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A crise da “Revolução Bolivariana” da Venezuela e a independência política da classe trabalhadora

Publicado originalmente em 25 de maio de 2013

Um mês após uma acirrada eleição presidencial, a Venezuela permanece em um estado de crise política. Após a vitória de Nicolas Maduro, o sucessor escolhido a dedo do falecido Hugo Chávez, que liderou o país por 14 anos em sua autoproclamada “Revolução Bolivariana”, assistiu à oposição de direita, com o apoio da administração Obama, em Washington, implacavelmente contestando a validade da votação e a legitimidade da presidência de Maduro.

Estes desafios, vindo do establishment dominante dos EUA, que instalou um presidente não eleito em 2000 pela anulação do voto popular, e dos representantes da direita dos capitalistas venezuelanos, que buscou - com o apoio de Washington - derrubar o governo eleito de Chávez com um golpe de Estado em 2002, é totalmente cínico e reacionário.

Enquanto Maduro derrotou seu rival de direita Henrique Capriles por apenas algumas centenas de milhares dos quase 15 milhões de votos válidos, a direita não apresentou qualquer prova válida de fraude eleitoral ou de eleição roubada. Suas primeiras tentativas para chamar as massas às ruas contra os resultados supostamente fraudulentos produziu esparsos protestos, bem como uma série de ataques de bandos fascistas que deixaram nove mortos e dezenas de feridos.

Ao mesmo tempo, é evidente que as condenações contra a direita por Maduro e pelo movimento chavista e suas acusações de uma tentativa de golpe tampouco produziram qualquer grande mobilização popular em favor do governo. Isto está em contraste com a manifestação popular espontânea de abril de 2002, que desempenhou um papel decisivo na derrota do genuíno golpe daquele ano.

A questão politicamente primordial da eleição é explicar a acentuada mudança na votação de outubro do ano passado, quando o presidente Chávez venceu o candidato da direita, Capriles, por 55% contra 44%, comparado com o voto de 14 de abril, em que Maduro superou o mesmo candidato por apenas 1,7% dos votos.

Isso não pode ser atribuído apenas à morte de Chávez e ao fracasso de Maduro, que concorreu como “filho” do falecido presidente - ao apresentar o mesmo tipo de carisma populista daquele do falecido comandante.

Em vez disso, sob condições em que a classe trabalhadora venezuelana carece de seu próprio partido de massas independente, a crescente hostilidade contra o governo “Bolivariano” entre amplas camadas de trabalhadores e outros setores de oprimidos encontrou sua expressão em um aumento do voto de protesto para a direita.

As razões dessa ira popular não são de forma nenhuma obscuras. A taxa de inflação mais alta da América Latina, juntamente com a desvalorização da moeda de 31,75% em fevereiro passado, se combinaram para reduzir os salários reais dos trabalhadores. Os serviços sociais, incluindo as missões populares de assistência social que serviram para redistribuir algumas das receitas do petróleo da Venezuela para os setores mais oprimidos da população, têm se deteriorado.

Enquanto isso, há cada vez mais consciência da corrupção dentro do governo e do partido dominante PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela) e dos lucros recordes da aristocracia financeira e dos bancos, que ainda controlam os postos de comando da economia, 71% dos quais permanece em mãos privadas.

Entre os setores organizados da classe trabalhadora, há uma crescente indignação com a criminalização de greves e dos protestos e a recusa do governo em negociar contratos há muito tempo vencidos, bem como o ódio aos burocratas bolivarianos que trabalham para subordinar seus interesses ao do partido no poder.

Setores da América Latina e da “esquerda” internacional têm respondido da mesma forma. Em vez de tirar a lição dos resultados eleitorais de que a tarefa inadiável é a construção de um partido revolucionário independente da classe trabalhadora em oposição a todos os setores da classe capitalista dominante da Venezuela, tanto chavista como os de direita, exigem apoio incondicional ao governo da Venezuela e a subordinação dos trabalhadores venezuelanos à liderança de Maduro.

Em essência, eles culpam a classe trabalhadora pelo fortalecimento da direita e em resposta defendem que o Estado realize a repressão.

Um exemplo desta tendência é o grupo brasileiro Movimento Negação da Negação (MNN).

Após as eleições venezuelanas, o MNN publicou dois artigos no seu site. O primeiro, intitulado “A luta de classes na Venezuela: conflito crescente com o imperialismo”, coloca toda a culpa pela queda acentuada na votação chavista em um “jogo pesado, sujo e sistemático do imperialismo para desestabilizar o governo e influenciar no resultado das eleições.”

O artigo de forma não crítica cita a acusação de Maduro de que os apagões sistemáticos que têm assolado a Venezuela há anos são o resultado de uma “guerra de eletricidade” e “sabotagem” realizada por opositores anônimos do governo, ao invés do fracasso do governo em investir recursos suficientes na modernização de uma infraestrutura antiquada, em condições em que a riqueza tem sido desviada para pagar uma compensação generosa para os antigos proprietários de indústrias nacionalizadas e para aumentar os lucros dos bancos venezuelanos e estrangeiros.

A resposta do novo governo Maduro foi colocar o setor elétrico sob a supervisão de militares do país. Ao mesmo tempo, a mais recente “missão” anunciada por Maduro chama-se “Segurança Interna” e vai mobilizar o exército regular e tropas da Guarda Nacional para realizar o policiamento interno.

Para o MNN, essas medidas são bem-vindas. O grupo elogiou Maduro por proibir manifestações em Caracas, afirmando que, caso contrário, “possíveis novos conflitos teriam aberto uma espiral de instabilidade cujo resultado seria incalculável.” Em outras palavras, ele coloca a sua confiança nas forças repressivas do Estado, e não na força independente da classe trabalhadora.

O artigo continua a justificar uma “política de unidade tática com o governo Maduro”, com os argumentos de que “o próprio Maduro tem origem na classe trabalhadora e no movimento sindical” e, “pela primeira vez na história do chavismo, um operário assumia o controle das forças armadas, demarcando uma nova etapa”.

Para uma organização brasileira que se diz socialista e revolucionária, fazer tal afirmação é indicativa da profunda desorientação política e oportunismo da esquerda pequeno-burguesa na América Latina. Afinal de contas, de 2003 a 2011, o Brasil também teve um presidente que veio “da classe trabalhadora e do movimento sindical”. Luiz Inácio Lula da Silva presidiu o crescimento recorde do capital brasileiro e os lucros extraídos do trabalho dos trabalhadores brasileiros, deixando intocado o setor militar que exerceu duas décadas de ditadura.

A sugestão de que a resposta a uma ameaça do imperialismo e da direita venezuelana é se juntar ao presidente da “classe trabalhadora” e aos militares que ele “controla” é politicamente equivocada, para dizer o mínimo.

São os militares venezuelanos - a partir do qual o ex-coronel paraquedista Hugo Chávez surgiu - que exercem o controle decisivo sobre o governo e funcionários e de uma grande parcela de cargos políticos. Se um golpe está por vir, será a partir desta coluna política do chavismo, com o surgimento de um Pinochet venezuelano dentre o “bolivariano” corpo de oficiais. A linha promovida pelo MNN serve para desarmar politicamente a classe trabalhadora venezuelana diante de tal ameaça.

A realidade política é que os trabalhadores venezuelanos podem contar apenas com sua própria força independente para defender as conquistas sociais do período passado e derrotar a ameaça de um golpe de direita. Na medida em que eles permanecerem politicamente algemados ao PSUV e ao governo Maduro, eles serão incapazes de fazer qualquer coisa.

O artigo do MNN adota um tom provocativo nomeadamente a esse respeito. Depois de fazer a defesa para uma “frente com Maduro”, isto é, uma frente popular entre a classe trabalhadora e um governo burguês, ele passa a denunciar qualquer um que se oponha a essa frente.

O artigo condena como “puristas” aqueles que optaram por não “sujar as mãos chamando voto em Maduro e defenderam o voto nulo em abril. Assim se posicionaram, inclusive, grande parte dos chamados ‘trotskistas’ que atuam na Venezuela. Na prática, serviram de instrumento para Capriles e seus golpistas.”

Aqui o MNN ressuscitou a linguagem do stalinismo durante o período da Frente Popular, quando os trotskistas e outros que lutaram pela independência política da classe trabalhadora foram denunciados como fascistas e agentes do imperialismo.

Em seu segundo artigo, o MNN saúda a retórica de Maduro em seu discurso de posse sobre a realização do socialismo na Venezuela. No mesmo discurso, ele contou como “estendeu a mão” para os capitalistas venezuelanos. Ele também anunciou que seu governo estava trabalhando em zonas econômicas especiais, permitindo implementar o “muito interessante” exemplo da província chinesa de Guangdong, um enorme centro de super-exploração do trabalho pelo capital estrangeiro chinês.

O artigo continua equiparando os conselhos comunitários e os conselhos operários, criados pelo governo venezuelano para consolidar seu controle político nos bairros pobres e reprimir a militância dos trabalhadores nas empresas estatais, com os conselhos de trabalhadores defendidos por Marx como organizações independentes para a mobilização da classe trabalhadora para tomar o poder. Com base nesta falsa premissa, levanta a possibilidade de que Maduro vai expropriar todas as empresas capitalistas, destruir o Estado existente e governar na base desses conselhos.

Não há nada de novo aqui. É apenas a reciclagem de ilusões semelhantes promovidas pelas tendências revisionistas de esquerda e pablistas pequeno-burgueses da América Latina e internacionalmente nas tendências nacionalistas burguesas que vão desde o peronismo na Argentina, a FLN na Argélia e o castrismo em Cuba. Todos estes elementos rejeitam o papel revolucionário independente da classe operária e buscam um comandante para liderar a revolução.

Seja quais forem as ilusões que o MNN tem em Maduro de realizar uma revolução socialista, elas não são compartilhadas pela burguesia brasileira. Brasília foi uma das primeiras paradas estrangeiras de Maduro após a eleição, e ele recebeu calorosas boas-vindas estatais do governo da presidente Dilma Rousseff. A visita vislumbrou a negociação de novos contratos de bilhões de dólares com o conglomerado brasileiro Odebrecht e outras seções do capital brasileiro, que vê o mercado venezuelano como estrategicamente vital.

O que é notável sobre a posição do MNN na Venezuela é a reviravolta que a organização tem executado. Tão recentemente quanto no ano de 2009, o mesmo grupo escreveu que a “chamada Revolução Bolivariana” era “uma farsa, um verdadeiro Estado Bonapartista e autoritário que caminha a passos largos para um regime fascista”.

O que mudou no intervalo de quatro anos? A prolongada crise do capitalismo mundial e do crescimento da luta de classes internacional teve um impacto definitivo sobre uma camada inteira de organizações políticas que se proclamam de esquerda, socialista e até mesmo trotskista.

Na medida em que tal tendência se baseia em cálculos de um caráter totalmente nacionalista e tático, ao invés de se basear nas experiências estratégicas do movimento trotskista internacional ao longo do século XX e do Comitê Internacional da Quarta Internacional ao longo dos últimos 60 anos, isso inevitavelmente acontece sob imensas pressões de classe e está condenada a cometer erros políticos e traições.

O preço político terrível a ser pago por tal orientação é a mudança de sua linha política em alinhamento com as necessidades de suas “próprias” classes dominantes. Esse é o perigo evidente na evolução da perspectiva do MNN na Venezuela.

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