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Perspectivas

Em meio ao aumento do número de mortes por COVID-19, classes dominantes agitam retorno precoce ao trabalho

Publicado originalmente em 6 de abril de 2020

Autoridades de saúde pública e médicos nos EUA estão alertando que milhares de pessoas infectadas pelo vírus da COVID-19 irão morrer esta semana. “Esse vai ser nosso momento Pearl Harbor, nosso momento 11 de setembro, só que não será localizado”, disse o diretor do Serviço de Saúde Pública, Jerome Adams, na Fox News nesse domingo. “Haverá muita morte”, completou Donald Trump no sábado.

Na Europa, quase 3.000 pessoas morreram no sábado enquanto a doença continua se espalhando pela Itália, França e Espanha. Nos países menos desenvolvidos da Ásia, Oriente Médio, África e América Latina, onde grandes parcelas da população vivem na extrema pobreza, o número de mortos será certamente de centenas de milhares.

Os Estados Unidos se transformaram no centro global da pandemia. O número total de mortes aproxima-se de 10.000, com 1.331 mortes somente no sábado. No entanto, esse número, de acordo com um artigo publicado no New York Times de domingo, é uma subestimação do número real de vítimas.

“Em muitas áreas rurais”, relata o Times, “os médicos legistas dizem que não possuem os testes necessários para detectar a doença. Os médicos acreditam agora que algumas mortes em fevereiro e início de março, antes do coronavírus ter atingido níveis epidêmicos nos Estados Unidos, provavelmente foram erroneamente identificadas como gripes ou apenas descritas como pneumonia”.

O diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas, Anthony Fauci, por sua vez, deixou claro que seria uma “falsa declaração” dizer que os Estados Unidos têm a COVID-19 “sob controle”.

Isso, para sermos francos, é um eufemismo. A falta de até mesmo um número preciso de mortos é só mais um exemplo grotesco de um espetáculo de desorganização e caos que é difícil de descrever.

Os Estados Unidos ainda não têm uma política de testar e isolar todos os casos suspeitos, como recomendado pela Organização Mundial da Saúde. Em mais de 90% das cidades do país faltam os suprimentos mais básicos, incluindo máscaras para os socorristas, médicos e enfermeiros. Em 92% das cidades não existem kits de teste suficientes, e 85% delas não possuem respiradores artificias suficientes.

Enquanto isso, os governos estaduais e municipais seguem alertando que enfrentam uma iminente escassez de respiradores. O governador de Louisiana, John Bel Edwards, afirmou que seu estado deve atingir o limite de respiradores disponíveis até segunda-feira, enquanto o prefeito Bill De Blasio advertiu que a cidade de Nova York deve ficar sem os equipamentos necessários para salvar vidas até terça ou quarta-feira.

A combinação de incompetência e indiferença do governo é personificada pelo próprio Trump, que, em suas divagantes coletivas de imprensa diárias, dificilmente é capaz de expressar qualquer simpatia pelas vítimas da pandemia.

Se algo nessa catástrofe realmente preocupa Trump é o impacto da pandemia sobre os lucros empresariais. Fauci disse que a propagação da COVID-19 pode ser significativamente retardada, se não totalmente detida, com o fechamento de todas as empresas não essenciais e a manutenção de uma quarentena social nacional com a duração de, provavelmente, vários meses.

Mas o próprio Trump, ao mesmo tempo que ocasionalmente repete as advertências de Fauci e da comunidade científica, declara insistentemente e com muito mais convicção, como fez em sua entrevista coletiva de sábado, que os estadunidenses “têm que voltar ao trabalho”.

“Pensem nisso”, disse. “Estamos pagando para as pessoas não irem trabalhar. E aí? Aonde isso vai dar?”

Seria um erro interpretar a indiferença de Trump em relação às vidas humanas como mera manifestação de sua personalidade sociopata. Por mais bárbaro que seja, Trump está expressando uma posição que possui grande aprovação entre a elite dominante.

Com o slogan “a cura não deve ser pior do que a doença”, a mídia capitalista começou a argumentar que os prejuízos econômicos causados pelo fechamento de empresas e fábricas seriam, a longo prazo, mais prejudiciais à sociedade do que as mortes resultantes de um rápido retorno ao trabalho, mesmo com a pandemia fora de controle.

Com extremo cinismo, a mídia se apresenta como a defensora dos pobres e dos trabalhadores. O conselho editorial do Wall Street Journal, por exemplo, que jamais protestou quando as empresas destruíram empregos e cortaram salários para aumentar os lucros corporativos, agora declara, em um editorial publicado na sexta-feira, estar preocupado com o “custo psicológico [do fechamento] sobre os estadunidenses que menos podem arcar com ele”.

Pintando a economia antes da pandemia em tons de rosa, o jornal afirma: “A tragédia [da paralisação da produção] é ainda pior, porque as principais vítimas são os trabalhadores pouco qualificados e os operários, que foram os que mais ganharam nos últimos anos”.

Que mais ganharam! Comparado com quem? Talvez com os CEOs e outros executivos corporativos cujos salários médios anuais, sem contar os bônus e lucros de investimentos, são centenas e centenas de vezes maiores que os de um trabalhador comum.

E apesar de toda a sua preocupação com os custos causados pelo fechamento prolongado dos locais de trabalho inseguros, o Wall Street Journal – que, por acaso, pertence ao multibilionário reacionário Rupert Murdoch – não aponta qual é o setor da população que tende a sofrer as maiores taxas de mortalidade em decorrência de um retorno prematuro ao trabalho.

Despida de todo o discurso hipócrita, a exigência para “equilibrar” o esforço de salvar vidas com as necessidades da “economia” significa nada mais do que sacrificar vidas humanas em nome dos interesses de lucro dos capitalistas.

Do ponto de vista da classe dominante, o processo de exploração de classe através da produção precisa continuar. E aqueles que morrerem podem ser substituídos. A única preocupação absoluta é o crescimento e a expansão dos valores do mercado de ações para o enriquecimento da oligarquia financeira.

Em outro artigo, publicado na sexta-feira, a revista Politico declarou: “Sim, precisamos medir vidas contra dinheiro”.

Do outro lado do Oceano Atlântico, os mesmos argumentos estão sendo apresentados.

Na Inglaterra, a The Economist defende que a “COVID-19 impõe escolhas difíceis entre a vida, a morte e a economia”. A revista semanal escreve: “Parece frieza, mas atribuir um valor em dólares à vida, ou pelo menos pensar isso de alguma forma sistemática, é exatamente o que os líderes precisam fazer se quiserem ver um caminho através dos meses angustiantes que estão por vir. Assim como nos hospitais, fazer trocas em que se perde de um lado para ganhar do outro será inevitável”.

A The Economist continua: “Quando uma criança está presa dentro de um poço, o desejo de fornecer ajuda ilimitada prevalecerá – e assim deve ser. No entanto, em uma guerra ou pandemia, os líderes não podem escapar do fato de que todas as diretrizes de ação que forem tomadas irão impor grandes custos sociais e econômicos. Para fazer isso de forma responsável, é preciso comparar uns contra os outros.”

E em que consiste tal “comparação”? Na primeira coluna, há uma contagem global, país por país, do número de pessoas que provavelmente morrerão se houver um rápido retorno ao trabalho em meio ao pleno desenvolvimento da pandemia. Na segunda coluna, há outra contagem, banco por banco e corporação por corporação, dos bilhões de lucros que serão perdidos.

A escolha, segundo a The Economist, é clara. As consequências de um regime prolongado de paralisação das fábricas e distanciamento social são, do ponto de vista sóbrio dos negócios, terríveis demais para serem consideradas: “Os mercados tombariam e os investimentos seriam adiados. A capacidade da economia murcharia à medida que a inovação parasse e o potencial produtivo se deteriorasse. Possivelmente, apesar de muitas pessoas estarem morrendo, os custos do distanciamento podem superar seus benefícios.” [Ênfase adicionada]

O coração de pedra do economista capitalista do século XIX, Thomas Malthus, que tinha ódio pela humanidade, ainda bate no peito da classe dominante britânica.

O Der Spiegel, escrevendo em nome da classe dominante alemã, que deu ao mundo Adolf Hitler, declarou que é uma “ideia perigosa” acreditar que o país “pode sair de um bloqueio nacional de vários meses sem sofrer consequências graves”. Inicialmente, “foi correto seguir os conselhos de virologistas e paralisar o país para conter a propagação descontrolada do vírus.… Mas, nas próximas semanas e meses, isso terá de ser constantemente reavaliado. Nessa altura, será preciso tomar decisões sérias sobre os riscos que estamos dispostos a correr para colocar a economia de volta nos trilhos”.

O “risco” que os governos capitalistas estão se preparando para correr é com as vidas da classe trabalhadora.

A demanda de setores substanciais do establishment político por uma volta ao trabalho aparece como uma clara linha de divisão social entre a classe trabalhadora e a oligarquia financeira.

Os cálculos feitos pela classe dominante e seus defensores assumem que todas as decisões sociais e econômicas devem ser tomadas com base nas necessidades e interesses do sistema de lucro capitalista. Qualquer política ou ação que prejudique esse sistema, ou ameace a riqueza da classe dominante, é inaceitável.

Mas a classe trabalhadora, uma força social objetivamente progressista e revolucionária, tem um conjunto de prioridades e interesses completamente diferente, que é fundamentalmente incompatível com aquele dos capitalistas.

No mês passado, as grandes montadoras de veículos de Detroit foram obrigadas a parar a produção, em meio a uma onda crescente de greves dos trabalhadores. Funcionários da Amazon, Instacart e Whole Foods entraram em greve na semana passada para exigir condições seguras de trabalho e a interrupção da produção não essencial. E enfermeiros e outros trabalhadores da área de saúde fizeram protestos para exigir os equipamentos de segurança vitais que lhes foram negados.

Só uma prioridade pode existir em meio a esta pandemia: salvar vidas. Toda a produção não essencial deve ser interrompida até que um sistema adequado de testes e monitoramento dos que tiveram contato com o vírus esteja em vigor e a doença possa ser contida. Todos os trabalhadores essenciais, incluindo os das áreas de medicina, transporte e serviço de alimentação, devem ter equipamentos de proteção completos e condições seguras de trabalho garantidas.

Sim, a questão das dificuldades econômicas é uma questão importante que deve ser respondida. Enquanto a pandemia impossibilitar o retorno seguro ao trabalho, os trabalhadores devem ser plenamente compensados. Os recursos econômicos devem vir da revogação do resgate multitrilionário das corporações e da realocação desses fundos para o auxílio da população trabalhadora.

A luta por essas demandas precisa se desenvolver em uma luta mais ampla, pelo fim do controle capitalista privado da vida econômica e pela transformação das grandes corporações e bancos em serviços públicos controlados democraticamente pela classe trabalhadora, estabelecendo dessa forma uma economia socialista, baseada não na obtenção do lucro privado, mas no avanço dos interesses da humanidade em escala global.

Como o World Socialist Web Site escreveu na semana passada, “Hoje, as alternativas são o sistema capitalista de lucro e a morte, de um lado, ou o socialismo e a vida, do outro”.

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