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O que está por trás do alto percentual de mortes de negros por COVID-19 nos EUA?

Publicado originalmente em 13 de abril de 2020

À medida que o número de mortes diárias por coronavírus atinge patamares cada vez maiores nos EUA, surgiu na imprensa uma onda de artigos apresentando o impacto mortal da crise como produto do racismo.

A cobertura da imprensa tem se focado na situação em Detroit, no estado de Michigan, Nova Orleans, na Louisiana, Chicago, em Illinois, e Milwaukee, no Wisconsin, onde os residentes afrodescendentes apresentam taxas de infecção e morte que ultrapassam em muito a proporção de negros no total da população.

Os números são perturbadores. Na Louisiana, 70% do total de mortos por coronavírus são negros, embora representem apenas um terço da população. Em Chicago, 67% das pessoas mortas pelo vírus são negras, embora representem 32% da população. Em Michigan, os negros representam 40% das mortes e um terço dos testes positivos, apesar de constituírem apenas 14% da população do estado. No condado de Milwaukee, os negros constituem 26% da população, mas contabilizam 73% das mortes.

Pacientes usam equipamentos de proteção individual e mantém o distanciamento social enquanto esperam em fila por um teste de COVID-19 no Elmhurst Hospital Center, Nova York, em 25 de março de 2020 (AP Photo/John Minchillo)

Os dados revelam o impacto mortal do vírus sobre toda a classe trabalhadora, especialmente entre as populações mais vulneráveis. Os trabalhadores de todas as raças que não possuem assistência médica adequada, que são forçados por seus patrões a trabalhar em condições de risco e que sofrem de doenças pré-existentes, como obesidade, asma, diabetes e doenças cardíacas e pulmonares, são os que correm maior risco de contrair o vírus e de morrer uma vez infectados. Nas quatro áreas urbanas altamente desiguais listadas acima, os negros compõem grande parte da classe trabalhadora empobrecida.

Representantes da classe dominante, em particular figuras do Partido Democrata ou que giram em torno dele, estão utilizando esses dados para criar uma narrativa distorcida. Segundo eles, o impacto social catastrófico da doença não é produto das décadas de contrarrevolução social presidida pelos dois grandes partidos dos EUA, Republicano e Democrata, nem da resposta voraz de Wall Street à pandemia na classe trabalhadora, mas é devido especificamente ao preconceito racial contra todos os negros estadunidenses.

Em um artigo de opinião intitulado “Os dados ausentes da pandemia”, de 8 de abril, o New York Times afirma que enfrentar a crise de saúde significa reconhecer “que as instituições de saúde dos EUA foram projetadas para discriminar os negros, sendo eles pobres ou não”.

Durante um evento online apresentado por Bernie Sanders na última terça-feira, “O impacto do coronavírus nos afrodescendentes dos EUA”, Sanders afirmou: “A comunidade negra estadunidense sofre num grau muito maior do que a comunidade branca”. Seu apoiador de campanha, Dr. Darrick Hamilton, minimizou a desigualdade entre os negros estadunidenses, afirmando que “os negros, a priori, têm baixa renda”.

O coronavírus é uma doença global e não respeita as fronteiras dos estados nacionais ou a pigmentação da pele de suas vítimas. Na Europa, o epicentro da doença está no norte da Itália, onde vivem italianos de pele mais clara. Até agora, o impacto da doença tem sido muito mais devastador na Europa do que na África. Dentro da própria África, o vírus atingiu com muito mais força a região do Magreb, de pele mais clara, do que os países subsaarianos, embora o estado calamitoso do sistema de saúde ameace devastar todo o continente.

Também nos EUA não é o caso dos negros de todos os níveis de renda enfrentarem um nível de risco superior. Em Nova York, 34% das mortes são de latinos, embora os latinos representem apenas 27% da população da cidade. A porcentagem de negros entre os mortos é de 28%, aproximadamente igual à sua parcela da população, de 27%. O impacto nos residentes latinos decorre do fato de muitos imigrantes da classe trabalhadora viverem em aposentos apertados, devido aos altos aluguéis e baixos salários. Imigrantes sem documentos também evitam buscar assistência médica e auxílio social por medo de serem deportados.

Além disso, em um artigo de 8 de abril intitulado “O coronavírus demorou para se espalhar para os EUA rural. Não mais”, o New York Times relatou que o vírus começou a se espalhar pelas áreas rurais, em grande parte povoadas por brancos pobres com acesso muito limitado a atendimento de saúde de qualidade. A região dos Apalaches é particularmente vulnerável. Além disso, o Times escreve: “as reservas indígenas, que lutam cotidianamente contra o alto índice de pobreza e serviços médicos inadequados, estão agora enfrentando um número crescente de casos”.

A verdadeira causa do alto índice de mortalidade entre negros em Detroit, Milwaukee, Nova Orleans e Chicago é o gigantesco grau de pobreza e desigualdade social. Estudos médicos apontam reiteradamente para a correlação entre a suscetibilidade à doença e a renda, mas também a desigualdade social em geral.

Por exemplo, um estudo de 2019 intitulado “Desigualdade de renda e efeitos na insuficiência cardíaca” explica que “países que compartilham o mesmo PIB podem ter resultados de saúde bastante diferentes, refletindo a distribuição de renda dentro dessas sociedades. Ou seja, parece que não é apenas a riqueza de uma sociedade, mas a distribuição da riqueza dentro dessa sociedade que influencia a saúde”.

Entre todas as cidades dos EUA com mais de 350.000 habitantes, Detroit, Milwaukee, Nova Orleans e Chicago são, respectivamente, a 1ª, 4ª, 5ª e 11ª mais pobres. Todas essas cidades têm um coeficiente de Gini – utilizado para medir a desigualdade – entre 0,46 e 0,50, pior que a maioria dos países da América Central ou da África Subsaariana.

Em cada uma dessas cidades, a população da classe trabalhadora tem sido devastada por décadas de desindustrialização, cortes nos serviços de saúde, na previdência e em outros programas sociais. Em todas elas, os enormes níveis de desigualdade são produto da estratégia da classe dominante de transferir bilhões de dólares da classe trabalhadora para os ricos. O saque social promovido pela classe dominante por meio da falência de Detroit, em 2013, e da resposta ao Furacão Katrina, em 2005, abriu o caminho para a explosão de mortes por coronavírus hoje.

No entanto, a contrarrevolução social que assolou Detroit, Nova Orleans, Milwaukee e Chicago não foi dirigida pela “comunidade branca” contra a “comunidade negra”. Nessas quatro cidades, os duros ataques às condições de vida foram liderados por ou implementados com o apoio ativo de políticos negros do Partido Democrata a serviço dos interesses da classe dominante e das corporações.

Políticos negros como o ex-prefeito de Detroit, Kwame Kilpatrick, e o ex-prefeito de Nova Orleans, Ray Nagin – ambos presos por fraude e suborno – simbolizam o tipo social corrupto que subiu ao topo da máquina do Partido Democrata na era da promoção do “capitalismo negro”. Essas figuras enriqueceram ao passo que a classe trabalhadora dessas cidades, em sua maioria negra, perdeu suas casas, empregos e assistência à saúde.

Os 10% mais ricos entre os negros estadunidenses possuem hoje 75,3% de toda a riqueza possuída pelos negros do país, enquanto 65% dos negros estadunidenses – cerca de 27 milhões de pessoas – possuem 0% dessa riqueza. De 2007 a 2016, o 1% mais rico dos negros nos EUA aumentou sua parcela da riqueza de 19,4% para 40,5%.

Tais níveis de desigualdade superam aqueles entre os brancos e latinos, mostrando que a política racial só exacerbou a desigualdade, criando posições de privilégio para negros abastados sem produzir qualquer ganho para negros da classe trabalhadora estadunidense. Pelo contrário, as condições de vida dos trabalhadores afrodescendentes nos EUA tiveram um declínio geral nas décadas de ascendência da política racial.

O crescimento maciço da desigualdade entre os negros estadunidenses, de 2007 a 2016, aconteceu durante os dois mandatos de Barack Obama. Durante a presidência de Obama, o custo médio do serviço de saúde para as famílias aumentou de cerca de US$ 13 mil para US$ 19 mil, enquanto mais de 20 milhões de estadunidenses permaneciam sem seguro de saúde quando ele deixou o cargo.

Os defensores abastados da política racial não têm interesse em melhorar as condições de vida dos trabalhadores de qualquer raça ou etnia.

A perspectiva social deles se expressou no fato dos afrodescendentes ricos terem votado esmagadoramente em Joe Biden nas eleições primárias do Partido Democrata de 2020. Eles exerceram seu poder social para apoiar a narrativa democrata de que Biden era o candidato de toda a “comunidade negra”. Essa camada está disposta a ignorar os recentes elogios de Biden aos segregacionistas, assim como sua responsabilidade pelo encarceramento em massa de milhões de homens negros pobres, desde que ele proteja sua posição de classe e garanta seu acesso especial às vantagens e privilégios na política e nos negócios.

Em todo o mundo, trabalhadores de todas as raças e nacionalidades têm realizado greves e protestos contra condições inseguras de trabalho e os planos de “retorno ao trabalho” dos governos capitalistas. Quando um patrão ordena que um trabalhador enfrente a morte para garantir seus lucros, é pouco provável que o trabalhador considere a raça do seu patrão como de grande importância.

O desenvolvimento de uma narrativa racial tem como objetivo bloquear o movimento unificado da classe trabalhadora que está surgindo e proteger o fluxo dos lucros corporativos. Os socialistas lutam pela unidade da classe trabalhadora internacional, por uma compreensão de classe do impacto da doença e para que os trilhões de dólares acumulados pelos ricos sejam confiscados para proteger as populações mais vulneráveis – incluindo em Detroit, Nova Orleans, Chicago e Milwaukee – do impacto físico e econômico devastador do coronavírus.

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