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Perspectivas

Banco Central dos EUA corta taxa de juros, mas Wall Street exige mais

Publicado originalmente em 1˚ de Agosto de 2019

A decisão do Federal Reserve (Fed), o Banco Central dos Estados Unidos, de reduzir a taxa de juros em 0,25 ponto percentual – o primeiro corte desde a crise financeira de 2008 – e indicações de que isso se repetirá marcam uma virada sem precedentes na política monetária.

Juntamente com os sinais do Banco Central Europeu de que em breve retomará os estímulos monetários e o contínuo compromisso do Banco do Japão no início desta semana de manter a taxa de juros negativa, o Fed deixa claro que a injeção de dinheiro ultra-barato para o sistema financeiro pelos bancos centrais em benefício da oligarquia financeira tornou-se o “novo normal”.

No entanto, Wall Street considera que as ações tomadas até agora são insuficientes e intensificará a pressão por mais medidas para impulsionar os preços das ações. Isso se expressou na reação hostil do mercado à declaração do presidente do Fed, Jerome Powell, de que o corte na taxa de juros era um “ajuste no meio do ciclo” e “não o começo de uma longa série de cortes na taxa de juros”.

O índice S&P 500 terminou em queda de 1,1%, porém chegou a cair 1,6% durante a entrevista coletiva de Powell sobre a decisão do Fed. Já o índice Dow Jones caiu 1,2%.

O Fed tem insistido que “depende de dados” para tomar suas decisões. Em uma situação em que a taxa de desemprego nos EUA é a mais baixa dos últimos 50 anos e a economia está crescendo mais de 2%, a taxa de juros tenderia a permanecer como está. Por isso, Powell citou fatores globais para justificar a redução na taxa de juros.

Uma declaração do Comitê Federal de Mercado Aberto apontou para “incertezas” na economia global e as tensões comerciais, além da “inflação silenciosa” nos EUA, como justificativas para o corte na taxa de juros. Isso representou uma tentativa para estabelecer um curso entre as exigências dos mercados financeiros para um grande impulso, enquanto mantém a ficção de que o Fed atua de maneira independente.

A economia global está certamente desacelerando, com a zona do euro registrando um declínio de sua atividade econômica, sobretudo em sua principal economia, a Alemanha, onde a confiança empresarial está em “queda livre”. Mas cortes nas taxas de juros e outras medidas de estímulo nos EUA e na Europa não conseguirão deter essa desaceleração econômica. Ao invés disso, esses cortes simplesmente colocarão o dinheiro nas mãos das elites financeiras, enquanto a “reestruturação” de setores-chave, como o setor automotivo, continua acontecendo, levando à destruição de milhares de empregos.

Durante sua coletiva de imprensa, Powell insistiu que a última decisão foi uma continuação das ações do Fed ao longo deste ano. No entanto, essas ações não foram tomadas “independentemente”, mas foram uma resposta aos ditames dos mercados financeiros.

Quando o Fed despejou trilhões de dólares nos mercados financeiros após o crash de 2008 com o objetivo de resgatar as próprias agências financeiras cuja especulação levou à crise, ele sustentou que se tratava de uma medida temporária e que se retornaria a uma política mais normal. Mas todo o sistema financeiro, e a economia mundial como um todo, é tão viciado em financiamento barato que esse retornou tornou-se impossível.

Em 2018, o Fed iniciou uma série de aumentos graduais na taxa de juros e indicou que continuaria a fazê-lo em 2019, como parte de um retorno a uma política monetária mais “normal”. Os mercados responderam em dezembro com a maior queda desse mês desde 1931 em meio à Grande Depressão.

Powell imediatamente sinalizou que entendeu a mensagem enviada pelos mercados e, em um importante discurso em janeiro, indicou que os aumentos planejados para 2019 estavam fora da agenda. O Fed não realizou cortes na taxa de juros, mas demonstrou as intenções de realizá-los.

A reação do mercado em dezembro foi acompanhada por um bombardeio contra o Fed, liderado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, exigindo cortes na taxa de juros e até mesmo uma retomada da política de flexibilização quantitativa, que tem continuado ao longo deste ano.

Funcionando como porta-voz dos círculos financeiros parasitas e semi-criminosos de onde emergiu, Trump afirmou que o índice Dow Jones estaria 10.000 pontos mais alto não fossem as políticas do Fed. Mais recentemente, ele denunciou que suas políticas de juros elevaram o valor do dólar, prejudicando, assim, os EUA nos mercados internacionais – um movimento claro para iniciar uma guerra cambial contra os maiores rivais estadunidenses da guerra comercial.

Em um editorial publicado na véspera da decisão de cortar a taxa de juros, o Wall Street Journal chamou a atenção para a alegação de Powell de que o Fed era “dependente de dados”, mas disse que “para nós, parece que o banco central não depende de dados específicos. Isso indica a suspeita nos mercados de que o Fed está realmente tentando acomodar as exigências públicas de Trump por cortes de juros”.

Mas as razões para a virada do Fed são mais profundas do que se acomodar a Trump. A raiz delas está nas profundas mudanças nos próprios fundamentos da economia estadunidense e no modo de acumulação de lucros ao longo das últimas três décadas – a institucionalização de mecanismos para desviar uma porção cada vez maior de riqueza produzida pelo trabalho da classe trabalhadora para as mãos da oligarquia financeira.

No auge do boom capitalista do pós-guerra, a acumulação de lucros ocorreu através da expansão da produção industrial. O investimento de capital levou ao crescimento do emprego e ao aumento dos salários à medida que os lucros aumentavam. O Fed agiu como regulador desse processo – reduzindo as taxas de juros quando necessário para induzir mais investimentos e garantir a expansão econômica, além de aumentá-los, quando considerava que o aumento dos salários e da inflação estavam afetando a lucratividade das empresas.

Nesse período, o capital financeiro desempenhou um papel secundário na economia dos EUA, que era dominada por gigantes industriais, com lucros no setor financeiro representando cerca de 10% do total dos lucros corporativos.

Mas com o fim do boom do pós-guerra em meados da década de 1970, a economia dos EUA iniciou uma ampla transformação, com o capital financeiro assumindo um papel cada vez mais dominante. A queda das taxas de lucro na produção industrial significava que a acumulação de lucros ocorria cada vez mais por meios financeiros.

O resultado foi que, no início dos anos 2000, no período que antecedeu o crash de 2008, as finanças representavam 40% de todos os lucros corporativos dos EUA.

O setor financeiro sofreu uma grande desaceleração na crise, com sua parcela de lucros despencando. Isso levou à operação de resgate, iniciada nos últimos dias do governo Bush e continuada e aprofundada sob Obama, e ao estabelecimento das chamadas políticas monetárias “não convencionais” do Fed.

Além disso, agindo a partir da máxima “nunca deixe uma crise ser desperdiçada”, a presidência de Obama iniciou uma grande reestruturação das relações de classe no EUA. Começando com a reestruturação da indústria automobilística, o governo Obama, trabalhando em colaboração com os sindicatos, iniciou a destruição do que restava das condições de vida da classe trabalhadora conquistadas durante o boom do pós-guerra.

O resultado desse processo foi a estabelecimento de diferentes níveis salariais, a disseminação do emprego temporário e de meio período – um componente importante da expansão do emprego – o surgimento da chamada “economia gig”, ou “economia do bico”, e a instituição de formas mais intensas de exploração do trabalho, como aquelas desenvolvidas pela Amazon.

A decisão do Fed de cortar a taxa de juros significa que a oferta de dinheiro ultra-barato para impulsionar o mercado de ações e a especulação financeira devem se tornar permanentes.

Mas seria um grande erro supor que essa política está simplesmente confinada ao que se conhece como capital financeiro. A financeirização da economia dos EUA é agora generalizada. Nominalmente, as corporações não financeiras – cujos conselhos são dominados por bancos, fundos de hedge e agências de investimento – agora operam para maximizar o valor do acionista medido no mercado de ações.

Em outras palavras, a especulação e o parasitismo que começaram nas finanças agora têm toda a economia em suas garras.

Há duas conclusões políticas e econômicas decisivas que derivam dessa situação.

A primeira é que, ao procurar defender e promover seus interesses – seja sobre salários ou condições sociais –, a classe trabalhadora está engajada em uma luta não apenas com os empregadores e autoridades individuais, mas com todo o aparato econômico, político e financeiro do estado capitalista.

Portanto, as lutas da classe trabalhadora, independentemente da maneira que surgirem, devem ser conscientemente desenvolvidas sob um programa político com o objetivo de conquistar o poder para derrubar a dominação da oligarquia financeira governante e reconstruir a economia em bases socialistas.

A segunda conclusão é que essa perspectiva não está colocada para um futuro indefinido. Ela é uma necessidade imediata e prática, pois a oferta infinita de dinheiro barato está ameaçando uma catástrofe financeira em uma escala muito superior à devastação do crash de 2008.

Como observou um recente artigo do Wall Street Journal, a “grande história” no retorno da política de estímulo monetário é que ela “pode produzir uma crise de confiança em moedas fiduciárias, inclusive o dólar dos EUA”.

O Journal destacou que, desde agosto de 1971, quando o presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, retirou o dólar do padrão-ouro, os EUA e outras grandes economias têm tido um suprimento ilimitado de dinheiro “sem lastro em qualquer commodity física”.

Isso deu origem à crença de que a oferta monetária pode ser expandida indefinidamente. Mas tal processo mina o papel do dinheiro como reserva de valor e pode levar a uma crise de confiança nas moedas fiduciárias.

Já existem sinais de alerta claros de outro colapso financeiro. Atualmente, cerca de US$ 13,74 trilhões em títulos do governo e de corporações possuem rendimentos negativos, o que significa que, se forem mantidos até vencerem, o dono desses títulos perderá dinheiro. A história econômica nunca presenciou uma situação como essa.

Não é possível prever quando uma enorme nova crise financeira entrará em erupção. Mas não há dúvidas que as condições para isso estão amadurecendo.

O que a redução da taxa de juros pelo Fed deixa claro é que, como o crash de 2008, todo o peso da iminente crise será colocado sobre a classe trabalhadora. O Fed fará tudo o que puder para proteger a riqueza da oligarquia financeira em detrimento da classe trabalhadora.

A classe trabalhadora, por isso, deve articular seu próprio programa e política de maneira independente, lutando pela transformação socialista da sociedade.

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