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Conflito entre Bolsonaro e Congresso aprofunda crise da dominação capitalista no Brasil

Publicado originalmente em 6 de março de 2020

A disputa pelo controle do orçamento de 2020 entre o Congresso e o Executivo comandado pelo presidente fascista Jair Bolsonaro exacerbou as divisões internas da burguesia brasileira. A tentativa dos parlamentares de ampliar o chamado orçamento impositivo – instituído em 2015 e sobre o qual o presidente não tem poder de alteração – foi respondida pelo alto escalão do governo Bolsonaro com chamados para tirar o poder do Congresso através da pressão popular.

Essa posição foi expressa pelo General Augusto Heleno, um dos braços direitos de Bolsonaro e que comanda o Gabinete de Segurança Institucional. Em transmissão ao vivo do governo, supostamente por “acidente”, Heleno foi gravado dizendo: “Não podemos aceitar esses caras [do Congresso] chantageando a gente. Foda-se.” O general disse a Bolsonaro que ele não podia “ficar acuado” e que deveria mostrar à população que estava sob pressão.

Em resposta à fala de Heleno, manifestações de rua em apoio a Bolsonaro, que já estavam agendadas para o dia 15 de março, mudaram seu foco para um protesto contra o Congresso. O material de divulgação das manifestações contou com os retratos dos militares à frente do governo e o seguinte chamado: “Os generais aguardam as ordens do povo”. Parlamentares diretamente ligados a Bolsonaro iniciaram uma campanha convocando para as manifestações, que foi liderada pela deputada federal Carla Zambelli, uma das fundadoras do partido fascista de Bolsonaro, Aliança pelo Brasil.

Bolsonaro e o ministro da Defesa, General Fernando Azevedo e Silva

Essa campanha gerou significativa controvérsia pública após a jornalista do Estado de S. Paulo, Vera Magalhães, noticiar que Bolsonaro tinha pessoalmente compartilhado pelo WhatsApp um vídeo convocando para as manifestações. Essa revelação provocou ampla crítica entre o establishment político brasileiro, incluindo de lideranças do Congresso, do Supremo Tribunal Federal, de jornais burgueses e dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso, que acusaram Bolsonaro de romper com as normas democráticas.

O Partido dos Trabalhadores (PT), apoiado pelo PSOL e outras organizações da pseudoesquerda, respondeu transformando uma série de protestos já marcados em manifestações contra o autoritarismo de Bolsonaro. As lideranças do PT, no entanto, se colocaram radicalmente contra qualquer possibilidade de impeachment do presidente. Em entrevista ao jornal suíço Le Temps, Lula reforçou sua posição de que “temos que esperar 4 anos… Nós não podemos achar que nós podemos derrubar um presidente porque não gostamos dele.”

A Folha de S. Paulo noticiou que o PT concluiu que não há condições para o impeachment porque Bolsonaro ainda conta com um apoio substancial dos mercados e das grandes empresas, uma avaliação que fala muito sobre o caráter burguês do assim chamado Partido dos Trabalhadores.

A covardia do PT é ainda mais exposta pelas posições assumidas por importantes figuras da direita brasileira. O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, do Partido Social Cristão (PSC), que se elegeu vinculando sua imagem à de Bolsonaro, disse que “a resposta jurídica para isso [a veiculação do vídeo por Bolsonaro] é o impeachment”. O aliado de Witzel, João Doria, que governa o estado de São Paulo pelo Partido Social Democrata Brasileiro (PSDB), considerou a ação de Bolsonaro “preocupante” e se manifestou contra uma “escalada do autoritarismo”.

Witzel e Doria, que encabeçaram uma aliança de 20 governadores que criticou ações do presidente em uma carta, têm se colocado como lideranças de uma oposição burguesa a Bolsonaro. A disputa entre o governo federal e os governos estaduais tem origem nas profundas contradições da sociedade brasileira. Choques recentes giraram em torno dos preços elevados dos combustíveis, que ameaçam desencadear uma nova greve de caminhoneiros com amplo apoio da população. Tentando transferir o ônus da crise para os estados, Bolsonaro desafiou publicamente os governadores a acabar com o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre combustíveis. O ICMS sustenta as contas dos estados.

Os conflitos se manifestaram novamente com a ameaça da generalização de motins das polícias militares estaduais por todo o país, seguindo o exemplo da greve iniciada no Ceará e que teve fim no último domingo. Uma vez que muitos dos governadores basearam suas campanhas eleitorais no apoio à polícia e aos militares, como foi o caso de Witzel e Doria, e como a polícia se sente apoiada politicamente por Bolsonaro, eles estão exigindo aumentos substanciais de seus salários.

Considerando ainda que a política geral é de aplicação de fortes medidas recessivas, com ataques diretos às condições de vida da população, a situação da classe trabalhadora brasileira é crítica. Na terça-feira, o governo Doria aprovou em São Paulo a reforma da previdência que ataca os regimes de aposentadoria dos mais de 500 mil funcionários públicos do estado. A votação da medida foi possibilitada pela brutal repressão a uma grande manifestação de professores, com a tropa de choque da polícia militar ocupando a Assembleia Legislativa e deixando uma série de trabalhadores feridos. A dependência do aparato repressivo deixa claro os motivos da preocupação de Doria com uma rebelião de sua polícia militar, para a qual ofereceu um aumento muito inferior ao exigido pelos policiais amotinados no Ceará.

Gabinete de Bolsonaro discute a intervenção do exército no Ceará (Crédito: Presidência da República)

Apesar de ter decretado operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e enviado tropas do Exército ao Ceará, o governo Bolsonaro ainda possui uma base política entre a polícia militar. A todo momento frisou que a responsabilidade para resolver o motim da polícia era do governador do Ceará, Camilo Santana (PT). Bolsonaro ainda ameaçou não renovar a operação, dizendo que “A GLO não é para ficar eternamente atendendo um ou mais governadores”.

A intervenção federal foi utilizada por Bolsonaro como uma forma de promover a defesa de seu projeto de lei que estabelece excludente de ilicitude para operações de GLO, o que daria aos militares uma licença para matar. Já seus aspectos práticos contrariaram as expectativas do governo local, que esperava que desarticulasse a greve cercando os batalhões amotinados. O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, respondeu que “A Força Nacional de Segurança Pública e as Forças Armadas, por meio da GLO, visam substituir os policiais e não confrontá-los”, chamando ainda os policiais amotinados de “profissionais dedicados”. Essa declaração foi celebrada por lideranças dos policiais em greve.

O apoio do governo Bolsonaro à rebelião policial ficou ainda mais evidente com o fim da greve. No dia seguinte, o filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, declarou solidariedade aos militares que se rebelaram, dizendo: “A gente tá aqui pra representar vocês policiais, vocês não estão sozinhos.” Ainda mais marcante foi a atuação do comandante da Força Nacional, Aginaldo de Oliveira, que esteve pessoalmente na assembleia de encerramento da greve, onde declarou: “É muita coragem fazer o que os senhores estão fazendo…Vocês movimentaram toda uma comissão do estado cearense e do Estado brasileiro do governo federal…Acreditem, vocês são gigantes, vocês são monstros, vocês são corajosos, demonstraram isso ao longo desses 10, 11, 12 dias que estão aqui dentro deste quartel em busca de melhorias da classe, que vão conseguir.”

O caráter político dessa declaração é ainda mais gritante pelo fato do comandante Oliveira ser casado com a deputada Carla Zambelli, que está à frente da convocação das manifestações do dia 15 de março. Para completar o enredo, o padrinho do recente casamento deles foi o próprio ministro Sérgio Moro.

O governo Bolsonaro está rompendo com as formas democráticas de dominação da burguesia. Esse processo só pode ser compreendido como parte de um desenvolvimento político internacional. A guinada à direita da classe dominante – que se manifestou na chegada ao poder de figuras como Bolsonaro no Brasil, Trump nos EUA e Narendra Modi na Índia – é sintomática de uma crise profunda de todo o sistema capitalista.

No entanto, as instituições burguesas, que serão defendidas com todo o vigor nos atos convocados pelo PT, não oferecem qualquer proteção à classe trabalhadora contra a reação da classe dominante. Ao contrário, foi sob essas instituições que se gestou o perigo fascista que hoje mostra seu rosto terrível.

A liberdade para empregar o Exército contra a população nas ruas, que Bolsonaro está obstinado em consolidar, vem sendo preparada desde os governos do PT, que intervieram com as Forças Armadas para invadir favelas e reprimir protestos. Foi também sob o governo do PT que foi sancionada a Lei Antiterrorismo, que ameaça profundamente qualquer manifestação de oposição social e que o Congresso busca hoje ampliar ao máximo. Bolsonaro não caiu como um raio em céu azul; ele cresceu livremente no interior do Estado brasileiro, e em aliança política com o PT ao longo dos anos.

A principal função da defesa do PT da democracia burguesa e de suas instituições é desarmar politicamente a classe trabalhadora. Essa tarefa é encabeçada, junto com o PT, pelos partidos e organizações da pseudoesquerda. Provavelmente, nenhum deles expôs suas ideias de forma tão clara quanto os morenistas da Resistência/PSOL. Em seu site, EsquerdaOnline, publicaram uma convocação para as manifestações petistas contra Bolsonaro que sintetiza o conteúdo profundamente reacionário de sua política:

“A Câmara dos Deputados, o Senado Federal, o Supremo Tribunal Federal, a Procuradoria Geral da República, partidos políticos, lideranças políticas, Ordem dos Advogados do Brasil, Associação Brasileira de Imprensa, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, entre outras entidades, têm dever de tomar atitudes concretas contra o plano posto em marcha para solapar o regime democrático. Tod@s democratas devem estar na linha de frente contra os ataques aos direitos e às liberdades democráticas, construindo ações amplas e unitárias.”

Esse programa, que possui o objetivo de suprimir as lutas da classe trabalhadora e subordiná-las aos partidos burgueses de direita e até mesmo aos instrumentos diretos de repressão do estado capitalista, reflete as políticas e os interesses de uma camada desesperada da classe média alta brasileira, que se opõe e teme o crescimento da luta de classes.

Os trabalhadores brasileiros devem rejeitar tais chamados por “unidade” com o Estado capitalista com o desprezo que eles merecem. A única resposta para a ameaça do fascismo e da ditadura reside na luta independente da classe trabalhadora, baseada no programa da revolução socialista internacional. Isso torna ainda mais urgente a construção de uma nova liderança revolucionária no Brasil como uma seção do Comitê Internacional da Quarta Internacional.

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