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Perspectivas

A morte de Qassem Soleimani e o assassinato como política de estado

Publicado originalmente em 4 de janeiro de 2020

Com o assassinato do general iraniano Qassem Soleimani e sete outros com um míssil lançado de um drone no aeroporto internacional de Bagdá nas primeiras horas da madrugada de sexta-feira, a administração Trump levou adiante um ato criminoso de terrorismo de estado que chocou o mundo.

O assassinato a sangue frio de Washington de um general do exército iraniano e um homem descrito por muitos como a segunda figura mais poderosa em Teerã é sem dúvida tanto um crime de guerra quanto um ato de guerra contra o Irã.

O presidente Donald Trump dá declaração sobre o Irã em sua propriedade em Mar-a-Lago, Palm Beach, Flórida, na sexta-feira, 3 de janeiro de 2020 (AP Photo/ Evan Vucci)

Pode levar algum tempo até que o Irã dê uma resposta ao assassinato de Soleimani. Não há dúvida de que Teerã irá, de fato, reagir, especialmente frente à indignação pública do assassinato de uma figura que tinha apoio massivo.

Porém, o Irã sem dúvida dedicará muito mais atenção à sua resposta do que Washington deu à sua ação criminosa. O Conselho de Segurança Nacional do país se reuniu na sexta-feira, e as autoridades iranianas irão certamente discutir o assassinato de Soleimani com Moscou, Pequim e, provavelmente, a Europa. Autoridades estadunidenses e a mídia empresarial parecem quase desejar uma retaliação imediata para avançar seus próprios objetivos, mas os iranianos têm muitas opções.

É um fato político que a morte de Soleimani iniciou efetivamente uma guerra dos EUA contra o Irã, um país quatro vezes o tamanho do Iraque e com mais do que o dobro de sua população. Uma guerra como essa ameaçaria espalhar o conflito armado por toda a região e, de fato, o mundo inteiro, com consequências incalculáveis.

Esse crime, impulsionado pelo desespero crescente dos EUA em torno de sua posição no Oriente Médio e pela crise interna cada vez maior da administração Trump, choca pelo seu grau de imprudência e ilegalidade. Os EUA recorrerem a um ato tão perverso revela que ele não conseguiu alcançar quaisquer um dos objetivos estratégicos que levaram às invasões do Iraque em 1991 e 2003.

O assassinato de Soleimani é o auge de um longo processo de intensificação da criminalidade da política externa estadunidense. “Assassinatos seletivos”, um termo introduzido no vocabulário da política imperialista mundial por Israel, têm sido empregados contra supostos terroristas em países desde o Sul da Ásia até o Oriente Médio e África ao longo de aproximadamente duas décadas. Não há precedentes, entretanto, para um presidente dos Estados Unidos ordenar, e então reivindicar responsabilidade publicamente pela morte de uma alta autoridade governamental que estava visitando legalmente e abertamente um terceiro país.

Soleimani, o líder da força Quds do Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica do Irã, não era como Osama bin Laden ou Abu Bakr al-Baghdadi. Ao contrário, ele teve um papel decisivo na derrota das forças da Al Qaeda e do Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS), que aquelas duas figuras, ambas assassinadas por esquadrões da morte de operações especiais dos EUA, haviam liderado.

Centenas de milhares de pessoas saíram às ruas de Teerã e cidades em todo o Irã na sexta-feira em luto e protesto pela morte de Soleimani, que era visto como um ícone do nacionalismo e da resistência iraniana aos ataques de décadas do imperialismo estadunidense contra o país.

No Iraque, o ataque por um drone estadunidense foi severamente condenado como uma violação da soberania do país e da lei internacional. Além de Soleimani, estava entre as vítimas Abu Mahdi al-Muhandis, o segundo no comando das Forças de Mobilização Popular (PMF) do Iraque, uma coalizão formada por 100 mil membros de milícias xiitas, considerada uma parte das forças armadas do país.

Em comparação a essa resposta, as declarações de Trump e seus assessores foram ignorantes e violentas. O presidente dos EUA, falando do seu resort de férias em Mar-a-Lago na Flórida, gabou-se de ter “matado o terrorista número um do mundo inteiro”. Ele ainda disse que “Soleimani estava planejando ataques iminentes e sinistros contra diplomatas e militares dos EUA, mas o pegamos em flagrante e o matamos”.

Trump acusou o general iraniano, dizendo que ele “tem cometido atos de terrorismo para desestabilizar o Oriente Médio nos últimos 20 anos”. Segundo o presidente estadunidense, “O que os Estados Unidos fizeram ontem deveria ter sido feito há muito tempo. Muitas vidas teriam sido salvas.”

Quem o presidente acha que está enganando com sua retórica mafiosa? Nos últimos 20 anos, o Oriente Médio foi devastado por uma série de intervenções imperialistas. A invasão ilegal do Iraque pelos Estados Unidos, baseada em mentiras sobre “armas de destruição em massa”, causou mais de um milhão de mortes, enquanto dizimava o que havia sido uma das sociedades mais avançadas no mundo árabe. Junto com a guerra de 18 anos de Washington no Afeganistão e as guerras de mudança de regime lançadas na Líbia e na Síria, o imperialismo estadunidense provocou uma crise regional que matou milhões e forçou dezenas de milhões a fugirem de suas casas.

Soleimani, que Trump acusou de ter “feito da morte de pessoas inocentes sua paixão doentia” – uma auto-descrição adequada – chegou à liderança das forças armadas iranianas durante a guerra de oito anos entre Irã e Iraque, na qual cerca de um milhão de iranianos morreram.

Ele se tornou conhecido do aparato militar, de inteligência e diplomático dos EUA em 2001, quando Teerã ofereceu inteligência para Washington auxiliando sua invasão do Afeganistão. Ao longo da guerra dos EUA no Iraque, autoridades estadunidenses realizaram negociações de bastidores com Soleimani mesmo enquanto a força Quds oferecia ajuda às milícias xiitas que estavam resistindo à ocupação estadunidense. Soleimani teve um papel central em escolher os políticos xiitas iraquianos que lideraram os regimes instalados sob a ocupação dos EUA.

Soleimani teve ainda um papel de destaque organizando a derrota das milícias ligadas à Al-Qaeda, que estavam lutando contra o governo de Bashar al-Assad na guerra de mudança de regime orquestrada pela CIA na Síria. Depois, ele reuniu milícias xiitas para derrotar a organização derivada da Al-Qaeda, o Estado Islâmico, após ele ter tomado um terço do Iraque e derrotado completamente forças de segurança treinadas pelos EUA.

Descrever tal figura como um “terrorista” significa apenas que qualquer autoridade de estado ou comandante militar em qualquer lugar no mundo que prejudique os interesses de Washington e dos bancos e corporações estadunidenses pode ser rotulado da mesma maneira e ser assassinado. O ataque no aeroporto de Bagdá sinaliza que as regras de combate mudaram. Todas as “linhas vermelhas” foram cruzadas. No futuro, o alvo poderia ser um general ou mesmo um presidente na Rússia, China ou, de fato, em qualquer uma das capitais dos antigos aliados de Washington.

Depois desse assassinato comemorado publicamente – reivindicado abertamente por um presidente dos EUA sem ao menos tentar negá-lo –, existe qualquer chefe de Estado ou importante figura militar no mundo que possa se reunir com autoridades estadunidenses sem pensar que, se as coisas não derem certo, ele também pode ser assassinado?

O assassinato do general Soleimani em Bagdá foi comparado pelo Die Zeit, um dos mais importantes jornais alemães, ao assassinato em 1914 do arquiduque austríaco, Franz Ferdinand. Assim como foi naquele caso, o jornal diz que “o mundo inteiro está prendendo a respiração e esperando ansiosamente pelo que pode vir”.

Esse ato criminoso carrega em si tanto a ameaça de uma guerra nuclear quanto a repressão ditatorial dentro dos Estados Unidos. Não há razão para acreditar que um governo que adotou o assassinato como um instrumento de política externa deixará de usar os mesmos métodos contra os seus inimigos domésticos.

O assassinato de Soleimani é uma expressão da extrema crise e desespero de um sistema capitalista que ameaça jogar a humanidade no abismo.

A resposta a esse perigo está no crescimento da luta de classes. O início da terceira década do século XXI está assistindo ao impulso em direção à guerra, mas também ao levante de milhões de trabalhadores em todo o Oriente Médio, nos Estados Unidos, América Latina, Ásia e em todos os cantos do mundo lutando contra a desigualdade social e os ataques contra direitos sociais e democráticos básicos.

Essa é a única força social que pode ser a base de uma genuína oposição ao ímpeto das elites dominantes capitalistas em direção à guerra. A resposta necessária ao perigo da guerra imperialista é a unificação dessas lutas cada vez maiores da classe trabalhadora através da construção de um movimento unificado, anti-guerra internacional e socialista.

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