Português

O Outubro Alemão: A revolução perdida de 1923

Este artigo, publicado em três partes, é baseado numa palestra apresentada no verão de 2007.

Em 1923, uma situação revolucionária extremamente favorável desenvolveu-se na Alemanha. Em 21 de dezembro, o Partido Comunista Alemão (KPD), em estreita colaboração com a Internacional Comunista (Comintern ou, ainda, III Internacional), preparou uma insurreição e cancelou-a no último minuto. Trotsky, depois, falou de “um clássico exemplo de como é possível perder uma situação revolucionária excepcional de importância histórica e mundial”. [1]

A derrota alemã de 1923 teve conseqüências de longo alcance. Graças a ela, a burguesia alemã consolidou seu domínio e estabilizou a situação por seis anos. Quando a próxima grande crise irrompeu, em 1929, a classe trabalhadora foi totalmente desorientada pela direção stalinista do KPD. Isso levou diretamente aos eventos fatais que culminaram na ascensão de Hitler ao poder. A nível mundial, a derrota do Outubro Alemão aprofundou o isolamento da União Soviética e constituiu, portanto, um importante fator psicológico e material que fortaleceu a ascensão da burocracia stalinista.

A palestra de hoje irá se concentrar nas lições estratégicas e táticas do Outubro Alemão, lições que se transformaram rapidamente em um assunto polêmico de disputa entre a Oposição de Esquerda e a Troika liderada por Stalin, Zinoviev e Kamenev. Antes de tratarmos desses assuntos, faz-se necessário relatar os eventos de 1923.

A Alemanha em 1923

Todas as questões básicas que empurraram o imperialismo à Primeira Guerra Mundial em 1914 — acesso a mercados e matéria-prima para sua indústria dinâmica e a reorganização da Europa sob sua hegemonia — continuaram sem solução em 1923. Além de terem perdido a guerra com um tremendo custo de vidas humanas e recursos materiais, a Alemanha foi obrigada pelo acordo de Versalhes a pagar quantias imensas em reparação ao seu maior rival, a França, assim como a outras potências imperialistas.

Os anos imediatamente após a Guerra, de 1918 a 1921, caracterizaram-se por uma série de levantes revolucionários que somente foram abafados pelos esforços conjuntos da Social-Democracia e das forças paramilitares de direita. Em 11 de janeiro de 1923, as tropas francesas e belgas ocuparam o Ruhr e reascenderam a crise social e política na Alemanha.

O governo francês justificou a ocupação militar do centro da indústria alemã de aço e carvão declarando que a Alemanha não havia cumprido com suas obrigações de pagar as reparações de guerra. O governo alemão — um regime de extrema direita liderado pelo industrialista Wilhelm Cuno e tolerado pelo Partido Social-Democrata — reagiu chamando resistência pacífica. Na prática, isso significou o boicote das forças de ocupação pelas as autoridades locais e as companhias do Ruhr. O governo continuou a pagar os salários da administração local e ofereceu subsídios aos barões do carvão e do aço para compensar suas perdas.

O resultado desses enormes gastos e da ausência de carvão e aço do Ruhr, produtos de extrema necessidade, foi o colapso completo da moeda alemã. O marco, já altamente inflado, era negociado a 21.000 por dólar no início do ano. Ao final do ano, quando a inflação alcançou seu ápice, a taxa de câmbio chegou a quase 6 trilhões de marcos por dólar — um número com 12 casas decimais!

O impacto social e político da hiperinflação foi explosivo. A sociedade alemã foi polarizada de forma jamais vista. Para os trabalhadores, a inflação era uma ameaça à vida. Quando recebiam seus salários ao final da semana, estes mal cobriam o valor do papel sobre o qual as enormes somas eram impressas. As esposas aguardavam nos portões das fábricas para correrem ao mercado mais próximo e comprarem algo antes que o dinheiro perdesse seu valor no dia seguinte.

Só para dar um exemplo: um ovo custava 300 marcos no dia 3 de fevereiro. Em 5 de agosto, custava 12.000 marcos e, três dias depois, 30.000 marcos. Mesmo sendo os salários ajustados com a inflação, o salário médio calculado em dólares caía 50% ao longo de 6 meses. Ao mesmo tempo, o número de desempregados inflava — de menos que 100.000 ao início do ano a 3,5 milhões de desempregados e 2,3 milhões de trabalhadores em empregos a curto-prazo ao final do ano.

Mas os trabalhadores não eram os únicos arruinados pela hiperinflação. Aqueles que viviam em pensões perderam todos os seus meios de subsistência. Aqueles que haviam economizado um pouco de dinheiro perdiam tudo da noite para o dia. Para sobreviver, muitos tinham que vender suas casas, jóias e tudo mais que houvessem guardado durante toda a vida, apenas para descobrirem, no dia seguinte, que o rendimento não valia mais nada.

Arthur Rosenberg, que escreveu a primeira história oficial da república de Weimar, em 1928, afirmou: “A expropriação sistemática das classes médias alemãs, não por um governo socialista, mas por um Estado burguês dedicado à defesa da propriedade privada, foi um dos maiores roubos da história mundial”. [2]

Do outro lado do abismo social estava um grupo de especuladores, aproveitadores e industrialistas que fizeram enorme fortuna com a inflação. Qualquer um que obtivesse acesso a moedas estrangeiras ou a ouro poderia exportar mercadorias alemãs ao exterior e colher lucros enormes, devido aos baixos salários. Essas eram as forças por detrás do governo Cuno. O mais famoso deles foi Hugo Stinnes, que comprou 1.300 fábricas e fez bilhões nesse período. Stinnes também foi, nos bastidores, um grande articulador político.

A polarização social e a falência das classes médias fez surgir uma aguda polarização política.

O Partido Social-Democrata Alemão (SPD) perdeu rapidamente tanto membros quanto eleitores e desintegrou-se. Desde a derrubada do Kaiser pela Revolução de Novembro de 1918, ele havia se aliado ao alto comando militar e às forças paramilitares de direita, as Freikorps, para reprimir a revolução proletária e assassinar seus líderes mais destacados — Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht.

O SPD era o único partido na Alemanha que defendia a república de Weimer incondicionalmente. Todos os outros partidos burgueses preferiram uma forma mais autoritária de dominação. Friedrich Ebert, líder do SPD, foi o primeiro presidente da República de Weimer. Ele ocupou o gabinete presidencial até sua morte, em 1925, isto é, durante todo o período do qual tratamos nesta palestra.

O papel contra-revolucionário do SPD afastou muitos trabalhadores e levou-os ao Partido Comunista Alemão, o KPD. Mas, no início de 1923, os sindicatos e camadas de trabalhadores mais conservadoras ainda apoiavam o SPD. Com o impacto da inflação, isso mudou rapidamente.

O historiador Rosenberg, membro dirigente do KPD em 1923 (mais tarde Rosenberg juntou-se ao SPD), escreve: “Durante o ano de 1923, o SPD perdeu forças de forma constante... Os sindicatos, em especial, que sempre haviam sido o principal pilar de influência do SPD, estavam em total desintegração... Milhões de trabalhadores alemães não queriam mais ouvir ou falar das velhas táticas sindicais e abanaram as associações... A desintegração dos sindicatos era sinônimo da paralisia do SPD”. [3]

Enquanto o SPD se desintegrava, trabalhadores social-democratas ouviam atentamente o que os comunistas tinham para dizer. Dentro do SPD desenvolveu-se uma ala esquerda pronta para colaborar com o KPD. Como veremos, governos de coalizão da esquerda do SPD e KPD foram formados na Saxônia e Turíngia por um breve período de outubro. Enquanto o número de filiados do SPD diminuía, a influência do KPD crescia. Seus filiados cresceram de 225 mil para 295 mil dentro de um ano.

Não houve eleições nacionais entre 1920 e 1924, portanto não há estimativas confiáveis do apoio eleitoral do KPD. Mas, uma eleição ocorrida no pequeno estado rural de Mecklenburg-Strelitz nos dá uma idéia. Em 1920, o SPD recebeu 23.000 votos e o SPD-Independente (USPD, que mais tarde juntou-se ao KPD), 2.000. O KPD não participou. Em 1923, ambos, o SPD e o KPD, receberam aproximadamente 11.000 votos. No Saar, uma região mineira antes dominada pelo catolicismo, o KPD aumentou sua votação entre 1922 e 1924 de 14.000 a 39.000.

Dentro dos sindicatos, a influência comunista crescia proporcionalmente à custa do SPD. Quando os delegados do congresso da União dos Trabalhadores Metalúrgicos da Alemanha foram eleitos em Berlim, o KPD teve muito mais votos do que o SPD. Receberam 54.000 votos, enquanto que o SPD obteve 22.000 — menos que a metade do KPD. De acordo com um líder do KPD, em junho o partido tinha 500 seções nos principais sindicatos. Aproximadamente, 720.000 metalúrgicos apoiavam os comunistas. O historiador da Alemanha ocidental, Hermann Weber, comenta em seu livro sobre a história do KPD: “O ano de 1923 mostrou uma crescente influência do KPD, que tinha provavelmente a maioria dos trabalhadores socialistas por detrás”. [4]

O KPD antes de 1923

Em 1923 o KPD era tudo, exceto um partido unificado. Tinha apenas quatro anos de idade, mas já havia passado por eventos tumultuosos, diversas mudanças na direção, rachas e fusões e estava afetado por intensas divisões internas.

Seu líder teórico e político mais brilhante foi, sem sombra de dúvida, Rosa Luxemburgo, que fora assassinada apenas duas semanas antes da fundação do partido — uma perda irreparável. Luxemburgo era uma revolucionária de enorme coragem e integridade. Seus escritos sobre o revisionismo e sua luta contra o giro à direita da Social-Democracia — que vislumbrou antes e mais precisamente do que Lênin — são parte do que já foi escrito de melhor na literatura marxista.

Mas, assim como Trotsky — e por mais tempo que ele — Luxemburgo não tirou as mesmas conclusões organizativas que Lênin tirou, corretamente, do revisionismo. Mesmo depois de 4 de Agosto de 1914, quando formou o Gruppe Internationale, mais tarde chamado de Spartakusbund [Liga Espártaco], Luxemburgo não rompeu formalmente com o SPD. Seu slogan era: “Não abandone o partido, mude o rumo do partido”.

Em 1915, os espartaquistas rejeitaram o chamado de Lênin por uma nova internacional na Conferência de Zimmerwald e, mais tarde, em Março de 1919, o delegado do KPD para o primeiro congresso da Terceira Internacional, Hugo Eberlein, absteve-se na votação para a fundação de uma nova internacional. Ele fora instruído pelo KPD a votar contra, mas foi persuadido em Moscou de que a decisão era correta — então absteve-se.

Quando o SPD-Independente (USPD) foi formado em 1917, por membros do SPD pertencentes ao Reichstag [Parlamento Alemão] que foram expulsos do SPD por se recusarem a votar por novos créditos para a guerra, Luxemburgo e a Liga Espártaco uniram-se a essa organização centrista com uma facção. Fizeram isso apesar do fato de que entre os lideres mais proeminentes do USPD estavam Karl Kautsky e Eduard Bernstein, líder teórico do revisionismo alemão.

Luxemburgo justifica isso em um artigo declarando que a Liga Espártaco não se uniu ao USPD para dissolver-se em uma oposição enfraquecida. “Ela se uniu ao novo partido — confiante no agravamento cada vez maior da situação social e trabalhando por isso — para impulsionar o partido adiante, para ser sua consciência encorajadora... e para tomar a liderança do partido”, escreveu ela. [5]

Luxemburgo atacou severamente a Esquerda de Bremen — liderada por Karl Radek e Paul Frölich, posteriormente biógrafo de Luxemburgo — que se recusou a entrar para a USPD e a descreveu como uma perda de tempo. Ela denunciou sua defesa de um partido independente como um Kleinküchensystem [“sistema de pequenas cozinhas”, no sentido da fragmentação] e escreveu: “É uma pena que esse sistema de pequenas cozinhas esqueceu-se do principal, as condições objetivas, que, em última análise, são decisivas e serão decisivas para a ação das massas... Não é suficiente que um punhado de pessoas tenha a melhor receita em seus bolsos e saibam como conduzir as massas. O pensamento das massas deve ser libertado das tradições dos últimos 50 anos. Isso só é possível com um grande processo de continua auto-crítica interna do movimento como um todo”. [6]

Foi somente em Dezembro de 1918, um mês depois que três líderes do USPD uniram-se a um governo provisório, liderado pelos lideres de direita do SPD Friedrich Ebert e Philipp Scheidemann, que os espartaquistas romperam com o USPD. O Governo de Ebert tornou-se o executor da revolução de Novembro. Ele logo se aliou ao comando militar. O USPD, que já tinha cumprido seu papel, não era mais necessário.

No final do ano, em meio a violentas lutas revolucionárias, o KPD foi finalmente fundado pela Liga Espártaco, pela Esquerda de Bremen e mais outras organizações de esquerda.

O atraso na fundação de um verdadeiro partido revolucionário, independente dos Social-Democratas e dos centristas se deu por conta, até certo ponto, das muitas tendências ultra-esquerdistas que surgiram na Alemanha no inicio dos anos 1920. A traição do SPD — primeiro em 1914, quando apoiou a guerra e, depois, em 1918, quando afogou a revolução em sangue — levou a uma reação entre os trabalhadores que, na ausência de uma organização resoluta de cunho Bolchevique, buscaram diferentes formas ultra-esquerdistas ou mesmo anarquistas. Esse problema iria atormentar o KPD por um longo tempo.

No congresso de fundação do KPD, Luxemburgo estava com uma minoria em relação a participar das eleições para a assembléia nacional. A maioria era contra. Também havia muitas outras tendências ultra-esquerdistas fora do partido.

Em Abril de 1920, depois de uma revolta armada de trabalhadores em Ruhr, a esquerda rachou e formou o KAPD [Partido Comunista Operário da Alemanha], promovendo idéias ultra-esquerdistas, anti-parlamentaristas e anarquistas. O KAPD levou consigo uma considerável parcela dos membros do KPD — de acordo com algumas fontes, a maioria. Mas se desintegrou rapidamente, já que não tinha um programa coerente. A Internacional Comunista, com algum sucesso, tentou reaver as seções ainda sãs do KAPD e até mesmo os convidou para um de seus congressos.

Entretanto, em 1919 foi principalmente o USPD que se beneficiou com o giro a esquerda da classe operária. Na eleição de 1920 ao Reichstag, o SPD recebeu 6 milhões de votos, o USPD 5 milhões e o KPD 600,000.

O USPD foi um clássico partido centrista. A direção caminhava para a direita, cruzando com trabalhadores que caminhavam para a esquerda. Muitos trabalhadores que apoiavam o USPD admiravam a União Soviética. Os lideres de direita do USPD encontravam-se cada vez mais isolados. Com suas 21 condições para associação, o Segundo Congresso da Internacional Comunista aprofundou os rachas dentro do USPD.

Em Dezembro de 1920, a maioria finalmente se uniu ao KPD — ou VKPD [Partido Comunista Unificado da Alemanha], como ficou conhecido por algum tempo. A minoria, mais tarde, voltou a se unir ao SPD. A fusão com o USPD aumentou cinco vezes a quantidade de membros do KPD e o transformou num partido de massas. Mas, os novos membros trouxeram consigo muitos vícios do passado e tradições centristas do USPD.

Em Março de 1921, uma revolta fracassada na Alemanha Central — a chamada Märzaktion [Ação de Março] — provocou uma nova crise nas fileiras do KPD. Depois que o governo nacional enviou unidades policiais até as fábricas para desarmar os operários, o KPD e o KAPD chamaram greve geral e a derrubada do governo nacional. Esse levante foi claramente prematuro e acabou numa derrota sangrenta.

Aproximadamente 2.000 trabalhadores foram mortos na luta e na violenta repressão que se seguiu. Por conseguinte, Paul Levi, amigo próximo de Rosa Luxemburgo e um dos principais líderes do partido, que corretamente se opôs ao levante desde o começo, impiedosamente atacou o partido em publico. Ele foi expulso e, depois, voltou ao SPD.

Os eventos do Março Alemão foram o foco do debate no Terceiro Congresso da Internacional Comunista, realizado de 22 de Junho a 21 de Julho de 1921, em Moscou. Trotsky mais tarde descreveu o Congresso como um “marco” e resumiu sua significância da seguinte forma: “Ele apontou o fato de que os recursos dos partidos comunistas, tanto politicamente quanto organizativamente, não foram suficientes para a conquista do poder. Ele promoveu o slogan ‘Às massas,' isto é, a conquista do poder através de uma conquista anterior das massas, realizada com base na vida cotidiana e nas lutas. As massas continuam vivendo sua vida cotidiana em uma época revolucionaria, mesmo que de uma maneira diferente...” [7]

O Terceiro Congresso desenvolveu exigências transitórias, a tática da Frente Única e a palavra de ordem de Governo Operário, para ganhar a confiança dos trabalhadores que ainda apoiavam os Social-Democratas. Insistia-se na necessidade de trabalhar nos sindicatos.

Isso foi de encontro com a resistência furiosa das tendências de esquerda e ultra-esquerda dentro do KPD, que promoviam a chamada “teoria ofensiva” e rejeitavam qualquer forma de compromisso, assim como o trabalho no parlamento e nos sindicatos. Eles eram apoiados por Nikolai Bukharin, que seria mais tarde o líder da Oposição de Direita, que defendia uma “ofensiva revolucionaria ininterrupta”. Foi em resposta a essas tendências que Lênin escreveu seu folheto “Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo”.

Ao estudarmos esses conflitos, é notável que Lênin, assim como Trotsky, tenha tentado uma aproximação extremamente paciente das diferentes facções no KPD. Eles tentaram educar, explicar, integrar e prevenir rachas prematuros. Contiveram os esquentados da esquerda e da direita, que queriam expulsar seus oponentes. Tentaram manter Levi no partido até que seu comportamento provocativo tornou a tarefa impossível.

Durante o Terceiro Congresso, eles passaram horas discutindo em pequenos grupos com diferentes facções da KPD. Ao mesmo tempo em que eram intransigentes em relação à esquerda infantil, também perceberam certo conservadorismo na liderança do partido, a qual essas esquerdas atacavam. Em outras palavras, Lênin e Trotsky tentaram desenvolver uma direção balanceada e experiente, treinada para lidar com contradições e reagir rapidamente assim que uma situação se alterasse, o que entra em choque com as praticas que a Comintern desenvolveu sob a direção de Stalin.

Os eventos do Ruhr

Retomemos alguns eventos de 1923.

Um ano e meio após o Terceiro Congresso da Internacional Comunista (Comintern ou III Internacional), os conflitos internos ao Partido Comunista Alemão (KPD) ainda não estavam resolvidos. Após a ocupação do Ruhr pelo exército francês, os conflitos entre a direção majoritária do partido e a oposição de esquerda irromperam novamente e com toda a força. As diferenças emergiram sobre a questão do apoio dado pelo KPD ao governo da ala esquerda do Partido Social-Democrata Alemão (SPD) na Saxônia, bem como sobre a política a ser adotada na região do Ruhr, ocupada pelos franceses.

No momento, o partido era dirigido por Heinrich Brandler, membro fundador da Liga Espártaco [Spartakusbund]. Enquanto muitos dos esquerdistas passavam para a direita, uma nova facção de esquerda se agrupava sob direção de Ruth Fischer, Arkadi Maslow e — em menor grau — Ernst Thälmann. Fischer e Maslow eram ambos jovens intelectuais que ingressaram no movimento após a guerra. Tinham a maioria da seção de Berlin atrás de si. Thälmann era um trabalhador que ingressara no KPD por meio do SPD-Independente (USPD) e era dirigente do partido em Hamburgo.

No dia 10 de Janeiro, caiu o governo do SPD na Saxônia e o KPD conduziu uma campanha por uma frente única e um governo dos trabalhadores. Enquanto isso, a maioria do SPD defendia uma coalizão com partidos burgueses e apenas uma minoria de esquerda defendia a aliança com o KPD. Este, por sua vez, desenvolveu uma forte e vigorosa agitação e publicizou um “Programa dos Trabalhadores” que incluía as seguintes demandas: confisco das propriedades da antiga família real; armamento dos trabalhadores; desmantelamento do judiciário, da polícia e da administração governamental (parlamento); chamado por um congresso dos conselhos de fábricas e pelo controle dos preços pelos comitês eleitos.

Tais reivindicações ganharam apoio dentro do SPD, onde a ala esquerda tornou-se maioria. Ela aceitava o “Programa dos Trabalhadores” com apenas uma exceção: a dissolução do parlamento e a convocação de um congresso de conselhos de fábricas. Com base nisso, retirando esses pontos do programa, um governo do SPD foi criado com apoio do KPD.

Esse passo foi apoiado pela maioria do KPD, inclusive por Karl Radek, no momento uma importante figura dirigente da Internacional, mas bastante denunciado pela esquerda do KPD. Estes viam seu apoio ao governo da Saxônia não como uma tática momentânea para ganhar os trabalhadores social-democratas, mas como uma adaptação aos social-democratas de esquerda, os quais consideravam iguais aos de direita. Suas suspeitas não eram sem razão. Como mostraram os eventos ulteriores, em 21 de Outubro, Brandler desmantelou a insurreição em preparo porque os social-democratas diziam não estar prontos para apoiá-la.

No Ruhr, o KPD distanciava-se bastante do SPD, que dava amplo apóio à campanha de “resistência passiva” do governo de Wilhelm Cuno. O Governo Cuno, por sua vez, colaborava com as gangues paramilitares — apoiadas secretamente pelo exército e composta de elementos claramente fascistas — encorajando-as a realizar atos de sabotagem contra os franceses. Tais medidas atraíam reacionários e fascistas de toda Alemanha para o Ruhr. O SPD encontrou-se, portanto, em verdadeira aliança com tais forças.

O KPD denunciou o nacionalismo do SPD como um repetição de sua política de 1914, quando votou pelos créditos da guerra imperialista, e opôs-se fortemente a ela. Chamava pela luta tanto contra a ocupação francesa quanto contra o governo berlinense. Uma edição do Rote Fahne [Bandeira Vermelha — Jornal do KPD] trazia como manchete: “Lutar contra Poincaré e Cuno no Ruhr e em Spree”. Tais linhas logo se confirmaram, quando os trabalhadores começaram a se rebelar contra as insuportáveis condições sociais, protestando contra a ocupação francesa, contra os industrialistas locais, bem como contra o governo de Berlin.

Mas, logo os líderes da esquerda do KPD assumiram uma posição diferente, agitando-a nos encontros do partido em Ruhr. Ruth Fischer defendia um chamado para que os trabalhadores tomassem as fábricas e minas; pela tomada do poder político e o estabelecimento da República Democrática dos Trabalhadores do Ruhr. Esta República poderia, então, tornar-se base para um exército dos trabalhadores que, por sua vez, iria “marchar até a Alemanha central, tomar o poder em Berlin e destruir de uma vez por todas a contra-revolução nacionalista”. [8]

Sua linha era, na verdade, aventureira, repetição da ação de Março de 1921. Um levante no Ruhr teria permanecido isolado e sem apoio no resto da Alemanha. Além disso, o Ruhr estava cheio de organizações fascistas e paramilitares que não aceitariam passivamente um levante operário. Os franceses, por sua vez, olhavam com bons olhos os protestos contra o governo alemão, mas assumiriam outra posição em relação a uma insurreição operária.

Diante do crescimento da briga entre as facções do KPD, Zinoviev, então secretário da Internacional Comunista, convidou ambos os lados para Moscou, onde assumiram um compromisso. Assim, a Internacional concordava com o apoio dado ao SPD, embora criticasse algumas formulações do apoio, indicando que essa deveria ser uma tática apenas momentânea. Em relação ao Ruhr, rejeitou os planos de Fischer.

A resolução acordada, aprovada por unanimidade, não dava indicações de que a direção da Internacional estava atenta à velocidade dos eventos na Alemanha, ou mesmo que tirava muitas conclusões de tais eventos. Pelo contrário, a resolução dizia: “As diferenças surgidas do lento desenvolvimento revolucionário da Alemanha e das dificuldades objetivas às quais conduz, alimentam, simultaneamente, divergências de direita e de esquerda”. [9]

A “Linha Schlageter”

Em junho, Radek introduziu uma nova linha que, posteriormente, confundiu e desorientou o KDP — era a chamada “Linha Schlageter”.

O KPD preocupava-se, há certo tempo, com o crescimento do fascismo na Alemanha. Em 22 de outubro, Mussolini tomou o poder em Roma, após uma campanha violenta de seus destacamentos armados, os fasci, contra as organizações operárias e trabalhadores militantes.

Na Alemanha, anteriormente, a extrema-direita limitava-se apenas a remanescentes do exército imperial e a pequenos partidos anti-semitas. Mas, em 1923, começava a crescer e ganhar base social, embora muito menor que a de Hitler na década de 1930. Atividades contra os “Criminosos de novembro”, contra os judeus e estrangeiros encontraram apoio entre elementos deslocados da pequeno-burguesia, bem como entre alguns trabalhadores pauperizados pelo impacto da inflação. No Ruhr, membros da extrema-direita apresentavam-se como heróicos combatentes contra a ocupação francesa.

A Baviera, em particular, com suas largas áreas rurais, tornou-se praticamente um baluarte da extrema-direita. Após a repressão sangrenta à Republica Soviética de Munique, em 1919, a região tornou-se antro de organizações nacionalistas, fascistas e paramilitares.

Em 7 de abril, Albert Schlageter, um membro da Freikorps, foi preso pelo exército francês em Düsseldorf porque tinha participado de ataques com bomba a estradas de ferro. Foi sentenciado à morte por uma corte militar e executado em 26 de maio. A direita imediatamente o tornou um mártir. Na reunião do Comitê Executivo da Internacional Comunista (ECCI), em junho, Radek propôs que o KPD disputasse os trabalhadores e os elementos pequeno-burgueses seduzidos pelo fascismo, juntando-se a essa campanha e adaptando-se ao nacionalismo dos fascistas.

“As massas pequeno-burguesas, os intelectuais e técnicos que desempenharão um importante papel na revolução assumem a posição de um antagonismo nacional ao capitalismo, que os está relegando”, defendeu Radek. “Se nós queremos ser um partido dos trabalhadores, capaz de empreender a luta pelo poder, temos que achar um caminho que possa nos aproximar das massas, e devemos encontra-lo não por meio da diminuição de nossas responsabilidades, mas pela defesa de que a classe trabalhadora sozinha pode salvar a nação”. [10]

Mais tarde, na reunião, elogiou solenemente Schlageter que, enquanto “um valente soldado da contra-revolução”, ainda “merece sinceras homenagens da nossa parte, como soldados da revolução.” “O ocorrido a este mártir do nacionalismo alemão não deve ser esquecido, ou meramente honrado em breves palavras”, disse Radek. “Nós precisamos fazer de tudo para proteger os homens que, como Schlageter, estão prontos para dar suas vidas por uma causa comum, vindo a ser não viajantes no vazio, mas viajantes na direção de um futuro melhor para toda a humanidade”.

A Linha Schlageter foi eleita pela Rote Fahne e predominou por diversas semanas. Ela criou uma grande confusão entre as fileiras comunistas, as quais tinham resistido até então às pressões nacionalistas. Por outro lado, não há a mínima indicação de que tenha enfraquecido as fileiras nazistas — com a exceção de alguns poucos e desorientadas nacional-bolcheviques, que entraram para o KPD e criaram muitos problemas antes que fosse possível livrar-se deles novamente. A campanha-Schageter proveu de ampla munição a propaganda anticomunista do SPD e tornou muito difícil para o Partido Comunista Francês (PCF) organizar a solidariedade entre os soldados franceses para com os trabalhadores alemães.

A greve contra Cuno

Enquanto Radek desenvolveu a Linha Schlageter, a luta de classes na Alemanha se intensificou. Em junho e julho, agitações e greves contra a alta dos preços estouraram por todo o país. Participavam com freqüência centenas de milhares de trabalhadores, entre eles setores que nunca antes tinham participado de uma luta social. Para dar um exemplo: No começo de junho, 100.000 trabalhadores rurais e 10.000 diaristas entraram em greve em Brandenburgo

Em 8 de agosto, o Chanceler Cuno se dirigiu ao Reichstag [Parlamento]. Exigia novos cortes e ataques sobre a classe trabalhadora e combinava tais demandas com voto de confiança. O SPD buscava salvar-se abstendo-se de votar. Em seguida, tendo início em Berlim, desenvolveu-se uma espontânea onda de greves exigindo a renúncia do governo de Cuno. Em 10 de agosto, uma conferência de representantes de sindicatos, sob pressão do SPD, rejeitou o chamado por uma greve geral. Mas, no dia seguinte, uma conferência de conselhos de fábrica, apressadamente convocada pelo KPD, tomou a iniciativa e anunciou uma greve geral. Três milhões e meio de trabalhadores participaram. Em diversas cidades, aconteceram batalhas com os policiais e dezenas de trabalhadores mortos. No dia seguinte, o governo Cuno renunciou. As leis burguesas foram profundamente abaladas. “Nunca houve um período na história moderna alemã que foi tão favorável para uma revolução socialista como no verão de 1923”, escreveu Arthur Rosenberg. Momentaneamente, o SPD salvou a burguesia. Contra considerável resistência nas suas próprias fieiras, entrou num governo de coalizão liderado por Gustav Stresemenn do Deutsche Volkspartei (DVP — Partido Popular Alemão), um grande partido de negócios.

Preparando a revolução

Somente então, após as greves contra Cuno, em agosto, o KPD e a Internacional Comunista percebeu a oportunidade revolucionária que havia se desenvolvido na Alemanha. Em 21 de agosto — ou seja, exatamente dois meses antes da insurreição cancelada por Brandler — o Bureau Político do Partido Comunista Russo decidiu preparar-se para uma revolução na Alemanha. Formou uma “Comissão de Obrigações Internacionais” para supervisionar o trabalho na Alemanha. Ela era composta por Zinoviev, Kamenev, Radek, Stalin, Trotsky e Chicherin — e, depois, Dzerzhinsky, Pyatakov e Skolnikov.

Nos dias e semanas que se seguiram, houve numerosas discussões e contínua correspondência com os líderes do KPD, que freqüentemente viajavam a Moscou. Suporte financeiro, logístico e militar foi organizado para armar centenas de operários, preparados nos meses anteriores. Em outubro, Radek, Pyatakov e Skolnikov foram mandados para a Alemanha, para preparar o levante.

Mas foi Trotsky, acima de tudo, quem lutou incansavelmente para superar o fatalismo e a complacência existentes na seção alemã e no Partido Russo. Enquanto isso, Stalin escreveu a Zinoviev: “Na minha opinião, os alemães precisam ser contidos e não encorajados”, e “Para nós, seria uma vantagem os fascistas entrarem em greve antes”. Trotsky insistiu que e insurreição devia ser preparada em um período de semanas, ao invés de meses, e a data definitiva devia ser escolhida. [11]

O que a primeira vista parecia apenas uma proposta organizativa — a escolha de uma data — era, na realidade, uma grande proposta política. De acordo com a preocupação de Trotsky, a principal tarefa no momento era concentrar todas as energias e atenções do partido no preparo da revolução. De uma preparação propagandística mais geral, ela tinha de passar à preparação prática da insurreição.

Durante o encontro do Bureau Político do Partido Russo, em 21 de agosto, Trotsky disse: “O quão longe vai o ânimo das massas revolucionárias alemãs? A sensação de que estão no caminho da revolução — tal sentimento existe. O problema posto é o problema da preparação. O caos revolucionário não pode ser selado com borracha. A questão é: ou começamos a revolução, ou a organizamos”. Trotsky alertou sobre o perigo de que fascistas bem organizados poderiam esmagar ações descoordenadas de trabalhadores, e exigiu: “O KPD precisa escolher um tempo limite para a preparação, para a preparação militar e — em tempo correspondente — para agitação política”.

Tal linha sofreu maior oposição por parte de Stalin. Este argumentava contra um tempo planejado, alegando que “os trabalhadores continuam acreditando na Social-democracia” e que o governo poderia durar por outros oito meses. [12]

Brandler, em uma carta para o Comitê Executivo da Internacional datada de 28 de agosto, também sustentava um longo período: “Eu não acredito que o governo Stresemann vai viver muito mais”, escreveu. “Entretanto, não acredito que a próxima onda, que já se aproxima, vai decidir a questão do poder. (...) Nós devemos tentar concentrar nossas forças para que possamos, se for inevitável, assumir a luta em seis semanas. Mas, ao mesmo tempo, fazer os preparativos para estarmos prontos com o trabalho mais sólido em cinco meses”. Além disso, acrescentou que acreditava que um período de seis a oito meses seria o mais provável. [13]

Em discussões posteriores entre a comissão russa e a liderança alemã, um mês depois, Trotsky voltou ao assunto do cronograma. Interrompeu a discussão sobre a posição a respeito do problema do Ruhr, e disse: “Eu não compreendo por que tanta relevância é dada para o caso Ruhr. (...) O problema, agora, é tomar o poder na Alemanha. Essa é a tarefa, o restante decorrerá disso”.

Trotsky respondeu, então, às preocupações de que os trabalhadores alemães lutariam por reivindicações econômicas, mas não tão facilmente por objetivos políticos. “A inibição política é nada mais que certa dúvida, por conta das marcas que as derrotas anteriores deixaram no cérebro das massas”, disse. “O partido só pode ganhar a classe trabalhadora alemã para a luta revolucionária decisiva — e a situação está aqui, agora —, se convencer uma larga seção da classe trabalhadora, sua direção, de que também é organizacionalmente capaz de liderar a vitória no sentido mais concreto da palavra... A expressão de tendências fatalistas pelo partido, aí é que está o grande perigo”.

Trotsky explicou, em seguida, que o fatalismo pode assumir diferentes formas: primeiro, se diz que a situação é revolucionária, o que é repetido todos os dias. Isso se torna usual e a política passa a ser esperar pela revolução. Então, se dá armas aos trabalhadores e se diz que isso levará ao conflito armado. Mas, ainda assim, é apenas o “fatalismo armado”.

Através da informação repassada por seus camaradas alemães, Trotsky concluiu que eles concebiam a tarefa como fácil demais. “Se a revolução é para ser mais do que uma perspectiva confusa”, disse ele, “se é para ser a tarefa principal, deve ser tomada por uma tarefa prática, organizativa... É preciso estabelecer uma data, preparar e lutar.” [14]

Em 23 de setembro, Trotsky publicou, inclusive, um artigo no Pravda: “Pode uma Contra-revolução ou Revolução ser Feita com Tempo Marcado?” Trotsky discutia a questão em termos gerais, sem mencionar a Alemanha, já que o pedido de definição de uma data para a revolução alemã por um representante-chave da direção, como ele, poderia provocar uma crise internacional ou mesmo uma guerra. Mas, mesmo assim, o artigo é uma contribuição à discussão sobre a Alemanha.

A revolução perdida

Uma data para o levante foi finalmente definida: 9 de novembro. Mas, os eventos ganhavam velocidade.

Em 26 de setembro, o chanceler Stresemann anunciou o fim da resistência passiva contra a ocupação francesa do Vale do Ruhr. Argumentou que não havia outra maneira de controlar a hiperinflação. Isso provocou a extrema-direita. No mesmo dia, o governo da Baviera decretou estado de emergência e instalou uma ditadura liderada por Ritter von Kahr. Von Kahr colaborou com os nazistas de Hitler e, imitando a marcha de Mussolini sobre Roma, planejou uma marcha em Berlim para instalar uma ditadura nacional. Kahr tinha o apoio do comandante das tropas da Reichswehr [Defesa do Império], posicionadas na Baviera.

O governo de Berlim reagiu estabelecendo sua própria forma de ditadura. Todo o poder executivo foi transferido ao Ministro da Defesa, que o delegou ao General Hans von Seeckt, comandante da Reichswehr. Seeckt simpatizava com a extrema-direita e se recusava a disciplinar os comandantes bávaros rebelados. Líderes industriais, como Hugo Stinnes, apoiavam o plano de uma ditadura nacional, optando por Seeckt como ditador.

Em 13 de outubro, o Reichstag, depois de vários dias de discussão, aprovou um ato autorizando a abolição pelo governo das conquistas sociais da revolução de novembro, incluindo a jornada de 8 horas. O SPD votou a favor do ato. Enquanto os ministros do SPD e outros planejavam novos ataques aos direitos dos trabalhadores, um golpe que lhes poderia custar a vida era preparado.

A Saxônia e a Turíngia eram os centros da resistência da classe trabalhadora contra tais preparações contra-revolucionárias. Nos dois estados, em 10 e 16 de outubro, respectivamente, o KPD juntou-se aos governos da esquerda do SPD. Isso era parte do plano elaborado em Moscou. Pela entrada em um governo de coalizão, o KPD esperava fortalecer sua posição e ter acesso a armas.

Mas, apesar do fato de que ambos os governos eram formados de acordo com a lei existente e dirigidos por uma maioria parlamentar, o comandante da Reichswehr na Saxônia, General Müller, se recusava a reconhecer a autoridade de ambos os governos. Em concordância com o governo berlinense, submeteu a polícia ao seu próprio comando.

Ameaçado pela Baviera, que faz fronteira com a Saxônia e a Turíngia no sul, e pelo governo central em Berlim, situado ao norte, o KPD teve de adiantar seus planos para a revolução. Chamou um congresso de conselhos de fábrica em Chemnitz, Saxônia, no dia 21 de outubro. O congresso deveria convocar uma greve geral e dar o sinal para a insurreição em toda a Alemanha.

Mas, como os social-democratas de esquerda não concordavam, Brandler cancelou os planos e interrompeu o levante. A maioria dos delegados teriam apoiado a convocação da greve geral, como Brandler escreveu em uma carta privada a Clara Zetkin, sua confidente próxima. Mas, mesmo assim, ele não quis agir sem o apoio dos social-democratas de esquerda.

“Durante a conferência de Chemnitz eu percebi que não poderíamos, sob quaisquer circunstâncias, partir para a luta decisiva, uma vez que não havíamos conseguido convencer a esquerda do SPD a assinar a decisão de greve geral”, escreveu Brandler. “Contra a massiva resistência, eu mudei o curso e evitei que nós, Comunistas, fossemos ao combate sozinhos. É claro que poderíamos ter recebido uma maioria de dois terços em favor de uma greve geral na conferência de Chemnitz. Mas, o SPD teria deixado a conferência, e seus slogans confusos, sobre como a intervenção do Reich contra a Saxônia tinha simplesmente o propósito de ocultar a intervenção do Reich contra a Baviera, teriam quebrado nosso espírito de luta. Então, eu conscientemente lutei por um compromisso desagradável”. [15]

A decisão de cancelar a revolução não chegou em Hamburgo a tempo. Lá, uma insurreição foi organizada, mas permaneceu isolada e foi derrotada dentro de 3 dias.

Embora o congresso de Chemnitz ainda estivesse reunido, o Reichswehr começou a ocupar a Saxônia. Conflitos armados causaram a morte de vários trabalhadores. Em 28 de outubro, o presidente Friedrich Ebert — um social-democrata — deu ordens ao Reichsexekution contra a Saxônia. Ordenou a remoção forçada do governo da Saxônia — encabeçado por Erich Zeigner, também um social-democrata — pelo Reichswehr. A indignação pública foi tão massiva, que o SPD foi obrigado a retirar-se do governo Stresemann em Berlim. Alguns dias depois, o Reichswehr entrou na Turíngia e removeu o governo local.

A deposição desses dois governos de esquerda por Ebert e Seeckt encorajou a extrema-direita da Baviera. No dia 8 de novembro, Adolf Hitler proclamou a “revolução nacional” em Munique e ensaiou um golpe. Seu objetivo era forçar o ditador da Baviera, Kahr, a marchar em Berlim e, lá, tomar o poder. Hitler foi apoiado pelo General Ludendorff, um dos mais altos comandantes militares da Primeira Guerra Mundial.

O golpe Hitler-Ludendorff falhou. Berlim já havia se movido tanto para a direita que a direita da Baviera não precisava mais de uma figura tão dúbia como Hitler. Ebert se acomodou ao golpe, delegando o comando sobre todas as forças armadas e o poder executivo a Seeckt. Embora as instituições da República de Weimar ainda existissem formalmente, a Alemanha seria, então, governada por uma ditadura militar de facto até março de 1924.

Por que o KPD perdeu a revolução?

Uma fácil resposta a esta pergunta é lançar toda a culpa sobre Brandler. Essa foi a reação de Zinoviev e de Stálin, que o transformaram num bode expiatório. Simultaneamente, acusaram o KPD (Partido Comunista Alemão) de ter fornecido informações erradas sobre a situação na Alemanha, informações exageradas sobre seu potencial revolucionário. Desse modo, contestaram toda a avaliação sobre a qual havia se baseado o plano de insurreição.

Menos de três semanas após a insurreição ser abortada, Stálin e Zinoviev começaram a reinterpretar os eventos na Alemanha. Assim o fizeram para encobrir seus próprios papeis no processo e iniciar seu combate fracional contra a Oposição de Esquerda, que começava a se articular (em 15 de outubro, surgia o primeiro documento importante da Oposição de Esquerda, a Declaração dos 46. Ao final de novembro, Trotsky escrevia O Novo Curso).

Trotsky rejeitou a abordagem simplista feita por Zinoviev e Stálin. Mesmo não concordando com a decisão de Brandler de abortar a insurreição, não a tomava como um evento isolado. Ao final do processo, Karl Radek, que estava presente em Chemnitz como representante da Internacional Comunista (Comintern ou III Internacional), bem como o Zentrale alemão, a direção central do partido, também concordavam com Brandler.

A insistência de Brandler de que a revolução falharia — e de que os comunistas ficariam isolados caso começassem a insurreição sem o apoio dos social-democratas de esquerda — estava de acordo com erros anteriores atribuídos não somente a Brandler, mas à Internacional como um todo. Tanto a Internacional, dirigida por Zinoviev, quanto a direção do KPD (seu setor majoritário e seu setor esquerdista) desempenharam por longo tempo um papel passivo, tipicamente “centrista” diante dos eventos na Alemanha. Apesar das condições sociais e políticas terem mudado enormemente após a ocupação francesa do Ruhr, em janeiro, eles continuaram trabalhando com os métodos desenvolvidos no ano anterior, quando a revolução não estava imediatamente na agenda do partido.

Foi somente após longo tempo, no meio dos eventos de Agosto, que mudaram de curso e começaram a preparar a insurreição. Isso deu-lhes apenas dois meses para o preparo, mas este era de caráter insuficiente, hesitante e deslocado.

Trotsky, num pronunciamento feito ao Congresso dos Trabalhadores Médicos e Veterinários da URSS em junho de 1924, comentou o seguinte sobre a derrota: “Qual foi a causa fundamental da derrota do Partido Comunista Alemão?”, perguntou. “Esta: não apreciaram corretamente e no momento certo a crise revolucionária que se abriu com a ocupação do vale do Ruhr e, especialmente, após o final da resistência passiva (janeiro-junho de 1923). Perderam o momento crucial... Mesmo após o ataque ao Ruhr, continuaram com seu trabalho de agitação e propaganda com base na fórmula de Frente Única anterior ao ataque. Nesse meio tempo, a fórmula havia se tornado completamente insuficiente. A influência política do partido crescia automaticamente. Uma modificação tática era necessária”.

“Era necessário mostrar às massas, e acima de tudo ao partido, que se tratava, no momento, da imediata preparação para a tomada do poder. Era necessário consolidar e dar forma organizativa à crescente influência do partido, para estabelecer as bases de apoio para a tomada direta do estado. Era necessário transferir toda a organização do partido para as bases das células operárias. Era necessário formar novas células nas estradas-de-ferro. Era necessário suscitar o quanto antes a questão do trabalho dentro do exército. Era necessário, extremamente necessário, adaptar a tática de Frente Única total e completamente a essas questões, dar-lhe um prazo mais decidido e resoluto, bem como um caráter mais revolucionário. Nessa base, um trabalho técnico-militar certamente poderia ter sido levado adiante...”

“A coisa mais importante, entretanto, era esta: garantir em tempo a mudança tática decisiva para a tomada do poder na Alemanha. O que não foi feito. Essa foi a principal — e fatal — omissão. Dela surgiu a contradição central. De um lado, o partido esperava uma revolução, enquanto que, de outro, por ter perdido os dedos nos eventos de março [Trotsky se refere a 1921], evitou, até os últimos meses de 1923, a idéia de organizar a revolução, ou seja, preparar a insurreição. A atividade política do partido estava carregada de uma atmosfera pacífica, num momento em que a cena final se aproximava.”

“A data para a insurreição foi finalmente fixada quando, como um todo, o inimigo já havia se valido do tempo perdido pelo partido para fortalecer sua posição. A preparação técnica-militar do partido, que começou numa velocidade febril, estava divorciada da atividade política do partido, que esteve anteriormente carregada por uma atmosfera pacífica. As massas não compreendiam o partido e não avançaram o passo junto dele. O partido sentiu-se subitamente separado das massas, e ficou paralisado. Disso resultou a imediata retirada da linha de frente, sem mesmo haver combate — a pior de todas as derrotas.” [16]

Teria sido possível organizar uma insurreição vitoriosa em todo o país em 1923?

Há um grande número de relatos de dirigentes comunistas alemães, assim como de líderes e especialistas militares da III Internacional, presentes na Alemanha no momento, que declaram haver um péssimo preparo para a insurreição. Os destacamentos de luta — conhecidos como Centenas de Revolucionários — estavam formados e treinados, mas mal possuíam armas. O aparato de propaganda do KPD — devido às perseguições e à repressão — estava em estado lastimável. A comunicação e a coordenação do partido entre as diversas regiões funcionavam muito mal.

Por outro lado, os trabalhadores que lutaram e Hamburgo demonstraram um alto grau de coragem, disciplina e eficiência. Apenas 300 trabalhadores lutaram nas barricadas, mas alcançaram uma larga e positiva — embora passiva — resposta por parte da população.

Em seu pronunciamento aos trabalhadores médicos e veterinários, Trotsky ressaltou que a própria dinâmica do processo revolucionário deve ser levada em conta. “Os comunistas tinham atrás de si a maioria das massas trabalhadoras?”, perguntou. “Essa é uma questão que não pode ser respondida por meio de estatísticas. Somente pode ser respondida pela dinâmica da revolução”.

“As massas estavam com um espírito de luta?”, continuou Trotsky. “Toda a história do ano de 1923 não deixa dúvida sobre isso”. E concluiu: “Sob tais condições, as massas apenas poderiam seguir adiante se existisse uma direção firme, auto-confiante, assim como uma confiança das massas nessa direção. Discussões a respeito do ânimo das massas, se era de luta ou não, possuem um caráter muito subjetivo e expressam essencialmente a falta de confiança entre os líderes do próprio partido”. [17]

As lições de outubro

A capitulação sem luta foi certamente o pior resultado possível dos eventos alemães. Ela desmoralizou e desorganizou o KPD e criou as condições em que a elite dominante e os militares puderam continuar com a ofensiva e consolidar seu poder. Trotsky, então, insistiu que as lições da derrota alemã deviam ser tiradas duramente. Ele rejeitou os argumentos dos bodes-expiatórios isolados, que eram somente para evitar as discussões políticas mais fundamentais. Tirar tais lições não era somente indispensável para preparar a liderança alemã para as oportunidades revolucionárias futuras, que inevitavelmente surgiriam, mas também era crucial para todas as seções do Internacional, que se deparariam com desafios e problemas muito similares.

Trotsky notou que as lições da Revolução Russa de Outubro — a única revolução proletária bem sucedida na história — nunca tinham sido devidamente traçadas. No verão de 1924, publicou o livro Lições de Outubro, examinando o bem sucedido Outubro Russo sob a luz da derrota do outubro alemão.

Ele insistiu na necessidade “de estudar as leis e métodos da revolução proletária”. Insistiu que existem questões que todo Partido Comunista deve enfrentar quando entrar num período revolucionário: “Regra geral, as crises no partido surgem a cada mudança importante, como seu prelúdio ou conseqüência. É que cada período de desenvolvimento do partido tem os seus traços especiais, exigindo determinados hábitos ou métodos de trabalho. Uma mudança tática acarreta uma ruptura mais ou menos importante nestes hábitos e métodos: aí reside a causa direta das frações e das crises internas ao partido”.

Trotsky então cita Lenin, que escreveu em julho de 1917: “A uma mudança brusca da história acontece muito frequentemente, até aos partidos avançados, não chegarem a se habituar à nova situação num maior ou menos espaço de tempo, repetindo as palavras de ordem que, embora justas ontem, hoje perderam todo o seu sentido; coisa que acontece tão ‘subitamente' quanto a mudança histórica.”

“Conseqüentemente”, concluiu Trotsky, “surge o perigo: se a mudança tiver sido demasiadamente brusca ou inesperada e o partido posterior tiver acumulado demasiados elementos de inércia e de conservadorismo em seus órgãos dirigentes, este revelar-se-á incapaz de assumir a direção no momento mais grave, para o qual se preparou durante anos ou dezenas de anos. O Partido deixar-se-á corroer por uma crise e o movimento se processará sem objetivo, semeando a derrota.”

“Ora, a mudança mais brusca é aquela em que o partido do proletariado passa da preparação, propaganda, organização e agitação para a luta direta pelo poder, à insurreição armada contra a burguesia. Tudo o que há de irresoluto, cético, conciliador e capitulacionista no interior do partido ergue-se contra a insurreição e busca fórmulas teóricas para a sua oposição, encontrando-as já preparadas nos adversários de ontem, os oportunistas. Ainda vamos ter que observar muitas vezes este fenômeno no futuro.” [18]

Zinoviev e Stalin rejeitaram a análise de Trotsky. Guiados por motivos fracionários e subjetivos, falsificaram os eventos na Alemanha, cobrindo seus próprios rastros e fazendo de Brandler o bode-expiatório para todos os erros. As conseqüências foram desastrosas. A direção do KPD foi trocada — pela quinta vez em cinco anos — sem qualquer lição ser tirada do processo.

Como Radek apontou — em disputa acalorada com Stalin numa reunião do Comitê Central do partido Russo, em janeiro de 1924 — quadros marxistas experientes foram trocados tanto por pessoas que tinham experiência no centrista USPD (SPD-Independente) quanto por pessoas que mal tinham experiência revolucionária. Henirich Brandler, um membro fundador da Liga Espártaco (Spartakusbund) com uma história de 25 anos no movimento, foi substituído por Ruth Fischer e Arkadi Maslow, jovens intelectuais vindos de um rico ambiente burguês e sem passado revolucionário. A maioria do grupo central, que agora formaria a nova direção, havia entrado no KPD apenas em dezembro de 1920, quando a esquerda do centrista USPD se uniu ao KPD.

A mudança na direção “acertou” o caminho — após perseguições e novas modificações nos anos seguintes — para a total subordinação do KPD aos ditados de Stalin. Tal fato revelou ter conseqüências devastadoras 10 anos depois, quando a desastrosa linha do KPD pavimentou o caminho de Hitler ao poder. O alinhamento de Stalin com a esquerda de Fischer e Maslow foi particularmente cínico, uma vez que ele sempre havia ajudado as posições mais direitistas durante o andamento dos eventos. Stalin ganhou a aliança de Maslow, que estava sob investigação por ter dado informação à polícia durante os eventos de março de 1921, assegurando que estaria limpo das acusações.

Até mesmo a teoria do social-fascismo, que iguala a social-democracia ao fascismo, achou sua primeira expressão num documento sobre os eventos alemães, esquematizado por Zinoviev e adotado pelo presidente do Comitê Executivo da Internacional contra a resistência da Oposição de Esquerda em janeiro de 1924. O documento diz: “As camadas dirigentes da social-democracia alemã apresentam nada mais que uma facção do fascismo alemão sob uma máscara socialista”. [19]

Depois que o partido falhou em mover a tempo da tática de Frente Única à da luta pelo poder, Zinoviev e Stalin rejeitaram a Frente Única como um todo. A teoria do social-fascismo, que rejeita qualquer forma de Frente Única com o SPD contra os nazistas, foi revivida em 1929 e teve um papel importante no desarmamento da classe trabalhadora na luta contra o fascismo.

Em 1928, Trotsky mais uma vez repetiu as lições básicas do Outubro Alemão. Criticando o esquema de programa para o Sexto Congresso da Internacional Comunista, escreveu: “O papel do fator subjetivo em um período de desenvolvimento lento e orgânico pode permanecer um tanto subordinado. Assim, muitos provérbios de sobre a graduação do processo podem surgir, como: ‘devagar, mas certo' e ‘não adianta dar murro em ponta de faca' e muitos outros, que resumem toda a sabedoria tática de nossa época, que abomina ‘pular etapas'. Mas, no momento em que as condições objetivas estão maduras, a chave de todo o processo histórico passa para a condição subjetiva, que é o partido. O oportunismo, que consciente ou inconscientemente desenvolve-se com inspiração em épocas passadas, sempre tenta subestimar o papel do fator subjetivo, que é: a importância do partido e da direção revolucionária. Tudo isso nos foi completamente revelado nas discussões a respeito do Outubro Alemão, no Comitê Anglo-Russo e na Revolução Chinesa. Em todos esses casos, assim como em outros de menor importância, a tendência oportunista evidenciou-se ao adotar uma via que cabia somente às ‘massas', desprezando por completo o ‘topo' da direção revolucionária. Tal atitude, que é falsa como um todo, opera com um efeito certamente fatal na época imperialista.” [20]

Notes:
1. Leon Trotsky, The Lessons of October, in The Challenge of the Left Opposition (1923-25), p. 201.

2. Arthur Rosenberg, (Entstehung und Geschichte der Weimarer Republik, Frankfurt am Main: Athenäum 1988), p. 395.

3. Ibid., p. 402.

4. Hermann Weber, (Die Wandlung des deutschen Kommunismus, Band 1, Frankfurt 1969), p. 43.

5. Rosa Luxemburg, (Rückblick auf die Gothaer Konferenz, in Gesammelte Werke, Band 4, Berlin 1974), p. 273.

6. Ibid., p. 274.

7. Leon Trotsky, (The Third International After Lenin, New Park: 1974), pp. 66-67.

8. Citado por Pierre Broué (The German Revolution 1917-1923, Haymarket Books: 2006) p. 702.

9. Citado por Broué, ibid., p. 705.

10. Citado por Broué, ibid., p. 726.

11. Bernhard H. Bayerlein u.a. Hsg., (Deutscher Oktober 1923. Ein Revolutionsplan und sein Scheitern, Berlin: 2003) p. 100.

12. Ibid., pp. 122-27.

13. Ibid., pp. 135-136.

14. Ibid., pp. 165-167.

15. Ibid., pp. 359. 16. Leon Trotsky, [Through What Stage Are We Passing, in The Challenge of the Left Opposition (1923-25), Pathfinder Press, 1975], pp. 170-71.

17. Ibid., p. 169.

18. Leon Trotsky, (Lessons of October, New Park Publications, 1971), pp. 4-7.

19. Bernhard H. Bayerlein u.a. Hsg., (Deutscher Oktober 1923. Ein Revolutionsplan und sein Scheitern, Berlin: 2003), p. 464.

20. Leon Trotsky, (The Third International after Lenin, New Park, 1974), p. 64.

Loading