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Perspectivas

Intensifica-se a crise da pandemia do coronavírus

O capitalismo está em guerra com a sociedade

Publicado originalmente em 13 de março de 2020

A pandemia do coronavírus está evoluindo para uma crise social, econômica e política nunca antes vista. A queda drástica que ocorreu ontem nos mercados globais, especialmente nos Estados Unidos, onde Wall Street registrou sua maior perda de um dia desde 1987, foi o resultado do reconhecimento de que a pandemia terá um impacto maciço na economia mundial e perturbará profundamente a ordem social existente.

As estimativas da escala provável de mortes geradas pela doença estão produzindo uma ansiedade crescente. O número total de infecções confirmadas em todo o mundo está se aproximando de 150.000 e aumentando exponencialmente, mas esses números subestimam a realidade. Devido à falta de testes adequados e ao longo período de incubação antes dos sintomas aparecerem, o número real é muito maior. O número oficial de mortes é agora superior a 5.000 e as vidas de incontáveis milhões de pessoas ao redor do mundo estão em perigo.

A Itália aprofunda o seu bloqueio nacional, com praticamente todas as lojas fechadas e ruas vazias. A chanceler alemã Angela Merkel afirmou que 60 a 70% da população do país será infectada, o que significa que milhões de pessoas vão precisar de cuidados intensivos ou irão morrer. O Irã começou a cavar valas comuns, à medida que a epidemia sai fora do controle. A França está fechando todas as escolas e universidades. Nos Estados Unidos, grandes eventos públicos esportivos e de entretenimento foram cancelados e produtos de primeira necessidade rapidamente se esgotaram nas prateleiras das lojas.

Trabalhadores de limpeza da Servpro são higienizados ao deixarem uma clínica médica em Kirkland, Washington, em 12 de março de 2020, após terem passado o dia limpando instalações próximas a Seattle (AP Photo/Ted S. Warren)

A pandemia do coronavírus expôs a incapacidade do sistema capitalista de lidar com uma crise dessa proporção. Os governos de todo o mundo responderam com um nível assustador de incompetência e desorganização. Nenhuma medida foi antecipada para um desastre absolutamente previsível. Os sistemas de saúde, sucateados ao longo dos anos, estão sobrecarregados.

A completa incapacidade dos Estados Unidos, o país capitalista mais rico do mundo, de responder a esta emergência é uma acusação contra um governo e todo o sistema econômico.

Em seu discurso à nação na noite de quarta-feira, o presidente Donald Trump sintetizou a indiferença da oligarquia capitalista para com a vida de milhões de pessoas. Sua investida nacionalista culpou a China e a Europa pelo “vírus estrangeiro”.

O discurso de Trump veio depois de semanas em que o presidente, concentrado inteiramente no impacto da crise no mercado de ações, proclamou que tudo estava bem, que o coronavírus não era uma ameaça séria. Ele não conseguiu se solidarizar minimamente com as massas de pessoas nos Estados Unidos e ao redor do mundo que estão vendo suas vidas serem destroçadas. Ele não anunciou medidas para resolver a falta de testes ou a extrema escassez de instalações de atendimento à saúde.

Não se trata, porém, somente da personalidade sociopata do atual ocupante da Casa Branca. Trump é o produto do capitalismo dos EUA, de uma sociedade dominada por níveis de desigualdade sem precedentes, na qual uma vasta riqueza foi acumulada pela elite financeira à custa de todo o resto.

O caráter de classe da resposta do governo foi revelado claramente na quinta-feira. O Federal Reserve, em uma tentativa desesperada e fútil de combater a venda desenfreada de ações em Wall Street, anunciou a destinação de US$ 1,5 trilhão para a compra de ações e outros ativos. Enquanto isso, o Congresso dos EUA entrou em choque em torno de alguns bilhões de dólares para a assistência daqueles que estão sendo dispensados do trabalho ou impactados de outra forma – o que não passa de uma ninharia do que é urgentemente necessário.

O surto da pandemia e suas consequências só podem ser compreendidos no contexto do desenvolvimento do capitalismo global ao longo das últimas quatro décadas. Durante esse período, foram reveladas todas as características socialmente reacionárias de um sistema baseado na propriedade privada dos meios de produção, no qual todas as considerações a respeito das necessidades sociais estão subordinadas ao impulso pelo lucro e a vasta riqueza pessoal. O lema da oligarquia capitalista é: “Se a acumulação dos nossos bilhões exige a morte de milhões, que assim seja”.

Em 1987, a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher fez a declaração infame de que “não existe essa coisa de sociedade”. A máxima de Thatcher serviu como justificativa para um ataque massivo aos programas e infraestruturas sociais e uma transferência maciça de riqueza da classe trabalhadora para os ricos. Durante quatro décadas, as elites dominantes, sobretudo nos Estados Unidos, se dedicaram à pilhagem social. Toda a política tem sido baseada no enriquecimento privado dos oligarcas à custa da sociedade.

Ambos os partidos políticos, Democrata e Republicano, dirigiram esse crime social. Durante os últimos três anos, enquanto Trump atacava trabalhadores e imigrantes, os democratas proclamaram que a principal ameaça ao povo dos EUA vinha da Rússia. Toda a oposição social ao regime Trump foi subordinada à agenda reacionária das agências militares e de inteligência.

Agora vemos as consequências. Mais do que em qualquer outro país, os Estados Unidos revelaram um nível de despreparo que é absolutamente criminoso. Na quinta-feira, o diretor do Departamento de Saúde de Ohio declarou que as evidências de propagação comunitária indicam que 1% dos residentes no estado estão infectados, ou 117.000 pessoas. Somente cinco indivíduos foram testados positivos.

Os Centros de Controle de Doenças têm capacidade para realizar apenas 300 a 350 testes por dia. Na prática, estão fazendo ainda menos. Nesta semana, mesmo com o contágio se espalhando por todo o país, foram feitos apenas oito testes na terça-feira e nenhum na quarta-feira. Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas, reconheceu em testemunho perante o Congresso na quinta-feira que “o sistema não está realmente preparado para o que necessitamos agora... Isso está falhando”.

À medida que a doença se espalha, o sistema de saúde dos Estados Unidos estará rapidamente sobrecarregado. O número de leitos hospitalares e unidades de terapia intensiva é totalmente inadequado para atender à demanda esperada, o que significa que dezenas de milhares de pessoas simplesmente não serão capazes de receber cuidados médicos, aumentando enormemente o número de mortes. Os profissionais de saúde enfrentam falta de materiais básicos, incluindo máscaras e outros equipamentos essenciais, expondo a si mesmos e seus pacientes a um risco ainda maior.

Os locais de trabalho não estão equipados para garantir segurança, com muitos trabalhadores relatando condições insalubres, falta de sabão e até mesmo de água quente. Na quinta-feira, um operário de uma fábrica da Fiat Chrysler (FCA) em Indiana testou positivo para a doença, mas a fábrica, um importante gargalo de produção da FCA, está sendo mantida em funcionamento. Os trabalhadores de serviços, a maioria dos quais não tem licença médica remunerada, estão perigosamente expostos.

Com escolas e faculdades sendo fechadas, centenas de milhares de estudantes podem vir a ser despejados de seus dormitórios, sem planos de moradia alternativa. Pais estão sendo forçados a tirar licenças não remuneradas de trabalho ou a encontrar um lugar para deixar seus filhos, sem nenhuma estrutura à disposição deles.

A mesma história se repete em todos os países. Os governos se desdobram para salvar os lucros das empresas, enquanto milhões enfrentam as consequências sem qualquer assistência. Não há coordenação ou plano para enfrentar a pandemia. A Organização Mundial da Saúde, que supostamente existe para coordenar respostas a emergências de saúde, é impotente e suas diretrizes e regulamentos estão sendo universalmente ignorados.

Tempo precioso foi desperdiçado enquanto a pandemia global ganhava seu impulso fatal. Quando a pandemia se manifestou pela primeira vez em Wuhan, Washington estava interessado na maneira como poderia tirar vantagem da crise na China do ponto de vista geopolítico dos Estados Unidos. Os meios de comunicação prestaram uma atenção limitada à ameaça e não fizeram nenhum chamado para uma ação urgente e coordenada a nível global.

Em contraste, o Comitê Internacional da Quarta Internacional e seus Partidos Socialistas pela Igualdade filiados, baseando-se numa perspectiva socialista internacional que prioriza os interesses universais comuns da classe trabalhadora, reconheceram o perigo e soaram o alarme. O World Socialist Web Site alertou em 28 de janeiro: “O surto expôs a enorme vulnerabilidade da sociedade contemporânea a novas epidemias de doenças infecciosas, perigos para os quais nenhum governo capitalista se preparou adequadamente”. O WSWS escreveu que a necessidade urgente de uma ação coordenada internacionalmente para combater a pandemia foi minada pelos conflitos nacionais:

Em um momento em que o planejamento racional através das fronteiras nacionais é fundamental para combater a propagação global de uma doença virulenta, os Estados Unidos e a China estão presos a um conflito comercial crescente, que tem sido chamado de uma nova “guerra fria”. Mesmo quando novos patógenos exigem recursos científicos de todos os continentes para combatê-los, os países do mundo erguem muros metafóricos e literais.

A defesa da civilização humana contra a ameaça de pandemias globais, assim como da mudança climática e da crescente ameaça de desastres ecológicos, requer um nível de planejamento e cooperação global do qual o capitalismo é incapaz. A sociedade superou o sistema capitalista e as divisões arbitrárias que ele impõe ao mundo. A provisão das necessidades sociais mais existenciais requer um planejamento racional. Ou seja, requer o socialismo.

Os oligarcas no poder desperdiçaram seis semanas críticas e a ameaça global cresce exponencialmente. É preciso agir.

O princípio essencial que deve orientar a resposta à crise é de que as necessidades dos trabalhadores do mundo devem ter prioridade absoluta e incondicional sobre todas as considerações a respeito do lucro corporativo e da riqueza capitalista privada.

O Partido Socialista pela Igualdade e o Comitê Internacional da Quarta Internacional exigem uma mobilização maciça e coordenada internacionalmente de recursos sociais para combater o novo coronavírus, incluindo a alocação de trilhões de dólares para garantir o acesso aos testes e à assistência médica da mais alta qualidade para todos os infectados. O sistema de saúde baseado nas divisões de classe e orientado para o lucro deve ser abolido, substituído por uma cobertura igualitária e universal. Um programa maciço de obras públicas deve ser iniciado para produzir o equipamento médico desesperadamente necessário.

Devem ser tomadas medidas imediatas para proteger a saúde dos trabalhadores. Os locais de trabalho onde existe perigo de propagação do vírus devem ser fechados, com o pagamento integral de salários aos trabalhadores afetados. Onde as escolas forem fechadas, os pais devem receber licenças remuneradas. Os estudantes universitários forçados a sair de seus dormitórios devem receber uma moradia segura. Devem-se proibir que despejos e cortes de serviços públicos, como de água e luz, sejam realizados, assim como deve-se suspender o pagamento de aluguéis e garantir formas assistenciais de emergência.

Todos aqueles que afirmam, como Bernie Sanders, que algo pode ser feito sem enfrentar diretamente o próprio sistema capitalista, estão vendendo mentiras. Na quinta-feira, Sanders declarou que até 400 mil pessoas poderiam morrer por causa do coronavírus e que a crise “possui a escala de uma grande guerra”. Sanders, contudo, repetiu a sua alegação de que as medidas para enfrentar a crise podem ser alcançadas através de ações tanto do Partido Democrata como do Republicano.

Na realidade, o que a crise prova é a necessidade urgente de um movimento político massivo da classe trabalhadora nos Estados Unidos e internacionalmente contra o capitalismo e pela reorganização socialista da economia mundial. O que estamos testemunhando são as consequências de uma sociedade organizada com base no lucro. Uma sociedade na qual três indivíduos possuem mais riqueza do que a metade mais pobre da população é incapaz de resolver qualquer um dos grandes problemas enfrentados pela humanidade.

Os gigantescos bancos e corporações devem ser colocados sob propriedade pública e sob controle democrático. As vastas fortunas dos ricos devem ser expropriadas e formar fundos que garantam o acesso universal à saúde, habitação, serviços básicos e outras necessidades sociais. Toda a vida econômica deve ser reorganizada com base em uma economia global e planejada, removendo o obstáculo da propriedade privada e a orientação para o lucro. A última consideração na mente de qualquer pessoa deve ser o impacto nos lucros corporativos e nos valores das ações de Wall Street.

A pandemia revelou a necessidade incontornável de uma reestruturação fundamental da sociedade. Esta não é a primeira vez na história que uma grande crise demonstra que o progresso humano é inseparável da luta contra a desigualdade. Em um novo livro importante, The Great Leveler: Violence and the History of Inequality from the Stone Age to the Twenty-First Century [“A Grande Niveladora: Violência e a História da Desigualdade da Idade da Pedra ao Século XXI”], o historiador Walter Scheidel escreve: “Ao longo de toda a história escrita, os nivelamentos mais poderosos foram resultado, invariavelmente, dos mais poderosos choques. Quatro tipos diferentes de rupturas violentas diminuíram a desigualdade: guerras que mobilizam massas, revoluções transformadoras, a falência do Estado e pandemias letais. Chamo-lhes de os Quatro Cavaleiros do Nivelamento”. Cada um desses Cavaleiros é visível hoje.

O futuro da humanidade está em jogo. O capitalismo está em guerra com a sociedade. A classe trabalhadora, sob a bandeira do socialismo internacional, deve travar uma guerra contra o capitalismo.

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