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O bicentenário de Frederick Douglass

Publicado originalmente em 20 de dezembro de 2018

Neste ano comemorou-se o bicentenário do nascimento de Frederick Douglass (1818-1895), uma das maiores figuras dos Estados Unidos do século XIX, cuja oratória eloquente, escritos e agitação ajudaram enormemente na luta pela abolição da escravidão na Guerra Civil, a Segunda Revolução dos EUA.

Nascido escravo próximo à costa do estado de Maryland, o mestiço Frederick Bailey mal conheceu sua mãe, e foi separado de sua avó aos seis anos de idade. Ele nunca conheceu a identidade de seu pai, mas posteriormente escreveu que se “sussurrava [que era] meu senhor”.

Demonstrando tanto curiosidade intelectual quanto determinação desde cedo, o jovem rapaz começou a aprender o alfabeto através da esposa do irmão de seu senhor, com quem ele viveu em Baltimore. A vida em uma cidade grande deu a ele certas oportunidades para se educar, por mais limitadas que fossem. Frederick conseguiu brincar nas ruas com outros garotos. Quando o chefe da família impediu que continuasse aprendendo, ele continuou estudando em segredo, especialmente sobre o significado da escravidão. Dentro de algumas décadas, o jovem escravo se tornaria um dos maiores autodidatas na história estadunidense.

Frederick reagiu contra um brutal capataz com sucesso aos 16 anos de idade. Depois de várias tentativas fracassadas, ele conseguiu escapar da escravidão em 1838 aos 20 anos de idade, mudando depois seu nome para Frederick Douglass (o sobrenome sugerido por um amigo que o lembrou de uma personagem de A Dama do Lago, de Sir Walter Scott). Ele logo se encontrou com Anna Murray, que o havia ajudado a preparar sua fuga para o norte. Eles se casaram na cidade de Nova York e se estabeleceram em New Bedford, mudando-se depois para Lynn, no estado de Massachusetts.

Desde 1839, Douglas passou a falar em encontros na igreja, contando a história de como fugiu da escravidão e sobre a luta pela abolição da escravidão. Um grande discurso em um encontro da Sociedade Abolicionista de Massachusetts, em 16 de agosto de 1841, com apenas 23 anos de idade, fez com que Douglass chamasse a atenção de importantes abolicionistas, incluindo William Lloyd Garrison e Wendell Phililips. Garrison, cerca de 13 anos mais velho do que Douglass, havia lançado O Libertador em 1831, e era o reconhecido líder da luta contra a escravidão. Douglass logo dedicou-se em tempo integral à luta contra a escravidão, como palestrante e ativista.

Esse trabalho o mantinha longe de casa por longos períodos de tempo, mesmo quando ele e sua esposa se tornaram pais de cinco filhos. Rosetta, Lewis, Charles e Frederick Jr. sobreviveram até a idade adulta. Uma segunda filha, Annie, morreu aos 10 anos. Anna Douglass morreu em 1882, depois de 44 anos de casamento.

A primeira de três autobiografias, A Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Estadunidense, foi publicada em 1845 e alcançou dezenas de milhares de leitores rapidamente. Douglass escreveu duas outras autobiografias, incluindo Minha Escravidão e Minha Liberdade, em 1855, e A Vida e os Tempos de Frederick Douglass, em 1881, que ele revisou e atualizou em 1892. Na maior parte de sua vida, Douglass também foi editor de jornais defendendo seus pontos de vista. Entre os biógrafos de Douglass estão William McFeely, que publicou sua biografia em 1991, e David Blight, cuja incrível e completa descrição apareceu neste bicentenário.

Escrevendo e falando muito antes do advento das tecnologias de comunicação modernas, Douglass se tornou conhecido por milhões através do enorme poder de sua oratória e de sua mensagem de oposição intransigente e revolucionária à escravidão. A força de seus discursos combinava-se ao seu conteúdo, à luta apaixonada pela liberdade e contra a escravidão e a opressão racial.

Na trajetória de sua longa vida, Douglass conheceu ou colaborou com todas as principais figuras da luta contra a escravidão e com outras figuras radicais do período, incluindo, além de Garrison e Phillips, Harriet Beecher Stowe, Harriet Tubman, Ida B. Wells, as líderes do sufrágio feminino Elizabeth Cady Stanton e Susan B. Anthony, e muitas outras, como Mark Twain. Douglass conheceu oito presidentes dos EUA, servindo nas administrações de vários deles quando mais velho. Sua relação com o primeiro deles, Abraham Lincoln, com quem ele se encontrou duas vezes ao longo da Guerra Civil, foi de longe a mais importante.

Uma longa viagem à Irlanda e à Inglaterra entre 1845 e 1847 teve um importante papel na evolução de Douglass como líder abolicionista. Ele passou parte do tempo com Garrison em Londres. Douglass, desenvolvendo uma visão internacional mais ampla, identificou-se com a luta irlandesa pela independência e se admirou com a diferença de tratamento que recebeu: “Sem insultos a encontrar – sem preconceitos a encontrar, tudo é tranquilo. Eu sou tratado como um homem e irmão igual”. Também foi durante sua viagem que simpatizantes britânicos se juntaram para comprar a liberdade do escravo que tinha fugido de seu senhor em Maryland, de maneira que Douglass não precisasse temer ser capturado quando retornasse para a luta contra a escravidão nos EUA.

De volta aos Estados Unidos, Douglass foi morar em Rochester, em Nova York, onde ele viveria pelos próximos 25 anos. Ele logo lançou o North Star (Estrela do Norte), o primeiro dos jornais que comandou, conhecido por sua oposição implacável aos planos de colonização na África como uma maneira de acabar com a escravidão.

Com o fim da Guerra do México –contra a qual Douglass se opôs intensamente, caracterizando-a corretamente como um meio de ampliar o sistema escravista –, as tempestuosas nuvens que precipitariam na guerra civil continuaram a se acumular. Esse foi um período em que a vida de Douglass, mais de uma vez, foi ameaçada por elementos pró-escravistas no norte do país.

À medida que se tornava um importante abolicionista, e, além disso, o mais famoso abolicionista negro, Douglass viu-se cada vez mais disposto a contrariar velhos aliados sobre questões de estratégia e tática. Isso o levou a uma intensa e longa disputa com seu mentor e professor, William Lloyd Garrison.

Um ponto importante na disputa entre Garrison e Douglass foi a atitude a ser adotada em relação à Constituição dos EUA. Garrison a considerava um documento puramente pró-escravista, enquanto Douglass reconheceu sua conexão com os ideais revolucionários do Iluminismo e a necessidade de defensores antiescravistas utilizarem a Constituição e defenderem a extensão de suas promessas e garantias para os estadunidenses de ascendência africana.

A defesa por Douglass do Iluminismo e sua associação com a herança da Revolução do EUA é especialmente importante hoje, em que atuais pós-modernistas e defensores da estreita e reacionária política de identidade realizam ataques vulgares e ahistóricos contra figuras como Thomas Jefferson. Um exemplo emocionante da visão de Douglass pode ser encontrado em seu famoso discurso para a Sociedade Antiescravista das Mulheres de Rochester um dia depois do Dia da Independência em 1852. “O significado do 4 de julho para o negro” viria a ser conhecido como O Discurso de 5 de Julho. Esse discurso tanto condena a escravidão quanto o compromisso com ela na Constituição, e, ao mesmo tempo, faz uma defesa contundente dessa Constituição e da luta revolucionária que a originou e que inspirou inúmeras lutas contra o absolutismo e o despotismo ao redor do mundo.

A homenagem de Douglass aos Pais Fundadores dos Estados Unidos nesse discurso é uma passagem particularmente eloquente e, ao mesmo tempo, uma condenação devastadora dos porta-vozes políticos do capitalismo estadunidense de hoje. “Eram homens de paz; mas preferiam a revolução à submissão pacífica [e] à servidão. Eram homens calados; mas não se recusaram a agitar-se contra a opressão. Eles mostraram tolerância; e que conheciam seus limites. Acreditavam na ordem; mas não na ordem da tirania. Com eles, nada foi ‘resolvido’ que não estava certo. Com eles, justiça, liberdade e humanidade eram “finais”; não escravidão e opressão. Vocês podem muito bem apreciar a memória de tais homens. Eram grandes em seus dias e em sua geração. Sua humanidade sólida se destaca tanto quanto mais contrastamos com esses tempos degenerados.”

A ferida entre Garrison e Douglass não foi completamente curada até 1873. Quando o mais velho morreu em 1879, Douglass fez um elogioso discurso em seu funeral em Washington, DC: “Foi a glória deste homem sustentar-se sozinho com a verdade, e esperar calmamente o resultado”.

Douglass estava entre os poucos abolicionistas que deram total apoio à luta pelos direitos das mulheres. Ele participou da convenção pelos direitos das mulheres em Seneca Falls, em Nova York, em 1848, mas, 21 anos depois, após a Guerra Civil, Douglass e Susan B. Anthony se afastaram quando ela se recusou a apoiar a 15a Emenda à Constituição, promulgada em 3 de fevereiro de 1870. Ela se opôs a ampliar o direito de voto a ex-escravos enquanto às mulheres ainda fosse negado acesso às urnas. Como William McFeely aponta, Anthony, “que havia sido firme em sua oposição à escravidão, cruzou a linha do racismo quando disse que mulheres eram mais inteligentes do que homens negros que, ela agora enxergava, estavam competindo com ela e suas companheiras pelo voto”.

A questão de os EUA continuarem a ser meio-escravistas e meio-livres foi colocada com urgência crescente nos anos 1850. Essa década assistiu a alguns dos grandes ganhos políticos para os defensores da escravidão, começando com a Lei do Escravo Fugitivo, parte do Compromisso de 1850, que obrigou o governo federal a auxiliar ativamente na devolução de escravos fugitivos para seus senhores. A Lei Kansas-Nebraska de 1854 criou o fundamento para a extensão da escravidão aos territórios dos EUA, estipulando que os colonos, e não as autoridades federais, tomariam a decisão sobre a questão. E, finalmente, em 1857, a Suprema Corte dos EUA expediu sua infame decisão sobre o caso Dred Scott, negando cidadania para todos os escravos ou ex-escravos, e decretando que o Congresso não poderia proibir a extensão da escravidão nos territórios estadunidenses.

Aqueles que buscaram resolver a questão da escravidão através da abolição gradual, ou de alguma outra forma de compromisso, olhavam para esses acontecimentos com grande preocupação e pessimismo. Entretanto, Douglass não foi fundamentalmente desencorajado. Mais intransigente do que nunca, ele sentiu que as ações das forças pró-escravistas refletiam fraqueza, não força. Ele reconheceu a necessidade de uma solução política nacional. Ao mesmo tempo que não saudava a violência, nem tampouco a descartava.

Foi na década de 1850 que Douglass atingiu sua maior eloquência como orador público. Duas datas se destacam em particular – o Discurso de 5 de Julho, citado anteriormente, e o discurso de “Emancipação da Índia Ocidental”, de 3 de agosto de 1857, quando se completaram 23 anos da abolição da escravidão naquele território britânico. Esse discurso, dado apenas meses depois da decisão Dred Scott, é talvez mais famoso do que o anterior. As palavras de Douglass ressoam tão poderosamente hoje quanto no século XIX.

“Se não há luta não há progresso”, ele disse. “Aqueles que dizem lutar pela liberdade e que, ainda assim, desprezam a agitação, são homens que querem colheitas sem arar a terra; eles querem chuva sem raios e trovões. Eles querem o oceano sem o rugido terrível das suas águas.”

“Essa luta pode ser moral, ou pode ser física, e pode ser ambas, mas precisa ser uma luta. O poder não concede nada sem uma exigência. Ele nunca o fez e nunca o fará. Descubra a que as pessoas estão dispostas a se submeter e você encontrará a medida exata da injustiça e do erro que serão impostos sobre elas, e esses continuarão até que sofram resistência de palavras ou golpes, ou ambos.”

Foi com essa mentalidade revolucionária que Douglass se encontrou com John Brown, um impetuoso abolicionista que posteriormente liderou um fracassado ataque contra o arsenal dos EUA em Harpers Ferry, em outubro de 1859. Douglass foi atraído para a figura hipnotizante de Brown, mas quando ouviu os detalhes do ataque planejado, recusou-se a participar, advertindo Brown que era imprudente e suicida. Ele se encontrou com Brown, entretanto, e também ajudou a levantar os fundos para as suas atividades. Diante do perigo de ser preso e condenado, Douglass foi para o Canadá dias após a invasão em Harpers Ferry, escapando por pouco de ser apreendido por agentes federais.

Ele logo foi para a Inglaterra, em uma viagem anteriormente planejada. Nesse momento, através da combinação de seus escritos e discursos, assim como com suas viagens para a Europa, Douglass já havia se tornado o homem negro mais importante dos Estados Unidos. Ele permaneceu na Inglaterra por cerca de quatro meses, retornando depois da morte trágica de sua jovem filha Annie, apesar de ainda correr algum risco de ser preso por sua relação com John Brown. Enquanto agiu com a maior cautela por várias semanas, em agosto de 1860, nas palavras do biógrafo McFeely, “ele descobriu, pela primeira vez em sua vida, que estava presente nos círculos dominantes da política”.

O Partido Republicano, formado apenas alguns anos antes, moveu-se na direção de Douglass, adotando uma plataforma que se opunha militantemente à extensão da escravidão. O abolicionista negro discordou daqueles que consideravam Abraham Lincoln muito moderado em suas opiniões para merecer apoio crítico na eleição presidencial de 1860. Ele fez a seguinte avaliação: “Enquanto eu vejo ... que o Partido Republicano está longe de ser um partido da abolição, eu não posso deixar de ver também que carrega com ele o sentimento antiescravista do norte, e que uma vitória conquistada por ele, no quadro atual, será uma vitória conquistada ... sobre o sentimento perversamente agressivo pró-escravidão do país”.

A avaliação política de Douglas foi confirmada de maneira um tanto tortuosa após a vitória de Lincoln em novembro. A vitória pela qual Douglass esperava não foi seguida pelo recuo das forças pró-escravidão, mas pela formação da Confederação. Foi isso, por sua vez, que tornou inevitável a Guerra Civil, e, eventualmente, a abolição da escravidão. A imagem de John Brown se tornou aquela de um profeta abolicionista, não de um lunático, como se imaginava anteriormente. Como citado por David Blight em um discurso no começo da Guerra Civil, Douglass declarou: “O bom e velho John Brown era um louco em Harpers Ferry. Dois anos se passaram, e a nação está tão louca quanto ele”.

Quando Douglass tornou-se o defensor mais eloquente da vitória incondicional sobre a escravocracia, Blight o compara a Walt Whitman, “mas com pontas mais suaves”. “O grito é agora pela guerra, vigorosa guerra, guerra até o amargo fim, e guerra até que os traidores sejam efetivamente e permanentemente derrubados”, escreveu Douglass. Em palavras que prenunciavam as campanhas dos líderes militares da União, Sherman e Sheridan, Douglass trovejou: “Deixem que os portos do sul sejam bloqueados, deixem que os negócios lá cessem; que as provisões, armas e munição não sejam mais enviadas para lá; que o rosto sombrio do exército do norte os confronte em uma direção, uma furiosa insurreição de escravos os encontre em outra, e a fome os ameace ainda em outra”.

Mas Douglass também trovejou contra Lincoln, que, por definidas razões políticas, insistia que neste momento a guerra tinha o objetivo de preservar a União, e não acabar com a escravidão. O presidente, Douglass disse, “é alto e forte, mas não terminou de crescer”. Ele exigiu uma mudança imediata nos objetivos da guerra. Denunciou ainda a devolução de escravos fugitivos pelo governo, e a rescisão de Lincoln da emancipação dos escravos no estado do Missouri pelo General John C. Fremont.

À medida que o conflito se aprofundava, entretanto, a guerra para preservar a União tornava-se uma guerra para acabar com a escravidão. Lincoln começou a ouvir as exigências de Douglass e outros. A Proclamação da Emancipação de 1˚ de janeiro de 1863, seguida do esforço para recrutar negros e escravos livres para o exército da União, foi um momento crucial. Douglass prontamente se jogou no ímpeto pelo recrutamento de soldados negros, que tiveram um importante papel na derrota da Confederação. Dois de seus filhos se juntaram ao famoso 54o Regimento de Infantaria de Massachusetts, que atraiu afro-americanos de todo o norte.

Douglass encontrou-se com Lincoln duas vezes. A primeira ocasião foi em agosto de 1863. “Eu fui diretamente para a Casa Branca e vi pela primeira vez o Presidente dos Estados Unidos”, ele escreveu. “Fui recebido cordialmente e pude perceber a justiça da estima popular de suas qualidades expressas no prefixo Honesto ao nome de Abraham Lincoln”.

Douglass agradeceu a Lincoln pela recente ordem em resposta à ameaça da Confederação em tratar todos os soldados negros da União como escravos rebeldes. Foi decretado que “para todo soldado dos Estados Unidos morto em violação às leis de guerra, um soldado rebelde será executado”.

Lincoln “posteriormente negou que fosse culpado de ‘vacilação’ e sugeriu que o que Douglass estava vendo era um progresso contínuo, talvez lento, e não qualquer indecisão de sua parte”, explica McFeely. “Douglass convenceu-se de que, uma vez que Lincoln tivesse tomado uma posição favorável à causa negra, poder-se-ia contar com ele para defendê-la”.

Essa era uma relação, e um papel para cada uma dessas figuras, que dificilmente seria imaginada 25 anos antes, quando Douglass havia acabado de fugir para a liberdade e Lincoln era um jovem advogado e membro da Assembleia Geral de Illinois.

A Guerra Civil havia terminado, mas a luta pela igualdade racial continuava. A 13a Emenda à Constituição, abolindo a escravidão, foi ratificada e promulgada em 1865. Douglass dedicou suas energias à luta que levaria à promulgação da 14a e da 15a Emendas, garantindo, respectivamente, igual proteção sob a lei e estendendo o direito de voto aos afro-estadunidenses. Em um discurso em Baltimore em 29 de setembro de 1865, ele deu voz a grandes esperanças com o fim da vitória contra a escravidão e o “renascimento da liberdade”. Dirigindo-se ao público, como McFeely explica, “com uma imagem que Langston Hughes usaria no que é talvez o maior de seus poemas” [O Negro Fala de Rios], Douglass disse que “a mais sublime e melhor eloquência que o país produziu, seja anglo-saxã ou de descendência africana, fluirá como um rio, enriquecendo, enobrecendo, fortalecendo e purificando todos os que se lavarem em suas águas”.

Com o assassinato de Lincoln, entretanto, Andrew Johnson, o democrata do Tennessee que fora eleito vice-presidente de Lincoln apenas meses antes, chegou à Casa Branca. Douglass fez parte de uma delegação negra que se encontrou com Johnson em 1866, que indicou a hostilidade de Johnson em defender os direitos dos escravos libertos no sul.

Douglass apoiou o candidato republicano e herói da Guerra Civil, Ulysses S. Grant, em 1868. Grant, que serviu dois mandatos, defendeu os direitos dos escravos libertos enquanto o período da Reconstrução continuava. Até entre o início e meados dos anos 1870, entretanto, a burguesia ascendente no norte estava claramente perdendo interesse em defender a igualdade racial que havia se colocado com tanta importância com a Proclamação da Emancipação e nos primeiros anos da Reconstrução. A mudança foi refletida na inação das autoridades federais.

Douglass, cada vez mais, acomodou-se a este recuo, trabalhando para conquistar votos aos candidatos republicanos “acenando a camisa ensanguentada”, apelando ao patriotismo e ao imenso sofrimento da Guerra Civil. O homem que havia ajudado a inspirar uma revolução para acabar com a escravidão agora se tornava o encarregado de várias posições federais menores, além de um ativista por todos os candidatos republicanos à presidência, muito depois de o partido de Lincoln ter se transformado em instrumento corrupto dos grandes negócios. Douglass chegou ao ponto de defender o Compromisso de 1877, o sórdido acordo não escrito pelo qual o candidato republicano Rutherford B. Hayers chegou à Casa Branca depois de uma disputada eleição, com o governo federal retirando, em troca, suas últimas tropas dos estados da ex-Confederação.

Isso abriu o caminho para a era Jim Crow, que duraria décadas. Quando alguns ex-escravos do sul desesperados, chamados “Exodusters”, tentaram fugir para o Kansas e para o oeste, Douglass se opôs a eles, alegando, em 1879, que “as condições ... nos estados sulistas estão melhorando continuamente”. “Pela primeira vez em sua vida, ele percebeu-se repudiado por um público negro”, relata McFeely.

A mudança da perspectiva de Douglass pode ser observada comparando suas posições de antes e depois da Guerra Civil. Em Minha Escravidão e Minha Liberdade, Douglass escreveu: “Os proprietários de escravos, com uma astúcia peculiar a si mesmos, encorajando a animosidade do homem branco, pobre e trabalhador contra os negros, são bem-sucedidos em tornar o dito homem branco quase tanto um escravo quanto o próprio escravo negro. A diferença entre o escravo branco e o escravo negro é esta: o último pertence à um proprietário de escravos, e o primeiro pertence a todos os proprietários de escravos, coletivamente.” (ênfase no original).

Na Inglaterra nos anos 1840, como McFeely relata, Douglass e Garrison se encontraram com alguns dos líderes cartistas que posteriormente viriam a colaboram com Marx e Engels. Segundo ele, “Em Londres, Douglas e Harrison iniciaram a formação de um elo que Karl Marx sempre pensou ser natural – entre as classes trabalhadoras na Europa, na Grã-Bretanha e no norte dos EUA, por um lado, e trabalhadores no sul dos EUA, por outro. É uma das grandes oportunidades perdidas da vida de Douglass e da história dos estadunidenses negros que esse esforço promissor de cooperação não levou a um verdadeiro movimento internacional da classe trabalhadora”.

Enquanto Douglass quase viu o potencial da classe trabalhadora quando jovem, ele posteriormente deixou isso para trás, especialmente na atmosfera da Era Dourada estadunidense. Em 1880, ele fez campanha para o candidato republicano James A. Garfield como “um homem de orgulho do partido”, relata Blight. Isso aconteceu depois da onda de greves de 1877, mas Douglass “não tinha qualquer problema com posições republicanas antitrabalhistas ... Dada a destacada supremacia branca dos democratas, Douglass ainda via os republicanos como seu único lar político.”

Em seus últimos anos, Douglass viveu a vida de um idoso estadista negro em Anacostia, em Washington D.C. Depois da morte de Anna Murray Douglass, ele se casou novamente com Helen Pitts, uma mulher branca aproximadamente 20 anos mais jovem, de uma importante família abolicionista, que ele conhecera quando ela trabalhava como secretária em seu escritório de registro de títulos e propriedades. O casamento encontrou alguma oposição tanto dos filhos de Douglass quanto da família de sua nova esposa. Douglass já havia suportado anos de fofocas por conta de estreitas relações emocionais e intelectuais com duas outras mulheres – a reformista social britânica Julia Griffiths, que passou a primeira metade dos anos 1850 trabalhando de maneira próxima a Douglass em Rochester; e a jornalista judaico-alemã Ottilie Assing, que passou mais de 20 anos nos EUA, incluindo meses próxima ou na própria residência de Douglass. De acordo com Blight, elas eram provavelmente amantes dele.

Na última década da vida de Douglass, ele aumentou seus ataques contra a supremacia branca que estava em ascensão. No início dos anos 1890, inspirado em parte pela jovem ativista Ida B. Wells, o velho homem, agora nos seus 70 anos, denunciou os horrores do linchamento.

Douglass morreu subitamente em 20 de fevereiro de 1895, logo após retornar para casa de um encontro sobre direitos das mulheres. Seu funeral na capital recebeu dignitários que incluíram o juiz da Suprema Corte, John Marshall Harlan. O caixão foi levado para Rochester, onde Douglass foi enterrado no Cemitério Mount Hope. No caminho, ele permaneceu por duas horas na prefeitura de Nova York.

Muitos tributos se seguiram. Um dos mais notáveis foi de W. E. B. Dubois, um então professor universitário de 27 anos em Ohio. Como descrito por David Blight, “Du Bois pediu aos estudantes e à faculdade para que não clamassem em ‘tristeza semi-triunfante’ pela morte de seu líder, mas se empenhassem em ‘cuidadosa e trabalhosa emulação’. Du Bois relembrou a liderança de Douglass no abolicionismo, no recrutamento de soldados negros na guerra, na conquista do sufrágio negro masculino e nos direitos civis. Como um líder, Douglass havia alcançado os objetivos considerados ‘perigosos’ e praticamente ‘impossíveis’. Ele não temia o ‘experimento de cidadania’ estadunidense. Douglass havia mostrado ser um ‘construtor do estado’ em grande medida fora dos círculos de poder tradicionais. ‘Nosso Douglass’, afirmou o jovem intelectual, era o homem da raça, mas ele também havia ‘se erguido fora de meras linhas raciais ... sobre a ampla base da humanidade’.”

Sustentando-se “sobre a ampla base da humanidade”, Douglass, um opositor, ao longo de toda a sua vida, da colonização e do separatismo, fundamentou-se nos ideais democráticos incorporados na Declaração da Independência e no Discurso de Gettysburg. Ele chegou a um ponto, entretanto, em que seu objetivo de igualdade racial se defrontou com a realidade do capitalismo estadunidense e com o conflito crescente entre a burguesia ascendente e a classe trabalhadora que ela própria estava criando. O movimento da classe trabalhadora estadunidense era, em si, ainda embrionário. À medida que as conquistas da Guerra Civil estavam sendo deterioradas pelo crescimento da segregação racial através das leis de Jim Crow e do movimento de supremacia branca, Douglass enfrentou um beco sem saída político. Seus ideais, como vimos, haviam se tornado parte dos círculos de poder durante a Guerra Civil, mas isso havia mudado nos anos 1890.

A escravidão clássica fora abolida, mas então substituída pelo crescimento da indústria e das grandes cidades, e pela predominância da escravidão assalariada. A defesa da igualdade racial só seria possível unindo a classe trabalhadora em uma luta comum contra o capitalismo. Douglass não conseguiu entender ou se fundamentar nas forças sociais exigidas para aprofundar a luta pela igualdade. Elas viriam a emergir mais poderosamente no século seguinte com as lutas da classe trabalhadora estadunidense e internacional, e, acima de tudo, com a Revolução Russa e sua importância histórica-mundial.

Setenta anos se passaram entre a morte de Frederick Douglass e a vitória contra Jim Crow. Isso não aconteceu pela ausência de oposição ao racismo, mas porque só poderia ser superada através das lutas da classe trabalhadora, que foram realizadas ao longo de décadas e foram marcadas por enormes contradições e dificuldades. O movimento em massa por direitos civis dos anos 1950 e 1960 se sustentou nos ombros das lutas e das conquistas do movimento operário dos anos 1930 e 1940.

Os esforços no sul foram inspirados em parte pelas experiências de milhões de trabalhadores, tanto negros quanto brancos, que haviam construído ligações durante a organização dos sindicatos industriais, e que haviam passado pela experiência da Segunda Guerra Mundial. Afro-estadunidenses que participaram da Grande Migração do sul para o norte industrial transmitiram uma nova confiança e militância de volta ao movimento no sul, que, inicialmente, assumiu a forma das lutas em massa a partir das igrejas, lideradas por Martin Luther King, Jr.

O capitalismo estadunidense há muito tempo repudia sua herança revolucionária. Duzentos anos depois do nascimento de Douglass e mais de um século depois de sua morte, a causa do progresso social está, mais inseparavelmente do que nunca, ligada à união da classe trabalhadora contra o capitalismo, o sistema de escravidão assalariado. As tentativas hoje em dia de alimentar o racismo só podem ser derrotadas como parte dessa luta. O legado revolucionário de Douglass tem muito a ensinar nesse aspecto, e gerações futuras vão se lembrar de suas enormes contribuições.

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