,uma declaração dos surrealistas de 1925, em reação à incursão imperialista da França no Marrocos:

“Até mais do que o patriotismo—que é um tipo bem comum de histeria, embora mais vazio e mais efêmero—nós ficamos enojados com a idéia de pertencer a um país, a qualquer país, que é o mais bestial e menos filosófico dos conceitos aos quais estamos sujeitados... Em todo lugar onde a civilização ocidental é dominante, todo contato humano desapareceu, exceto o contato que gera grana—pago em dinheiro vivo”[6]

É claro que nos anos 20 e 30 os surrealistas estavam longe de ser os únicos da intelligentsia européia que se opunham ao capitalismo e à guerra, mas se apreciarmos com propriedade o valor de Breton, podemos compreender o que separava ele e os surrealistas do restante da intelligentsia. Para Breton não era só uma questão de “simpatizar” com a revolução socialista, como era o caso de muitos intelectuais do período. Este tipo de atitude, independente de quão sincera, implicava numa aceitação subentendida da divisão entre arte e vida, entre o mundo interior da fantasia e da imaginação e do mundo exterior da realidade cotidiana; assim, essas simpatias políticas, mesmo quando encontravam expressão artística direta, tinham pouca influência em como se sentia (ou vivia) a vida.

O que foi o surrealismo?

Maurice Nadeau, em sua história do movimento, escreveu: “O surrealismo (...) está profundamente incrustado no período do entre-guerras. Afirmar, como fazem muitos, de que o que acontecia na arte era apenas manifestação do período seria um materialismo supersimplificado: o surrealismo também é herdeiro e difusor de movimentos artísticos que o precederam e sem os quais ele não teria existido”. [7]

Enquanto fenômeno sociológico, o surrealismo, cujo primeiro manifesto (escrito por Breton) apareceu em 1924, sem dúvida tinha como elemento a repulsa que muitos jovens sentiam pelos massacres da 1ª Guerra e pela sociedade que a produziu. Os surrealistas levaram isso mais além, em uma rejeição do que era percebido como o viés dominante da sociedade francesa—o “racional-positivismo” -, fascinando-se com os estados oníricos e do inconsciente. Nas palavras de Nadeau: “A razão, a todo-poderosa razão, é denunciada... A realidade está, por vezes, por trás do que nós vemos, ouvimos, tocamos, cheiramos, experimentamos. Existem forças desconhecidas que nos controlam, mas sobre as quais nós queremos atuar. Nós só precisamos descobrir o que elas são” [8]. Os surrealistas se voltaram, por um lado, ao trabalho de Freud, e, por outro, “retornaram” a Hegel e ao idealismo alemão.

A preocupação com Hegel pode parecer peculiar sob a luz da hostilidade professada pelos surrealistas à lógica. Um comentador de esquerda notou que Breton e seus colegas “eram apaixonadamente devotos a Hegel, em cuja dialética cruel eles encontraram uma arma admirável”.[9] Isto é um pouco fácil demais, confundindo o Breton de 1922 ou 24 com o homem de 12 anos depois. Pode ser que Breton tenha sido levado a Hegel por razões um distintas em cada um dos diferentes pontos de seu desenvolvimento intelectual.

Aparte do desejo de provocar loucamente a França anti-alemã do fim da 1ª Guerra Mundial, demonstrando uma ostensiva estima em relação à filosofia e a poesia alemãs, Breton parece ter sido tão atraído pelo idealismo hegeliano e pela noção do poder ilimitado do pensamento e do sujeito pensante, quanto pela sua dialética.

Na rejeição surrealista ao positivismo e ao empirismo, combinado com o interesse em Hegel, pode-se encontrar um eco da revisão leninista da Lógica de Hegel, de 1915. Sem dúvida a falência do pensar “objetivista”, diretamente relacionado com o crescimento relativamente pacífico do capitalismo de 1871 a 1914, tornou-se clara para pensadores de muitos matizes. O ponto de vista adotado e as conclusões tiradas, no entanto, variaram de acordo com as perspectivas e as condições de classe dos indivíduos e grupos em questão.

Pode-se dizer que, em última instância, a predisposição dos surrealistas à dialética de Hegel facilitou seu movimento subseqüente geral em direção ao marxismo. Eles cumpriram um valioso papel na promoção dos estudos dos Manuscritos filosóficos de Lênin: na verdade, os primeiros trechos dos manuscritos traduzidos para o francês apareceram nas suas publicações de 1933.

Como um movimento artístico, em contraste com o dadaísmo do qual ele emergiu e que descartava as criações do passado, o surrealismo insistiu na importância da tradição. Ele se colocou como seguidor do trabalho de um número de indivíduos e tendências—em particular um seleto grupo de românticos franceses e alemães menos conhecidos e, acima de tudo, Lautréamont (Isidore Ducasse, autor dos Chants de Maldoror), do poeta Arthur Rimbaud e do dramaturgo de humor negro Alfred Jarry.

No primeiro Manifesto de Surrealismo (1924), Breton declarou que o novo princípio determinador do movimento era o “automatismo psíquico”, que queria dizer a liberação do pensamento de “qualquer controle exercido pela razão, isento de qualquer preocupação moral ou estética”. O surrealismo “é baseado na crença na realidade superior de certas formas de associação previamente negligenciadas, na onipotência do sonho, no jogo desinteressado do pensamento.” E mais adiante: “acredito na futura resolução desses dois estados, sonho e realidade, que aparentemente são tão contraditórios, em um tipo de realidade absoluta, uma surrealidade [sur = “sobre”, “acima” em francês]” [10]

Qual é a fonte desse irracionalismo extremo—aparte do saudável, insolente desejo de chocar a opinião pública da classe média? Do ponto de vista do desenvolvimento histórico, isso sem dúvida expressou a posição de camadas sociais cuja confiança na estabilidade da ordem existente e cuja percepção de satisfação foi profundamente chacoalhada pela calamitosa guerra mundial e suas conseqüências políticas, incluindo a Revolução Russa.

Uma variedade de tendências que apareceram nesses anos celebravam o não-convencional ou o irracional. Alguns exaltavam “o futuro” ou “a máquina” como coisas em si mesmas; outros, os mais depravados, denegriam o esclarecimento e a “decadente” democracia ocidental e veneravam “sangue” e “raça”, ajudando a construir os pilares ideológicos dos futuros movimentos fascistas. Na esfera das concepções sociais, o dadaísmo e o surrealismo não tinham nada em comum com essas tendências, mas o seu surgimento comum demonstra a crise da vida intelectual.

Também podemos perguntar: de onde vinha o apelo desta anti-razão para Breton, um intelectual que, como indivíduo, tinha servido no exército francês durante a selvageria da guerra? Talvez possamos ver, nessa maneira peculiar de devoção ao espontâneo e em sua preocupação com os estados oníricos, um ato de compensação exagerada; um ato furioso, vindo de um jovem de classe média, rigorosamente educado, que rejeitava (mesmo não entendendo-a plenamente) uma ordem social oficialmente dedicada à razão e à lógica. Na fúria dessa rejeição a distinção entre a “razão” como a ideologia da classe dominante francesa e a razão como seu potencial antídoto revolucionário pode se perder de vista.

Para atingir seus objetivos declarados de juntar sonho e realidade, os surrealistas desenvolveram várias técnicas como escrita automática, jogos e experimentos com hipnose, sessões espíritas e estados de transe; acaso e espontaneidade eram valorizados como um meio de acessar as profundezas do inconsciente mental.

Essas excursões, independente de quão freqüente Breton e outros solenemente rejeitassem a existência do sobrenatural, levou por vezes o grupo surrealista ao pântano do espiritualismo. De acordo com Nadeau, por exemplo, em “uma hosana em honra ao Leste”, consistia quase toda a 3ª edição da La Révolution Surrealiste, editada por Antonin Artaud na primavera de 1925. Artaud, Robert Desnos e outros tinham descoberto um “novo tipo de misticismo” associado com “O misterioso Leste de Buda e de Dalai Lama”. [11] Nesse ponto Breton reassumiu o controle editorial do periódico e logo depois desenvolveu uma orientação em direção ao marxismo e ao Partido Comunista.

No primeiro manifesto, Breton tinha ido tão longe em sua paixão pelos sonhos e pelo sonhar que chegou a sugerir que o estado desperto era “um fenômeno de interferência.” [12] Sua visão se alterou, por um tempo pelo menos, assim que fez um sério esforço de reconciliação com as concepções marxistas de meados dos anos 20 em diante. Em uma palestra dada na Bélgica em 1934, Breton notou que em 1925 “a atividade surrealista... entrou em sua fase pensante. Ela subitamente experimentou a necessidade de atravessar o vácuo que separa o idealismo absoluto do materialismo dialético.” [13] Em um de seus melhores ensaios, “Fronteiras não-nacionais do Surrealismo” (1937), Breton proclamou a primeira de “um conjunto fundamental e indivisível de proposições”: “a adesão a todos os princípios do materialismo dialético endossados em sua plenitude pelo surrealismo: a supremacia da matéria sobre o pensamento....” [14]

Seria justo dizer que sempre teve algo de temporário sobre esta “adesão” e que Breton achava a dialética muito mais convincente do que o materialismo. Ele aparentemente manteve a visão, compartilhada por muitos intelectuais de esquerda daquele século, de que Materialismo e Empiriocriticismo de Lênin era um trabalho particularmente vulgar e simplista.

A obsessão de Breton com o não-racional era no mínimo parcial e no máximo uma descida sem valor ao idealismo aberto. (Em seus últimos anos, o interesse de Breton pelo oculto se tornou uma séria preocupação. Trotsky, em suas conversas de 1938, sugeriu que Breton estava tentando “manter uma pequena janela para o além”. [15] Apenas onze anos depois de seu firme endosso ao materialismo, de fato, ele podia escrever que sua oposição ao idealismo era “puramente formal”. [16]).

O desejo inteiramente legítimo de compreender os fundamentos de uma determinada tendência artística precisa ser balanceado com o reconhecimento de que sua significância última é determinada pela sua contribuição à verdade artística. A confusão nunca é uma virtude, mas sua presença pode ser evidencia de um rompimento com a inércia intelectual e a rotina, e no caso dos surrealistas, ela era sintomática de um tremendo fermento criativo. Emergiu no surrealismo uma perspectiva que afetou o curso da arte ocidental e, até, em certos aspectos, apontava o modo como a cultura poderia ser em uma sociedade genuinamente humana, sem classes. É este o elemento revolucionário que precisa ser recuperado e assimilado.

A vida artística na França

Para compreender o surrealismo, é importante colocá-lo em seu contexto artístico, assim como em seu contexto histórico. Mark Polizzotti fornece uma lista de dúzias de movimentos artísticos na França (simbolismo, naturalismo, parnasianismo, cientificismo, etc.) que precederam o surrealismo nas últimas décadas do século XIV e nas primeiras décadas do século XX. [17]

Seria equivocado ver nessa proliferação de “ismos” artísticos um sinal da vitalidade da cultura burguesa: ao contrário, muitos desses movimentos eram febris e abortivos, logo desaparecendo na obscuridade. Mas olhando para eles de novo agora, o que parece ser mais fulminante sobre esse período é ver como as pessoas tratavam seriamente a arte.

É claro que o egoísmo e o subjetivismo representaram um grande papel em tudo isso, mas é notável quão avidamente o pessoal procurava se tornar impessoal (ou, talvez, mais precisamente, superpessoal), como se a força abrupta da visão artística de um indivíduo não pudesse ser contida em um homem só. Isto é o que parece estar tão distante da sensibilidade cultural prevalecente no fim do século XX. A suposição comum do nosso período é a impotência da arte e do artista: já que a arte não pode realmente mudar nada, já que a mudança—em qualquer sentido fundamental—parece impossível, qual sentido existiria no agrupamento de artistas? No lugar de movimentos baseados em idéias artísticas e objetivos comuns, abundam pequenos grupos fechados e exclusivos de supostos “artistas”.

Outro modo possível de definir o surrealismo, então, seria descrevendo-o como a mais alta e mais extrema expressão da crença no poder da arte. Mas, no limite, a arte não pode mais ser o que muitos de nós pensávamos que ela fosse, isto é, a produção de artefatos, de belas imagens em palavras, pintura, filme, etc. Os surrealistas eram hostis à arte convencional e às profissões que intencionavam fazê-la. Como Polizzotti explica, “era a pura vaidade do empreendimento literário que os revoltava, a inutilidade de escrever mais um romance, de publicar mais uma coleção de poemas, e, no final, não ter feito nada além de aumentar a fama de alguém”. Se o ato de escrever deveria significar alguma coisa, devia ser mais do que só literatura; a criação deveria gerar mais do que a mera arte.” [18]

De fato, em algumas das primeiras edições do seu jornal, os surrealistas astutamente expuseram essa vaidade propondo um questionário simples mas eficaz para os membros da cena literária de Paris: “Por que você escreve?” A maioria das respostas demonstraram—algumas vezes de maneira hilária—não só que os autores não tinham razão que justificasse as suas atividades artísticas, mas que a própria questão nunca tinha ocorrido antes para eles. Inútil dizer, esta questão permanece tão relevante em atualmente como era em 1919.

Nesta ação, mais do que a impertinência e os maus-costumes de um expoente grupo de artistas em relação aos mais velhos, estava em pauta, acima de tudo, a razão principal para se fazer arte. “A beleza será CONVULSIVA”, declara Breton no fim de seu extraordinário romance Nadja, “ou não será nada”. [19] Esta era uma declaração de guerra à noção estética que via a beleza como contemplativa e um refúgio da vida, um oásis de perfeição em um mundo áspero e feio. A poesia era muito menos uma questão de palavras em uma página do que um modo de vida, um parâmetro ético antes de um estético, algo que permitia a experiência da convulsão da beleza, mesmo até o ponto do delírio. [20]

Dizer que a beleza estava na vida não significava fechar os olhos diante da miséria e da desgraça da vida da maior parte das pessoas; pelo contrário, era porque odiavam essa desgraça que os surrealistas eventualmente se voltaram ao marxismo. Mas a vida era mais do que a simples soma de suas manifestações externas, e tendências artísticas como o realismo e o naturalismo não estavam, na visão de Breton, sendo realistas o suficiente pois ignoravam amplamente as outras dimensões da vida—o reinado interior dos sonhos e da imaginação. Esta era a realidade a partir da qual poderia surgir uma nova concepção de beleza e da relação entre arte e vida.

Isto nos traz de volta ao projeto central do surrealismo—a resolução das contradições entre sonho e realidade. A influência de Freud sobre os surrealistas—especialmente sua interpretação do significado dos sonhos e o descobrimento do inconsciente mental—é crucial. De fato, Breton foi um dos primeiros intelectuais na França a valorizar e dar atenção à importância do trabalho de Freud.

Mais do que um mero admirador de Freud, Breton acreditava que a psicanálise poderia ser usada não só para tratar enfermidades mentais, mas para transformar a vida de uma maneira geral. Esta interpretação radical de Freud é um dos principais temas do primeiro manifesto surrealista: “Se as profundezas de nossa mente contém estranhas forças capazes de aumentar as forças que estão na superficie, ou de travar uma batalha vitoriosa contra elas, há todo interesse em procurá-las.... Não se poderia usar também o sonho na solução das questões fundamentais da vida?”[21]

Freud, deve ser observado, não correspondeu à admiração dos surrealistas, a despeito da devoção declarada deles às suas idéias. Não apenas o seu gosto em relação às artes era conservador, como ele considerava que Breton e seus colegas usavam os conceitos psicanalíticos de maneira completamente inapropriada. Não fazia sentido para Freud a utilização de imagens oníricas em poemas ou pinturas, uma vez que os sonhos pra ele não tinham nenhum significado se separados de seus contextos psicológicos, isto é, separados da mente e da história de vida do indivíduo que os sonhou.

Além disso, a questão central da terapia psicanalítica era tornar consciente o inconsciente e, na opinião de Freud, o mesmo valia para a arte—não era o caso de voltar ao inconsciente, como os surrealistas estavam fazendo, mas justamente o contrário. “O que me interessa em sua arte”, disse Freud a Salvador Dali quando da visita deste em 1938, “não é o inconsciente, mas o consciente”. [22]

Ao mesmo tempo, no México, Trotsky colocava o mesmo ponto a Breton: “Você invoca Freud, mas não faz ele o oposto? Freud eleva o inconsciente ao consciente. Não estão vocês tentando encobrir o consciente sob o subconsciente?” [23]

Esta observação é bastante relevante e um grande número de trabalhos surrealistas que poderiam ser usados como exemplos—obras repletas de associações tão incoerentes ou imagens tão impenetráveis a ponto de cairem em uma espécie de solipcismo artístico. E, além disso, o surrealismo tendia a encorajar a produção de trabalhos deste tipo, através da transformação da espontaneidade em um princípio da prática criativa, pelo uso de técnicas como a “escrita automática”, que discutiremos mais adiante.

A produção artística depende, de fato, muito mais da intuição que a ciência ou a filosofia. Os idealistas (neles incluídos os primeiros surrealistas) concebiam a intuição como a pura ausência de razão, isto é, como pura subjetividade. Mas do ponto de vista do materialismo, o subjetivo é ele mesmo objetivo, o que quer dizer que tanto a mente inconsciente tem a sua própria lógica interna—que pode ser racionalmente compreendida—quanto que o consciente e o inconsciente formam uma unidade dialética na vida mental do indivíduo.

Trotsky, em sua autobiografia, fornece uma das mais lúcidas descrições dessa unidade, fazendo uma analogia entre sua operação na vida social e na esfera da criatividade individual: “A união criativa do consciente com o inconsciente é o que se costuma chamar de ‘inspiração’. A revolução é o furor criativo da história. Cada escritor de verdade conhece momentos criativos quando algo mais forte do que si mesmo está guiando suas mãos; cada orador de verdade experimenta momentos em que alguém mais forte do que o seu eu cotidiano fala por através dele. Isto é a ‘inspiração’, derivada da conjunção dos maiores esforços criativos de uma pessoa. O inconsciente ergue-se das profundezas e submete a mente consciente à sua vontade, misturando-a a si mesmo em uma síntese maior”.[24]

Dessa forma, sonhos e imaginação não são necessariamente uma fuga da razão e da realidade. Ao contrário, quando fundidos à consciência, eles dão abertura para possibilidades criativas enormes que aprofundam nossa compreensão do mundo e de nós mesmos.

Isto é evidente na arte; a imagem artística, obtida em parte através da intuição, não é uma alucinação vazia, podendo inclusive ser uma visão profética, pois os artistas conseguem imaginar - ou ver com os “olhos da mente” - certos aspectos da realidade com uma precisão muito maior do que seus contemporâneos—ou até mesmo si próprios—podem racionalmente compreender.

Embora Breton estavisse errado em procurar nos sonhos um substituto para a realidade, mais tarde ele passou a enxergar o problema de uma outra forma: ele agora definia o imaginário como sendo o que “tende a se tornar real” [25] e o objetivo das atividades surrealistas como sendo “lançar um fio condutor” [26] entre estados despertos e estados oníricos.

Predominantes, as formas burguesas de consciência expressam a tirania do que é, em outras palavras, a aceitação do fato consumado, e são inimigas do desenvolvimento da consciência de classe. No plano da psicologia individual, na experiência subjetiva de cada pessoa, um processo similar toma lugar: o pensamento consciente contém os ajustes, compromissos e frustrações impostos ao indivíduo pelas demandas do mundo exterior, o que significa acima de tudo a negação das necessidades e desejos humanos. Impedidos em grande medida de se concretizar na realidade, estas necessidades e desejos não desaparecem: encontram um escape no inconsciente, isto é, nos sonhos e na imaginação.

Este escape também pode ser uma aspiração—o sonho por si mesmo pode afirmar uma crença de que a vida pode ser melhor, e que as restrições à liberdade e à felicidade impostas pela realidade existente podem e devem ser superadas. Como Breton uma vez colocou poeticamente, “a resignação não é escrita sobre a pedra móvel do sono. A imensa manta escura tece diariamente em seu centro os olhos cravados de uma vitória clara”.[27] Aqui está a sua utlidade para a resolução de problemas fundamentais da vida: usando a imagem do fio condutor, o imaginário pode ser o meio através do qual a realidade é carregada de esperança.

A esperança é a chave para o conceito surrealista de beleza. Para Breton a beleza era idêntica a o que ele chamava de maravilhoso. Apesar de nunca ter definido isto com precisão, ele nos deu incontáveis exemplos dessas experiências: encontrando uma moça numa rua de Paris cujos olhos o fascinaram e que disse a ele que se chamava Nadja “porque em russo este é o começo da palavra esperança, e apenas o começo” [28]; em Guadalajara, de manhã bem cedo, entrando em um edifício maravilhosamente ornado e dilapidado que Breton tinha apelidado de Palácio Insano e encontrando, numa sala “escura e imensamente vazia”, uma jovem de cabelo desgrenhado e camisola branca amarrotada, limpando o chão e “sorrindo como o amanhecer do mundo”.[29] O maravilhoso é o momento do sonho se irrompendo na realidade, um pressentimento luminoso do desejo satisfeito.

Poesia e arte surrealista

É possível, ou oportuno, fazer uma avaliação do surrealismo—na pintura, fotografia, poesia, prosa, cinema etc—como um movimento artístico? Tal tarefa é muito vasta e está fora do nosso propósito presente. Certamente existem questões legítimas a serem levantadas.

Somos forçados a tratar aqui da fixação inicial de Breton no automatismo psíquico, esforço artístico livre do controle consciente, que ele insistia ser elemento indispensável do surrealismo. A sugestão de que entrando em um estado de transe ou de sonhos o inconsciente do artista é revelado de um modo puro e sem filtros hoje nos parece ingênua. O fato de que os produtos “espontâneos” que Breton e seus colegas produziram tomaram a forma de imagens poéticas altamente evoluídas, inconcebíveis sem um conhecimento extensivo de técnica literária e história, pode sugerir que os estados nos quais eles penetraram dificilmente eram livres da sugestão consciente.

Se concentrando nas fontes de inspiração da arte, Breton freqüentemente esquece que uma obra de arte é o produto da relação complexa entre o espontâneo/intuitivo e o concebido racionalmente, na qual nenhum dos lados pode ser negligenciado. O artista cria em si mesmo um equilíbrio entre esses elementos, uma tensão que está constantemente em questão, constantemente recriada. Nenhuma obra significativa pode ser simplesmente o ato de “exercitar” um propósito preconcebido, mas um propósito consciente deve emergir do ato de criar cada obra significativa.

Quando os insights de Breton, particularmente os que se referem à prática da criação artística, estão em julgamento, vemos que eles possuem verdade profunda. Breton estava absolutamente certo em insistir na função indispensável dos estados “de expectativa e perfeita receptividade, e da necessidade de cultivar estados mentais caracterizados por uma vontade de receber estímulos de todas as fontes possíveis. [30]

Nenhuma obra de arte séria é realizada sem o elemento da surpresa, e que pode ser encorajado, de material emanando das profundezas interiores, que chega à superfície somente sob condições definidas, momentos nos quais “uma chama bem delicada ilumina ou completa o significado da vida como nada mais consegue fazer”.Breton celebra com beleza essas condições: “Ainda hoje conto apenas com o que vem da minha abertura, de minha ânsia de vagar à procura de tudo, que me mantém em comunicação misteriosa com outros seres abertos, como se nós fossemos repentinamente chamados a nos unir”.[31]

Breton não era meramente um teórico, ele era um poeta. O que se pode, então, dizer de sua própria obra? “Comparar dois objetos o mais distante possíveis um do outro, ou, por qualquer método, confrontá-los de uma maneira brusca e fulminante, permanece sendo a tarefa mais elevada que a poesia deve sempre aspirar.” [32] Isto é verdade? Este método é inevitavelmente frutífero? Ele também não pode produzir resultados que parecem meramente arbitrários ou triviais? Examinando a poesia de Breton, alguém pode encontrar tanto imagens extraordinárias quanto imagens que são inteiramente inacessíveis. Sua insistência de que a apreciação de beleza poderia contornar inteiramente o intelecto não se sustenta sob análise mais rigorosa. Sentimento e pensamento não são domínios separados por muralhas.

Alguém interessado nos versos de Breton faria bem em começar com Earthlight, que inclui sete volumes de poemas seus. Free Union (1931) [Livre União], The Pistol with White Hair (1932) [O Revólver de Cabelos Brancos] e The Air of the Water (1934) [O Ar da Água] parecem os mais interessantes.

O poema Free Union [Livre União], talvez o mais emocionalmente poderoso e direto de Breton, conclui: [33]

Minha mulher com seus olhos cheios de lágrimas
com seus olhos de escudo violeta e um ponteiro de velocímetro
minha mulher com seus olhos de savana
minha mulher com seus olhos de água pra beber na prisão
minha mulher com seus olhos de floresta para sempre sob o machado
com seus olhos de nível-do-mar nível-do-ar terra e fogo

Quase inevitavelmente Breton parece um poeta de versos extraordinários, mais do que poemas inteiros:[34]

Eu sonho eu vejo você infinitamente sobreposta a você mesma

ou

Na bela meia-luz de 1934
o ar estava um rosa esplendido a cor da tainha vermelha

ou

Os primeiros exploradores procurando menos por terras
Do que pelas suas próprias origens

Também é possível concordar com a afirmação de Breton de que beleza precisa ser convulsiva ou perturbante sem a priori concordar com a questão da forma ou do estilo. Seus ataques ao romance como uma forma e ao realismo como tendência entediante e medíocre “hostil a qualquer avanço intelectual ou moral” finalmente começam eles mesmos a ficar entediantes.

A maior fraqueza de Breton é que ele tende a detectar as qualidades que ele valoriza somente em um grupo pré-selecionado de trabalhos. Rompimento intelectual e emocional estão tão presentes nos romances de “tradicionalistas” como Theodore Dreiser e Thomas Hardy assim como nas pinturas dos surrealistas Tanguy ou Masson. Isto não quer dizer que forma é uma questão de indiferença, ou que certas formas não se esgotaram historicamente, mas Breton freqüentemente apresentava a questão de um modo unilateral (e de certa maneira egocêntrico).

O surrealismo certamente pode reivindicar crédito de ser o movimento artístico mais intelectualmente provocativo do século XX. Ele persistentemente fazia as questões mais penetrantes sobre a humanidade e de seu destino. Os trabalhos surrealistas abundam de imagens que colocavam a consciência ao invés de “amaciá-la”. Por exemplo: o retrato de René Magritte de um rosto de mulher no qual seus seios tomam o ligar de seus olhos e o sexo o lugar da boca (O Estupro), ou uma linha de Breton fundindo a descrição dos pais de uma garota com o apartamento aonde eles moram: “Seu pai uma entrada solidamente guiada pra dentro de sua sombra sua mãe uma bela pirâmide de sombra de luz”. [35]

Nossa expectativa do que é normal e razoável é interrompida por tais imagens, precisamente por esta razão—elas abrem pra nós um senso mais profundo do que é real. A pintura de Magritte não reproduz a face de uma mulher, mas sim sua ausência de face, e através disso nos evoca uma idéia de o que significa ser uma mulher nesse mundo.

Nas artes visuais, em particular, para que se avalie o impacto do surrealismo deve-se listar os nomes daqueles que estavam diretamente envolvidos ou profundamente influenciados pelo surrealismo: Giorgio di Chirico, Francis Picabia, Pablo Picasso, Marcel Duchamp, Hans Arp, Masson, Max Ernst, Man Ray, Salvador Dali, Joan Mir-, Luis Bu-uel, Alberto Giacometti, Magritte, Henri Cartier-Bresson, Tanguy, Arshile Gorky, Joseph Cornell. Novos horizontes para as atividades e imagens artísticas foram abertas pelo surrealismo, tanto que ele alterou completamente a noção popular do que é arte. Talvez a melhor indicação da influência surrealista seja simplesmente o fato da própria palavra ter se tornado parte da linguagem cotidiana.

A vida interna do movimento é uma questão que merece alguma consideração. A reputação de Breton de ser o “papa do surrealismo” ganhou circulação ampla, até pelos numerosos rachas e expulsões experimentados pelo movimento; não surpreendentemente, muitos daqueles deixados de fora do movimento culparam Breton pessoalmente. Assumidamente, Breton poderia em algumas ocasiões ter sido injusto, arbitrário e até cruel, mas qualquer avaliação objetiva dessas disputas demonstra que questões políticas, não pessoais, predominavam, especificamente quanto à questão da adesão dos surrealistas à revolução socialista. Em praticamente cada caso a posição de Breton foi justificada. (Deve-se notar também que a vida interna dos surrealistas não ficou incólume à degeneração do movimento dos trabalhadores. O Segundo Manifesto do Surrealismo de Breton (1930), na sua violenta e pungente crítica dos seus oponentes, mostra traços definidos do estalinismo do “Terceiro Período”).

Em 1929 Breton rompeu com um grupo que incluía o ator e poeta Antonin Artaud e o escritor Robert Desnos, principalmente pelas suas objeções à radicalização política do surrealismo; em 1932 Aragon saiu do movimento para assumir uma carreira como orador e liderança cultural do estalinismo francês; seis anos depois Eluard tomou o mesmo caminho, tornando-se de fato o poeta honorário do partido comunista e despejando versos ocasionais sob demanda; Dali foi expulso pela sua adoração heróica a Hitler, sem mencionar seu comercialismo e busca de publicidade que estimulou Breton a transformar seu nome em um acrônimo/sigla, “Avida Dollars.”

O que realmente incomoda vários críticos de Breton não são só as especificidades dessas disputas, mas o fato dele insistir em responsabilizar seus colegas por suas posições e ações. “O comércio intelectual”, escreveu Breton uma vez com evidente exasperação, “é um caminho de muita impunidade”. [36]

O escritor Georger Bataille, cujo rompimento com Breton tinha sido particularmente amargurado, desmentiu suas críticas anos depois: “Hoje eu acredito que as exigências de Breton...eram justificadas. Breton acolhia um desejo de devoção compartilhada a uma verdade suprema, e um ódio a cada concessão contrária a essa verdade; desta verdade Breton queria que seus amigos fossem a expressão - ou então que deixassem de ser seus amigos.” [37]

Surrealismo e Marxismo

Como já é evidente a partir da presente discussão, ninguém pode considerar seriamente a história do surrealismo sem trazer a tona o nome de Leon Trotsky. Breton começou a desenvolver uma admiração por Trotsky em agosto de 1925, depois de ler seu livro sobre o início da vida de Lênin, sobre o qual ele comentou, “não encontrei nehuma falta, nem em grandeza nem em perfeição”.[38] O estilo e substância da obra de Trotsky permaneciam em contraste gritante com os esforços do Partido Comunista francês (PCF), cada vez mais estalinizado. Apesar da filiação de Breton ao PCF no fim de 1926, junto com seus camaradas surrealistas Aragon, Eluard, Peret e Pierre Unik, ele não tinha ilusões sobre a organização.

Em Legítima Defesa (setembro de 1926) Breton escreveu: “eu não sei porquê eu deveria me abster mais ainda de dizer que o L’Humanite [o jornal diário do PCF]—infantil, declamatório, desnecessariamente cretino—é um jornal ilegível, totalmente inadequado ao papel de educação do proletariado que ele reivindica assumir. Além desses artigos de leitura rápida, que se apegam de forma tão próxima à atualidade que não há nenhuma perspectiva para o futuro... é impossível não notar naqueles que os escreveram um desgaste extremo, uma resignação secreta ao existente, com a preocupação de manter o leitor em uma ilusão mais ou menos generosa, da maneira mais barata possível” [39] Breton não era, obviamente, um dos artistas favoritos da liderança do partido.

Breton foi expulso do PCF e da sua organização cultural em 1933. Dois anos depois os estalinistas usaram como desculpa um confronto entre Breton e escritor soviético Ilya Ehrenburg numa rua de Paris (Ehrenburg tinha escrito um ataque grosseiro aos surrealistas; Breton o confrontou e deu um tapa na sua cara) para excluir Breton de discursar no seu Congresso de Escritores em Defesa da Cultura. Eluard só foi autorizado a ler a declaração de Breton, um de seus esforços mais extraordinários, tarde da noite em frente a uma multidão hostil. “Daqui de onde nós estamos”, Breton escreveu, “nós insistimos que a atividade de interpretar o mundo precisa continuar ligada com a atividade de mudar o mundo. Nós mantemos que é papel do poeta, do artista, estudar em profundidade o problema da humanidade em todas suas formas...”. [40]

Em sua avaliação do Congresso, “No Tempo em que os Surrealistas Estavam Certos (1935)”, Breton notou que “verdadeiro banho de repetições inúteis, considerações infantis e adulações: aqueles que clamam estar salvando a cultura mundial escolheram um clima doentio para isso”.

Ele denunciou o oportunismo dos intelectuais que aceitaram as ordens estalinistas: “Tanto no campo da política quanto no campo das artes, duas forças—a recusa espontânea das condições de vida oferecidas ao homem e a necessidade imperativa de mudá-las, por um lado, e a duradoura fidelidade a princípios de rigor moral, por outro—carregaram o mundo adiante”.[41]

Breton serviu no Comitê Francês de Inquérito nos Julgamentos de Moscou. Em setembro de 1936, de acordo com o livro Revolução na Mente de Polizzotti, “Breton discursou um grande comício para demandar ‘a verdade sobre o [primeiro] Julgamento de Moscou’: ‘Nós consideramos a encenação do Julgamento de Moscou como sendo uma ignóbil tarefa policial’, ele declarou. Stalin tinha se tornado ‘o grande negador e principal inimigo da revolução proletária... o mais indesculpável dos assassinos.’ Breton fez um apelo especial em nome de Trotsky, o maior dos alvos de Stalin, que tinha sido condenado à morte in absentia no tribunal: ‘um intelectual e guia moral de primeira linha, cuja vida, tão logo é ameaçada, se torna tão preciosa para nós como nossas próprias vidas.‘ “Breton nunca recuou dessa posição. Em 1951 ele comentou sobre os julgamentos-espetáculo: “Eu persisto em pensar que eles abriram, e inevitavelmente deixaram infestar, a maior carnificina dos tempos modernos”.[42]

O respeito de Breton por Trotsky era tão grande que lhe trouxe dificuldades quando eles vieram a colaborar no manifesto de 1938. Breton, que era conhecido ou se reunia com muitas das figuras significativas do círculo intelectual e artístico europeu e não era um indivíduo que se impressionava com facilidade nem que se chocava facilmente, se encontrou paralisado diante da presença do líder do partido bolchevique.

Em uma carta a Trotsky escrita imediatamente depois de sua partida do México, Breton tentou explicar este fenômeno: “Esta inibição é principalmente um produto.. da admiração sem limites que eu tenho por você ... Muito freqüentemente eu imagino o que aconteceria se, por um acaso impossível, eu me encontrasse diante de uma dos homens a partir dos quais eu modelei meu pensamento e sensibilidade....Como de repente eu me senti estranhamente despido das minhas habilidades, rezando para um tipo de necessidade perversa de me esconder. É o que eu chamo para meu próprio uso de, em memória de rei Lear, meu ‘complexo de Cordélia.’ Por favor, não ria de mim; é totalmente inato, orgânico. Eu tenho todas as razões para acreditar que isso é inerradicável.” [43]

Ao contrário de muitos outros no período pós-guerra, Breton nunca veio a repudiar as idéias gerais do socialismo ou suas associações com o trotskismo. Em uma entrevista ele fulminantemente sugeriu que um “verdadeiro estudo clínico” feito das “moléstias especificamente modernas” que fazem esse tipo de intelectuais arrependidos “mudar radicalmente suas opiniões e renunciar de uma maneira masoquista e exibicionista seus próprios testemunhos, se tornando campeões de quase o contrário do que começaram servindo com grande fanfarra.” [44] (Uma “moléstia” que atinge proporções epidêmicas nos nossos dias!)

Em uma mensagem que mandou para um encontro em 1957 em comemoração do aniversário de 40 anos da Revolução Russa organizado pelo PCI, a seção francesa do Comitê Internacional da Quarta Internacional naquele tempo, Breton expressou sua contínua fidelidade à causa “da emancipação humana”.Ele declarou: “A despeito de tudo eu permaneço entre aqueles que ainda encontram na memória da Revolução de Outubro uma grande parte do impulso que me guiou quando eu era jovem e que implicava em uma entrega total”. [45]

Em 29 de janeiro de 1962, quatro anos e meio antes de sucumbir de parada cardíaca aos 70 anos, Breton entregou um elogio comovente em honra de Natalia Sedova-Trotsky, que tinha morrido poucos dias antes em Paris. Ele declarou que a viúva de Trotsky “precisa saber que o processo evolutivo iria por fim impor uma revisão radical na história cinicamente falsificada dos últimos quarenta anos, que no final de seu processo irreversível iria não só fazer justiça a Trotsky, mas iria ser chamado a aceitar, com todo seu vigor e amplitude, as idéias pelas quais sua vida foi dedicada”. [46]

No seu apoio às idéias de Trotsky, Breton não estava sozinho entre os surrealistas. Pierre Naville rompeu com o grupo surrealista em 1926 e se jogou nas atividades do Partido Comunista. Mais tarde ele se tornou uma figura de liderança no movimento trotskista da França. Peret, um dos colaboradores mais próximos de Breton, cumpriu um papel ativo na Oposição de Esquerda brasileira e em 1931 foi indicado Secretário Regional da oposição para o Rio de Janeiro. Seguindo sua expulsão do Brasil por suas atividades, ele se juntou aos trotskistas franceses, masi tarde lutando na Guerra Civil Espanhola. Gerard Rosenthal, que como “Francis Gerard” tinha sido um dos mais originais surrealistas, serviu de advogado de Trotsky. Maurice Nadeau, o cronista do surrealismo, também participou do movimento trotskista. Nem o reforço das iniciativas artísticas e políticas de Breton por um número dos mais extraordinários artistas visuais do período entre guerras—Ray, Ernst, Tanguy, Masson, em particular—deve ser esquecido.

Os marxistas, confrontados com essa história, podem querer ponderar as seguintes questões relativas: por que é que esta tendência artística cujas preocupações, na superfície, aparentam estar tão distantes daquelas da classe trabalhadora vieram a se identificar tão atentamente, mais atentamente do que qualquer outra, com a revolução proletária e a Quarta Internacional? Porque é que tanto nas obras de Breton produzida nos anos 30 parece urgente e contemporânea, enquanto tanto dos esforços da mesma epoca em “descrever realisticamente a vida da classe trabalhadora” encontram-se datadas e até pueris? Este artigo foi uma tentativa de oferecer uma resposta pelo menos parcial: de que os surrealistas carregavam uma verdadeira crítica radical do real, tanto nas suas dimensões exteriores quanto interiores.

Breton era o mais admirável representante de uma geração extraordinária de artistas pequeno-burgueses; um poeta que se direcionou ao marxismo, mantendo sua visão poética, embasado em profundas e constantes convicções; um intelectual, em suma, que foi mais longe do que ninguém. Seus melhores escritos nos regojizam por sua combinação de crítica violenta e delicadeza; seu zelo revolucionário e devoção à beleza; sua infatigável energia e confiança; seu exercício da imaginação ao grau mais elevado.

No manifesto de 1938, há uma passagem impressionante (aparentemente escrita por Breton) que torna claro porque o artista é “um aliado natural da revolução”. Evocando a teoria da sublimação de Freud, a declaração explica que o artista precisa organizar “as forças do mundo interior” contra a insuportável realidade de repressão e alienação dentro da sociedade capitalista, mas essas forças interiores não são exclusivas do artista como indivíduo, mas “comuns a todos os homens”. Esta é a razão pela qual a luta do artista pela sua própria arte se mescla com a luta pela libertação de toda a humanidade: “A necessidade de emancipação da mente tem que seguir seu curso natural, para ser induzida a reemergir nesta necessidade primordial: a necessidade da emancipação do homem”.[47] Deve ser difícil pensar em um artista que exemplificou Breton melhor do que ele mesmo: no início do movimento surrealista tinha escrito que “liberdade” era a única palavra “que me exalta ainda”, e ele continuaram perseguindo a busca pela liberdade, seguindo “seu curso natural” não importando aonde ela o levasse ou que forças tentassem pará-lo. Nisto reside a grandeza de sua realização e a persistente significância de sua vida.

Notas:

1. André Breton, Free Rein (La Clé des Champs), trad. Michel Parmentier and Jacqueline d’Amboise (Lincoln: University of Nebraska Press, 1995), pp. 29-31, 34.
2. Franklin Rosemont, ed., What is Surrealism?: Selected Writings, (New York: Pathfinder, 1978), p. 264.
3. Mark Polizzotti, Revolution of the Mind: The Life of André Breton (New York: Farrar, Straus & Giroux, 1995), p. 472.
4. Breton, Free Rein, p. 266.
5. André Breton, Manifestoes of Surrealism, trad. Richard Seaver and Helen R. Lane (Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1972), p. 241.
6. Rosemont, ed., What is Surrealism?, pp. 318-19.
7. Maurice Nadeau, The History of Surrealism, trad. Richard Howard (New York: Macmillan Co., 1965), p. 43.
8. Ibid., p. 48.
9. Rosemont, ed., What is Surrealism?, p. 33
10. Breton, Manifestoes of Surrealism, pp. 26, 14.
11. Nadeau, The History of Surrealism, p. 105.
12. Breton, Manifestoes of Surrealism, p. 12.
13. Rosemont, ed., What is Surrealism?,pp. 116-17.
14. Breton, Free Rein, p. 9. Back
15. Polizzotti, Revolution of the Mind, p. 458.
16. Breton, Free Rein, p. 109.
17. Polizzotti, Revolution of the Mind, pp. 17-18.
18. Ibid., p. 95.
19. André Breton, Nadja, trad. Richard Howard (New York: Grove Weidenfeld, 1960), p. 160.
20. Nadeau, The History of Surrealism, p. 274.

21. Breton, Manifesto Surrealista 1924, marxists internet archive.
22. Arnold Hauser, The Social History of Art (New York: Random House, 1985), vol. 4, Naturalism of the Film Age, p. 223.
23. Jean van Heijenoort, With Trotsky in Exile: From Prinkipo to Coyoacan (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1978], p. 122.
24. Leon Trotsky, My Life: An Attempt at an Autobiography (New York: Pathfinder Press, 1970), pp. 334-35.
25. Andre Breton, Earthlight, trans. Bill Zavatsky and Zack Rogow (Los Angeles: Sun & Moon Press, 1993), p. 90.
26. Andre Breton, The Communicating Vessels, trans. Mary Ann Caws and Geoffrey J. Harris (Lincoln: The University of Nebraska Press, 1990), p. 86.
27. Ibid., p. 145.
28. Breton, Nadja, p. 66.
29. Breton, Free Rein, p. 28.
30. Breton, Manifestoes of Surrealism, p. 180.
31. Andre Breton, Mad Love, trans. Mary Ann Caws (Lincoln: University of Nebraska Press, 1987), p. 25.
32. Breton, Communicating Vessels, p. 109.
33. Breton, Earthlight, pp. 84-85.
34. Ibid., pp. 142, 148, 153.
35. Ibid., p. 123.
36. Polizzotti, Revolution of the Mind, p. 318.
37. Ibid., p. 336.
38. Rosemont, ed., What is Surrealism?, p. 30.
39. Ibid., p. 32.
40. Breton, Manifestoes of Surrealism, p. 240.
41. Ibid., pp. 245-46, 248.
42.Polizzotti, Revolution of the Mind, pp. 436-37.
43. Ibid., p. 462.
44.Rosemont, ed., What is Surrealism?, p. 202.
45. Ibid., pp. 297-98.
46. Ibid., p. 308.
47. Breton, Free Rein, p. 31.

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