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Perspectivas

O Acordo de Bretton Woods 75 anos depois

Publicado originalmente em 22 de Julho de 2019

Hoje completam-se 75 anos da conclusão da conferência de Bretton Woods, que teve um papel decisivo para criar as bases da reestablização da economia capitalista mundial depois da devastação causada por duas guerras mundiais e a Grande Depressão dos anos 1930, abrindo o caminho para o boom capitalista do pós-guerra.

Setenta e cinco anos depois, o sistema capitalista mundial enfrenta uma erupção dos mesmos desastres que abalaram seus fundamentos e resultaram nas lutas revolucionárias da classe trabalhadora, começando com a revolução de Outubro de 1917 na Rússia.

Os participantes da conferência, representantes das potências aliadas ainda envolvidas nas etapas finais da guerra contra a Alemanha e o Japão, entendiam perfeitamente que o que estava em jogo em suas decisões para estabelecer uma nova ordem econômica mundial era nada menos do que a sobrevivência de seu domínio.

Falando ao fim do encontro, o secretário do Tesouro dos EUA, Henry Morgenthau, resumiu suas conclusões: “nós passamos a reconhecer que a maneira mais sábia e efetiva de proteger nossos interesses nacionais é através da cooperação internacional – isto é, através do esforço unificado pela realização de objetivos comuns”.

Os temores que impulsionavam essa posição foram articulados em março de 1945 em um discurso para o Congresso do sub-secretário de Estado para Questões Econômicas dos EUA, William Clayton. Direcionando suas observações contra os defensores de altas tarifas, ele alertou que “a paz mundial sempre será gravemente ameaçada pelo tipo de guerra econômica internacional que foi realizada de maneira agressiva entre as duas guerras mundiais”, e que a “democracia e o livre mercado não vão sobreviver a outra guerra mundial”.

Essas observações descrevem precisamente o caminho pelo qual o mundo está agora atravessando – a escalada de conflitos econômicos e guerra liderados pelo imperialismo estadunidense sob a presidência de Donald Trump.

Em seu discurso de posse, Trump declarou: “Nós precisamos proteger nossas fronteiras da destruição de outros países que fazem nossos produtos, roubam nossas empresas e destroem nossos empregos. A proteção vai levar à grande prosperidade e força”. Pouco mais de dois anos depois, os EUA têm levado adiante uma guerra comercial cada vez maior, atingindo aliados e rivais enquanto impõe tarifas ou os ameaça em nome da “segurança nacional”.

Mas ninguém deve sucumbir a ilusão de que as mesmas políticas que os arquitetos do acordo de Bretton Woods alertaram que levariam à catástrofe são simplesmente um produto da Casa Branca de Trump. Na verdade, os democratas são ainda mais belicosos. Eles apoiaram uma resolução contra a gigante de telecomunicações chinesa, Huawei, que impediria Trump, como parte de qualquer acordo comercial, de levantar as pesadas sanções dos EUA que lhe foram impostas.

O apoio dos republicanos e democratas à resolução contra a Huawei aponta para o fato de que a cada vez maior guerra comercial e a ameaça de guerra mundial não são o produto da psicologia ou mentalidade de um grupo particular de políticos capitalistas, que podem ser superadas por algum tipo de “correção de curso”. Ao invés disso, esses processos têm origem na profunda e incontrolável crise do imperialismo estadunidense, que é ela mesma o produto da evolução histórica do sistema capitalista mundial ao longo dos 75 anos desde Bretton Woods.

Havia dois pilares decisivos para o acordo de Bretton Woods, um político e outro econômico.

A base política do acordo de Bretton Woods, que tornou possível os líderes do capitalismo mundial se reunirem e construírem uma nova ordem econômica mundial, foi a traição pela burocracia stalinista na União Soviética e pelos partidos comunistas stalinistas ao redor do mundo das lutas revolucionárias que ocorreram nos anos 1920 e 1930. Além disso, as novas lutas anticapitalistas dos trabalhadores em toda a Europa e em grande parte da Ásia que surgiam conforme a guerra chegava à sua sangrenta conclusão também foram traídas pelo stalinismo.

No período anterior à guerra, o programa stalinista da Frente Popular – uma aliança com seções supostamente democráticas das classes dominantes – havia traído a classe trabalhadora francesa em 1936 e derrotado a classe trabalhadora espanhola na guerra civil de 1936-39. A burocracia stalinista, que havia surgido como resultado de derrotas sofridas pela classe trabalhadora europeia e do isolamento resultante do primeiro estado operário depois da revolução de 1917, era agora a principal apoiadora do imperialismo mundial.

Em 1943, a burocracia stalinista deu suas garantias ao imperialismo mundial do papel que cumpriria no mundo pós-guerra ao dissolver a Internacional Comunista. Isso foi reforçado na Conferência de Yalta em fevereiro de 1945, que contou com a presença do primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, e o presidente dos EUA, Franklin Roosevelt. Stalin deixou claro que a União Soviética apoiaria o retorno do capitalismo nos países da Europa Ocidental depois da guerra – um compromisso que foi cumprido quando os partidos comunistas participaram da formação de governos burgueses na França e na Itália depois da derrota dos nazistas e suprimiram o impulso da classe trabalhadora para a revolução socialista.

A base econômica era a força do capitalismo estadunidense, cujas capacidades industriais haviam crescido no período da guerra, de maneira que em 1945 ele era responsável por 50% da manufatura mundial.

Os EUA foram capazes de utilizar sua força econômica para reconstruir o capitalismo mundial depois de ter garantido a colaboração dos partidos stalinistas, que tinham apoio em massa da classe trabalhadora porque eram equivocadamente vistos como continuadores da Revolução de Outubro e por causa do papel central do Exército Vermelho na derrota da Alemanha Nazista.

Entretanto, os EUA assim agiram não por altruísmo, mas porque a reestabilização do capitalismo na Europa e Ásia devastadas pela guerra interessava ao imperialismo estadunidense. Havia sido reconhecido nos círculos dominantes dos EUA que se a Europa e o resto do mundo voltassem às condições dos anos 1930, a economia estadunidense, dependente de uma expansão do mercado mundial, enfrentaria um desastre, e, apesar do papel político do stalinismo, o resultado seria a explosão de lutas revolucionárias na Europa e nos próprios EUA.

Desde o início da Primeiro Guerra Mundial, em 1914, o movimento marxista havia analisado que a explosão da guerra global era o resultado da contradição entre o desenvolvimento da economia mundial e a divisão do mundo em estados-nações rivais, que estava levando a conflitos cada vez mais violentos entre as potências imperialistas. Defendendo seus próprios interesses, cada uma dessas potências buscou resolver a contradição entre a economia mundial e o estado-nação estabelecendo-se como a potência mundial dominante, o que levou a uma guerra de cada um contra todos.

Essa contradição encontrou expressão no sistema monetário de Bretton Woods, que tinha como objetivo minimizar conflitos entre as grandes potências capitalistas. Defendendo os interesses do imperialismo britânico, o economista John Maynard Keynes propôs o estabelecimento de uma moeda internacional, o “bancor”, para financiar o comércio global e as transações de investimento. A essência do plano Keynes era tornar os EUA sujeitos à mesma disciplina que as outras grandes potências, assim diminuindo seu domínio.

O plano Keynes foi rejeitado imediatamente e o dólar estadunidense tornou-se a base de um novo sistema monetário internacional. Apesar de toda a retórica sobre colaboração internacional, a hegemonia dos EUA definia o acordo de Bretton Woods. A única restrição era de que o dólar pudesse ser trocado pelo ouro na taxa de US$ 35 por onça.

A contradição entre a economia mundial e o sistema nacional não havia sido superada, mas apenas suprimida sob o sistema de Bretton Woods. Ela viria a emergir novamente.

O acordo monetário de Bretton Woods, junto com outras medidas, como o Acordo Geral de Tarifas e Comércio e a reconstrução da economia mundial através do uso de tecnologias de produção estadunidenses mais avançadas, levou a uma expansão econômica em todas as grandes economias capitalistas. Durante o subsequente boom do pós-guerra, a crença geral era de que o capitalismo havia superado os desastres do meio século anterior e a economia global seria administrada com sucesso.

Mas o sistema monetário de Bretton Woods continha uma contradição inerente. Quanto mais promovia a expansão do mercado mundial e o desenvolvimento de outras economias capitalistas – Alemanha, França, Reino Unido e Japão –, mais minava a supremacia econômica relativa e absoluta dos EUA sobre a qual o sistema se baseava.

Essa contradição, já identificada no início da década de 1960, explodiu em 15 de agosto de 1971, quando o presidente Nixon, diante de uma fuga de ouro, anunciou unilateralmente pela TV na noite de domingo que, dali em diante, os Estados Unidos não trocariam dólares por ouro.

As ações de Nixon – que também incluíam um congelamento salarial dos trabalhadores dos EUA e uma sobretaxa de 10% sobre as importações – tinham o objetivo de manter o domínio do imperialismo estadunidense sobre a economia mundial e seu sistema financeiro. Mas o declínio da supremacia econômica dos EUA, tanto relativo como absoluto, apenas se acelerou nos anos seguintes. O estabelecimento de uma moeda fiduciária, não lastreada no ouro, foi um dos principais fatores na ascensão do capital financeiro ao longo das últimas quatro décadas.

A proeminência estadunidense na produção industrial diminuiu continuamente, tendo sido ultrapassada agora pela China e a União Europeia, e o acúmulo de lucros se tornou cada vez mais dependente da especulação e das operações do mercado financeiro.

O caso da Huawei – um dos alvos principais da administração Trump e do establishment militar e de inteligência – é uma clara expressão desse processo. Ela se tornou alvo porque está na linha de frente do desenvolvimento da tecnologia de telefonia móvel 5G, que terá um grande impacto no desenvolvimento da capacidade industrial via internet.

A Huawei é agora considerada uma ameaça existencial para os EUA, um país que foi pioneiro em grandes avanços tecnológicos desde os últimos anos do século XIX, pois não há empresa estadunidense comparável. Isso aconteceu porque o lucro nos EUA se tornou cada vez mais dependente de ganhos de curto prazo e manipulações financeiras em detrimento do investimento e do desenvolvimento das forças produtivas.

Setenta e cinco anos depois do Acordo de Bretton Woods, todas as contradições do sistema capitalista mundial que o acordo tentou suprimir emergiram de maneira explosiva mais uma vez. Elas assumem sua forma mais explosiva no esforço do imperialismo dos EUA para recuperar sua hegemonia implementando os tipos de medidas tarifárias e protecionistas que levaram aos desastres dos anos 1930, agora ampliadas pelos banimentos tecnológicos, assim como por meio da guerra.

A questão diante da classe trabalhadora mundial é aquela descrita por Leon Trotsky nos primeiros anos da época imperialista, com o início da Primeira Guerra Mundial. Em 1915, ele escreveu que a perspectiva da revolução socialista mundial e da organização socialista da economia tinham de se tornar o programa prático do dia guiando as lutas da classe trabalhadora. Hoje, essa análise é mais verdadeira do que nunca, conforme as contradições do sistema capitalista avançam em direção à outra conflagração mundial.

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