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Perspectivas

O 4 de Julho de Trump: discurso militarista de um sistema em crise

Publicado originalmente em 6 de Julho de 2019

O discurso do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, na quinta-feira passada, pretendia ser uma demonstração do poder e da grandeza militares, da dominação duradoura e invencível do capitalismo estadunidense, de uma ordem que, nas palavras finais de Trump, “nunca desaparecerá, nunca falhará, mas reinará para todo o sempre.” Em vez disso, o espetáculo grotesco expôs um sistema social e político com os seus dias contados.

A reação da mídia e do establishment político ao discurso de Trump foi amplamente favorável. Trump, segundo eles, renunciou o partidarismo e a política. Em vez disso, nas palavras do artigo principal do New York Times de sexta-feira, ele “usou o Lincoln Memorial como cenário para homenagear as forças armadas do país e pedir unidade, coisa que tem estado ausente em sua presidência divisiva”.

Ao contrário da “mensagem sombria de denúncia e os ataques contra seus inimigos” do discurso de reeleição no mês passado, escreve o Times, o discurso de quinta-feira “ofereceu um tom diferente e mais otimista”.

Antes do discurso, as críticas dos democratas aos planos de Trump concentravam-se em preocupações de que ele “politizaria” as forças armadas, procurando usá-las como um instrumento em seu ataque aos democratas e à mídia. As forças armadas, de acordo com essa narrativa, devem permanecer “acima da política” e “apartidárias” – quer dizer, seja qual for a mudança de governo e de funcionários, os imperativos geoestratégicos do imperialismo estadunidense e os instrumentos de violência que os sustentam devem permanecer inalterados. Um “chamado pela unidade” nessa base não provocou objeções dos representantes da classe dominante, não importa quão ruim esse chamado tenha sido ou quanta história ele tenha distorcido.

Trump apresentou uma narrativa que eleva os militares à suprema força moral e política unificadora da vida estadunidense. “Hoje, exatamente como aconteceu há 243 anos, o futuro da Liberdade dos EUA repousa sobre os ombros de homens e mulheres dispostos a defendê-la”, proclamou Trump. Após os sobrevoos de aeronaves que representavam os principais braços das forças armadas dos EUA, ele concluiu: “Há quase 250 anos, um exército voluntário de fazendeiros e comerciantes, ferreiros e milicianos arriscou a vida para garantir a Liberdade dos EUA e seu autogoverno. Esta noite, testemunhamos o nobre poder dos guerreiros que continuam esse legado.”

A realidade é que o militarismo estadunidense de hoje está em contradição direta com as aspirações revolucionárias de 1776. A Declaração de Independência, ao listar as queixas dos colonos contra o Rei George III, incluía as acusações de que ele havia “enviado bandos de oficiais para perseguir nosso povo ... mantido entre nós, em tempos de paz, Exércitos Permanentes ... [e] agido para tornar os militares independentes e superiores ao poder Civil.”

Nas últimas três décadas, os Estados Unidos têm se envolvido em guerras contínuas e cada vez maiores, que foram levadas adiante por republicanos e democratas. Ninguém na mídia ou no establishment político chamou atenção para, ou muito menos criticou, os elogios de Trump ao exército que “derrubou a Justa Fúria dos Estados Unidos sobre a Al Qaeda no Afeganistão, eliminando seus assassinos sanguinários. Eles libertaram Fallujah e Mosul [no Iraque] e ajudaram a libertar e destruir o califado do Estado Islâmico recentemente na Síria.”

Esse histórico de violência militarista – que levou à morte mais de um milhão de pessoas no Iraque “libertado” – fez parte da mensagem de “unidade” de Trump. A tentativa de subjugar e conquistar as terras do Oriente Médio e da Ásia Central é uma política de consenso na classe dominante estadunidense, assim como a escalada das tensões contra a China e a Rússia, que ameaça desencadear a Terceira Guerra Mundial.

Seja o que for que ele e a classe dominante esperam, entretanto, a declaração de Trump da eterna dominação dos EUA está em flagrante contradição com a realidade. A concepção dos estrategistas do imperialismo dos EUA de que poderiam deter o declínio a longo prazo do capitalismo estadunidense através da força militar, de que o fim da URSS anunciava o início de um “momento unipolar”, provou-se uma enorme ilusão. A série de invasões e guerras de conquista tem produzido uma série de desastres.

A posição do imperialismo americano é resumida com maior precisão na recente edição da revista Foreign Affairs, cujo título da reportagem de capa da última edição é: “O que aconteceu com o século estadunidense?”. “Uma geração atrás”, escreve Gideon Rose ao apresentar a questão, “Os Estados Unidos estavam conduzindo com confiança o mundo para o que deveria ser um novo milênio de paz, prosperidade, liberdade e comunidade. Agora, o mundo está entrando em turbulência, e os Estados Unidos são uma canção de Leonard Cohen; é assim que acontece e todo mundo sabe. Como as coisas podem desmoronar tão rapidamente?”.

Sic transit gloria mundi”, conclui Rose. A glória do mundo é passageira.

Não menos ridículos parecem os esforços de Trump para exaltar as realizações anteriores do capitalismo estadunidense, desde a invenção do telefone e do avião até a missão espacial Apollo 11, de 1969, que levou os primeiros homens à Lua. Os Estados Unidos, declarou Trump, “deram à luz ao musical, o cinema, o Faroeste, a Série Mundial [de baseball], o Super Bowl, o arranha-céu, a ponte suspensa, a linha de montagem e o poderoso automóvel estadunidense”.

Verificando a realidade do estado atual do capitalismo estadunidense, não seria fora de lugar observar que os astronautas estadunidenses agora vão ao espaço em foguetes russos, que a gigante de telecomunicações chinesa Huawei é alvo de ataques histéricos dos EUA porque está liderando o mundo na tecnologia 5G e que a fabricante de aviões dos EUA Boeing está enfrentando um desastre por cortar custos na segurança para aumentar os lucros. Quanto ao “poderoso automóvel estadunidense”, as cidades que antes produziam esses veículos – Detroit, Flint, Toledo, Dayton – estão em ruínas.

Os últimos 50 anos do capitalismo dos EUA foram um período de decadência, presidido por uma oligarquia criminosa de bilionários corporativos e especuladores financeiros. Os Estados Unidos têm a maior desigualdade social de qualquer grande país industrializado; sua infraestrutura social está em estado de colapso; e seus sistemas de saúde e educação pública são péssimos. O índice mais elementar de bem-estar social, a expectativa de vida, está em declínio, impulsionado pelo forte aumento de overdoses e de suicídios.

A geração mais jovem enfrenta um futuro de endividamento permanente, pobreza e emprego temporário de baixos salários. Para eles, Trump aconselhou: “agora é a sua chance de se juntar ao nosso exército e tomar uma atitude verdadeiramente grande na vida, e vocês devem tomá-la.”

Trump incluiu em seu discurso de 4 de julho os inevitáveis sermões aos soldados dos EUA, os “heróis que orgulhosamente defendem nossa bandeira”. A realidade diante dos soldados americanos, no entanto, foi expressa na enorme quantidade de comentários sobre suicídios, depressão, violência, vício e angústia mental de um tuite do Exército dos EUA, em maio, que perguntou “como o serviço militar impactou você”.

A degradação política e moral da classe dominante estadunidense é personificada pelo atual ocupante da Casa Branca. A imbecilidade de Trump, que se manifesta na tentativa absurda desse autoritário de mente fascista de evocar qualquer coisa progressista na história dos EUA, da Revolução à Guerra Civil e à Marcha sobre Washington de 1963, é uma marca registrada de declínio histórico.

No entanto, Trump é um sintoma da doença, não sua causa. Três décadas de crescentes crises políticas, militares e financeiras atingiram o ponto em que toda a ordem mundial dirigida pelo capitalismo dos EUA desmoronou.

Daí o nível assombroso de ilusão e pretensão do discurso de Trump no último 4 de Julho, que foi encenado para tentar convencer todos a ignorar a realidade e para a classe dominante se convencer de que sua dominação continuará por todo o tempo. “Nossa nação é mais forte hoje do que era antes, é mais forte agora, mais forte do que nunca.” No entanto, por ter que fazê-las, tais declarações provam o contrário. O discurso, centrado na exaltação da violência militar, não revela força, mas fraqueza.

A classe dominante sente que as paredes estão se fechando sobre si por todos os lados. O maior perigo sobre ela não vem do exterior, mas de dentro dos Estados Unidos. Ela percebe seu extremo isolamento e a falência de suas instituições políticas. Ela olha para o crescimento da luta de classes e do movimento à esquerda dos trabalhadores e da juventude como uma ameaça existencial.

Isso não faz com que diminuam os perigos diante da classe trabalhadora. Os governos fracos fazem coisas desesperadas: preparam-se para a guerra mundial, promovem formas de governo fascistas e autoritárias, destroem os direitos democráticos. Enquanto a classe dominante defende furiosamente sua obsoleta ordem social e econômica, a tarefa da classe trabalhadora é derrubá-la.

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