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Perspectivas

A crise do impeachment nos EUA

Malditos sejam os dois partidos políticos

Publicado orginalmente em 19 de dezembros de 2019

A Câmara dos Deputados dos EUA aprovou na noite de quarta-feira o impeachment do presidente Donald Trump. Os discursos que antecederam a votação continham inúmeras invocações do significado histórico da decisão. Mas a história de impeachments anteriores apenas expõe o caráter de direita e pró-guerra da campanha de impeachment dos democratas.

Donald Trump com Nancy Pelosi (Crédito: WikiMedia)

O primeiro impeachment de um presidente dos EUA aconteceu contra Andrew Johnson, em 1868. Logo após a Guerra Civil, Johnson, um democrata contra a secessão, mas virulentamente racista, chegou à presidência após o assassinato de Abraham Lincoln. Os republicanos do Congresso consideravam Johnson um aliado de ex-proprietários de escravos e aprovaram seu impeachment depois do presidente demitir o secretário de guerra, um forte defensor da Reconstrução Radical do Sul. A absolvição de Johnson no Senado, por um único voto, foi um sinal do afastamento da classe capitalista do Norte da luta democrático-revolucionária da Guerra Civil, preparando-se para combater um novo inimigo, a classe trabalhadora dos EUA.

O segundo impeachment de um presidente dos EUA só não foi levado adiante pela renúncia forçada do presidente Richard Nixon, em 1974, depois que a Comissão de Justiça da Câmara dos EUA aprovou as denúncias de impeachment contra ele por obstrução de justiça, abuso de poder e desrespeito ao Congresso. Essas acusações estavam ligadas à revelação de um programa massivo de repressão política ilegal empregado pelo governo Nixon para suprimir os movimentos dos direitos civis e anti-guerra da década de 1960. Nixon formou sua unidade de ex-agentes da CIA, os “encanadores”, para espionar Daniel Ellsberg, que vazou os Documentos do Pentágono para a mídia. Quando os “encanadores” foram pegos assaltando os escritórios do Comitê Nacional Democrata no prédio Watergate, em julho de 1972, a cadeia de eventos que levou à renúncia de Nixon dois anos depois foi acionada.

Não faltam razões legítimas para destituir Trump. Ele arrancou milhares de crianças imigrantes de suas famílias em uma política que equivale à tortura pelas Nações Unidas. Ele criou campos de concentração em solo estadunidense. Ele desviou fundos militares desafiando o congresso para construir seu estado militar ao longo da fronteira Sul dos EUA. Ele afirmou que estaria disposto a desafiar os limites do mandato constitucional e rejeitar o resultado eleitoral caso fosse derrotado. Ele tem tentado criar um movimento fascista em solo estadunidense.

Mas todas essas questões democráticas fundamentais foram excluídas da campanha de impeachment dos democratas, que é centrada nas alegações de que Trump tem sido insuficientemente agressivo no combate a uma guerra por procuração contra a Rússia na Ucrânia.

“No final, esse impeachment é o primeiro sobre se o presidente está vendendo a segurança nacional dos EUA”, escreve David Sanger no New York Times. “Embora a Ucrânia seja o evento mais próximo, como o presidente lidou com Putin é o principal tema”.

Sanger conclui dizendo: “o argumento sobre a Ucrânia, a razão ostensiva do impeachment do presidente, não era realmente sobre a Ucrânia. Era sobre a Rússia.”

Mas foi o presidente da Comissão de Inteligência da Câmara, Adam Schiff – a figura central na campanha de impeachment – que não deixou dúvidas sobre a exigência central do Partido Democrata para escalar o conflito dos EUA contra a Rússia.

“A Ucrânia está lutando contra os russos, contra o expansionismo deles. Essa é a nossa luta também”, Schiff disse. “Costumávamos enfrentar Putin e a Rússia. Eu sei que o partido de Ronald Reagan costumava.”

“É por isso que apoiamos a Ucrânia com a ajuda militar que temos”, continuou Schiff. “O presidente pode não se importar, mas nós, sim. Nós nos preocupamos com nossa defesa, nos preocupamos com a defesa de nossos aliados e nos preocupamos muito com nossa constituição.”

Em nenhum lugar alguém conseguiu explicar por que a guerra da Ucrânia com a Rússia deveria ser “nossa luta também” ou por que o fracasso em travar esta guerra segundo a satisfação dos democratas constitui uma ofensa a ponto de Trump ser destituído.

A tentativa dos democratas de destituir Trump tem o objetivo de legitimar uma intensa escalada do conflito dos EUA com a Rússia, uma política para a qual não existe apoio entre a massa da população.

O Partido Democrata está ciente do amplo ódio popular ao governo Trump. Mas o que esse partido dos ricos e abastados teme muito mais do que a reeleição de Trump é uma mobilização em massa exigindo sua renúncia, o que inevitavelmente desafiaria a própria riqueza dos democratas e o sistema capitalista.

Nos termos definidos pelos democratas, o impeachment não tem conteúdo democrático ou legítimo. O completo afastamento e indiferença a qualquer sentimento ou exigência popular confere-lhe o caráter de um golpe palaciano. As inúmeras alegações de vários democratas de que seu impeachment constitui uma defesa da democracia não convencem e são falsas.

Mesmo enquanto avançavam com o processo de impeachment, os democratas trabalharam com Trump para expandir as forças armadas, cortar as restrições do Congresso ao uso da força militar e aumentar a repressão aos imigrantes. Na terça-feira, democratas e republicanos aprovaram o maior orçamento militar da história dos EUA e, na quinta-feira, um dia após a aprovação do impeachment, planejam aprovar o Acordo EUA-México-Canadá (USMCA), uma medida de guerra comercial contra a China.

Enquanto os deputados votavam o impeachment, Trump estava em Battle Creek, em Michigan, fazendo um apelo violento, demagógico e fascista a seus apoiadores. Trump ecoou o conteúdo da carta que ele havia enviado à Câmara dos Deputados, na qual acusou a Presidente da Câmara de “declarar guerra aberta à democracia estadunidense”.

Mas, ao excluir todas as questões democráticas que conseguiriam mobilizar a população contra Trump, os democratas realmente caíram no jogo do presidente, que tentou mobilizar sua base fascista com o argumento de que ele é vítima de uma conspiração do “estado profundo”.

A mentira central de Trump é equiparar os esforços dos democratas para destituí-lo – junto com os das agências de inteligência e da mídia – com o socialismo. É assim que o presidente rotula qualquer forma de oposição popular à sua administração. Nas tradições do fascismo, Trump se apresenta falsamente como vítima de uma conspiração entre as “elites”, socialistas e comunistas.

Qualquer que seja o resultado da crise do impeachment, a política estadunidense fará um perigoso movimento ainda mais à direita. Se os democratas não conseguirem destituir Trump – como parece provável –, isso o fortalecerá. Se, de alguma forma, conseguirem destituir Trump, isso seria visto como ilegítimo por amplas camadas da população e garantiria virtualmente uma escalada do conflito militar com a Rússia.

Não importa o resultado, o impeachment deve ser visto no contexto da maior crise do capitalismo dos EUA desde a Guerra Civil. Cada um de sua maneira, os democratas e republicamos representam os imperativos gêmeos do imperialismo dos EUA diante de crise social e da perda de sua hegemonia global.

Os democratas encarnam o impulso para a guerra; os republicanos, na forma de Trump, incorporam o movimento em direção a formas de governo fascistas e autoritárias.

A batalha contra Trump só pode se desenvolver a partir de uma luta social e política enraizada na classe trabalhadora. O pré-requisito essencial para o surgimento de tal movimento é a ruptura total e inequívoca com os democratas e republicanos. A atitude da classe trabalhadora em relação a esse processo de impeachment deve ser, parafraseando Shakespeare: “Malditos sejam os dois partidos políticos!”.

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