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Perspectivas

A pandemia de COVID-19 e a ascensão do nacionalismo econômico

Publicado originalmente em 21 de abril de 2020

A pandemia do coronavírus e suas consequências econômicas revelaram, na experiência concreta de bilhões de pessoas em todo o mundo, a podridão interna e a decadência do sistema capitalista, além de seus claros absurdos.

Basta citar, como exemplo, que o fundador da Amazon, Jeff Bezos, o homem mais rico do planeta, aumentou sua fortuna em US$ 24 bilhões desde o início do ano, alcançando a cifra de US$ 138 bilhões. Enquanto isso, enfermeiros e profissionais de saúde nos Estados Unidos e no mundo estão combatendo o vírus sem os equipamentos de proteção necessários.

Um navio cargueiro da Horizon Lines Inc. é descarregado no Porto de Tacoma, no estado de Washington (EUA). (AP Photo/Ted S. Warren)

Existem inúmeros outros exemplos, como o fato de as autoridades de saúde e os estados dos EUA terem sido forçados a lutar uns contra os outros no “livre mercado” capitalista para garantir os equipamentos e suprimentos necessários, ou que milhares estão fazendo fila atrás de comida nos EUA, enquanto produtores de leite jogam o produto fora e produtores agrícolas lançar suas colheitas na terra.

Ao mesmo tempo em que expõe tais contradições, encobertas na era já passada dos chamados “tempos normais”, a pandemia também revelou aquelas verdades fundamentais que há muito tempo constituem a base da luta pelo verdadeiro socialismo.

Antes de tudo, ela deixou claro que a pequena minoria de oligarcas corporativos e financeiros, e o sistema de lucro que presidem, constituem um obstáculo à organização racional e ao planejamento científico da economia e da sociedade necessários para lidar com a ameaça à vida humana. Esse é um obstáculo que deve ser eliminado.

No entanto, seria um erro ver este imenso problema social como se aplicando apenas ao extraordinário estado de coisas produzido pela pandemia. Ele tem um alcance muito mais amplo.

Os defensores de uma volta ao trabalho, independentemente dos perigos para a saúde dos trabalhadores, sustentam que uma quarentena contínua significa mais estresse econômico e aumento da pobreza, bem como problemas de saúde e psicológicos. Tais problemas, porém, poderiam ser rapidamente resolvidos através da expropriação da vasta fortuna de bilionários como Bezos, para proporcionar uma renda suficiente para todos, enquanto se lida com a crise de saúde.

Como explicou a perspectiva do World Socialist Web Site do último sábado, 18 de abril, se a riqueza dos 250 bilionários dos Estados Unidos, com um patrimônio líquido total de cerca de US$ 9 trilhões, fosse expropriada e distribuída igualmente entre os 100 milhões de lares mais pobres, cada um teria uma renda mensal de US$ 5.000 por 18 meses.

Além disso, os problemas descritos pelos defensores da volta ao trabalho como produto da quarentena são, na verdade, os da vida cotidiana, criados pelas operações “normais” do sistema capitalista. E serão massivamente intensificados após a pandemia, à medida que as classes dominantes buscarem extrair valor da classe trabalhadora para a montanha de capital fictício criada como resultado do resgate das empresas e do sistema financeiro.

Todos os dias os trabalhadores têm sua saúde debilitada pelo incessante agravamento das condições. Todos os dias eles trabalham sob a ameaça de serem demitidos e reduzidos à pobreza como consequência de alguma operação de “reestruturação”.

Como consequência das oscilações no sistema financeiro global e das ações dos especuladores, todos os dias eles enfrentam a perspectiva de poderem ser jogados na pilha de lixo, terem sua aposentadoria, seu fundo de pensão ou seu plano 401(k) cortados, seus pagamentos de hipotecas aumentados e assim por diante – mudanças que podem devastar suas vidas num piscar de olhos.

Em outras palavras, a loucura manifestada pela pandemia é apenas uma expressão particularmente flagrante do funcionamento cotidiano de uma ordem social e econômica maligna.

Assim como a pandemia revelou os absurdos, irracionalidades e consequências destrutivas do sistema de lucro, também revelou o caráter reacionário das estruturas políticas sobre as quais se baseia a acumulação de lucro privado – ou seja, o sistema de estado-nação.

Por sua própria natureza, a pandemia revelou, tanto do ponto de vista de saúde quanto econômico, a necessidade de colaboração e cooperação internacional.

Não existe uma solução nacional para os perigos colocados pelo vírus para a saúde – é necessária uma resposta global planejada. Um determinado país, individualmente, pode conseguir controlar o vírus dentro de suas fronteiras, mas pode depois ser confrontado com o perigo de uma “segunda onda” de infecções por sua propagação contínua em outras partes do mundo. O vírus não tem passaporte, nem reconhece os controles de imigração e fronteiras.

Essa pandemia causou um grande choque ao mundo. Mas foi um evento que disparou a crise, cujas condições se desenvolveram ao longo de um período considerável. A pandemia está para a crise atual assim como o assassinato do arquiduque austríaco Franz Ferdinand esteve para o início da Primeira Guerra Mundial.

A pandemia não apenas disparou a crise, mas tem sido o acelerador de processos que estavam bem avançados antes de entrar em cena. Um deles é o crescimento de divisões e conflitos nacionais.

Muito antes das denúncias contra a China, vindas do governo Trump e de seus aliados ao redor do mundo sobre o surto do vírus, o aparato militar e de inteligência dos EUA, apoiado pelo establishment político – democrata e republicano – junto com poderosos grupos de comunicação, havia considerado a China como uma ameaça à “segurança nacional” dos EUA.

Nos documentos de planejamento estratégico da máquina militar dos EUA, a “guerra ao terror” foi substituída pela insistência de que agora era necessário se preparar para uma era de “competição entre grandes potências”, na qual a China passou a ser encarada como o principal perigo para a hegemonia econômica e militar dos EUA.

A guerra comercial foi lançada com a imposição de tarifas após o plano de desenvolvimento econômico e tecnológico da China ter sido declarado uma ameaça existencial à segurança nacional dos EUA. Isso foi acompanhado por uma série de proibições às empresas de telecomunicações chinesas e pelo lançamento de uma campanha global dos EUA para que seus aliados excluam a empresa chinesa Huawei do desenvolvimento de redes 5G.

Embora os EUA, pelo menos até este ponto, sejam o principal defensor do nacionalismo econômico, sob a doutrina “EUA em primeiro lugar” do governo Trump, as mesmas tendências se refletem em todos os lugares.

A União Europeia (UE) está cheia de divisões e conflitos, cujo mais importante é o Brexit. A UE está dividida pela resposta econômica à pandemia, com a Alemanha se esforçando para manter seu domínio sobre o bloco, enquanto figuras importantes do establishment político insistem que ela deve desempenhar um papel maior nos assuntos globais.

Como resultado da pandemia, estão surgindo vozes dizendo que a interrupção das cadeias globais de suprimentos, causada pela disseminação do vírus, juntamente com as quarentenas, revelou problemas na globalização econômica, o que significa que cada país deve procurar proteger sua “própria” economia.

O secretário de Comércio dos EUA, Wilbur Ross, deu o tom ainda em janeiro, quando declarou que as interrupções na cadeia de suprimentos na China por causa do surto do vírus incentivariam as empresas dos EUA a trazer suas operações de volta ao país.

O governo japonês de Shinzo Abe reservou US$ 2,2 bilhões de seu pacote de estímulo econômico para ajudar os industriais a transferir a produção para fora da China.

Um artigo do New York Times de Neil Irwin em 16 de abril, intitulado “É o fim da economia mundial como a conhecemos”, citou comentários de Elizabeth Economy, uma membro sênior do Conselho de Relações Exteriores, que disse que estavam “repensando” o quanto cada país deva confiar no outro.

Embora esse não seja o fim da globalização, ela afirmou, a pandemia acelerou o pensamento no governo Trump de que existem “tecnologias críticas, recursos críticos, reserva de capacidade de fabricação que queremos aqui nos EUA em caso de crise”.

O artigo observou que o ministro das Finanças da França ordenou que as empresas francesas reavaliassem suas cadeias de suprimentos e se tornassem menos dependentes da China e de outros países asiáticos.

Nos EUA, onde os ataques contra a China estão aumentando diariamente, a senadora republicana da Carolina do Sul, Lindsey Graham, chegou a sugerir que os EUA deveriam punir a China pela COVID-19, cancelando sua participação nos títulos do Tesouro dos EUA.

A velocidade desses processos pode ser medida contrastando a situação que agora predomina com o que ocorreu após a crise financeira global de 2008.

Em abril de 2009, os líderes do G20 se reuniram em Londres para se comprometerem com uma resposta coordenada, jurando que nunca mais seguiriam o caminho das medidas protecionistas que haviam desempenhado um papel tão desastroso na Grande Depressão, que ajudaram a criar as condições para a Segunda Guerra Mundial.

Por um tempo, o compromisso de “resistir ao protecionismo” era uma característica comum das declarações de todos os órgãos econômicos internacionais, como o G20 e o G7. Agora, a frase desapareceu pelo fato de todas as instituições estabelecidas no período pós-guerra para regular os assuntos do capitalismo global – a Organização Mundial do Comércio, o G7, o Fundo Monetário Internacional, a Organização Mundial da Saúde – estarem despedaçadas por conflitos ou em estado avançado de decadência.

O significado desses desenvolvimentos só pode ser entendido dentro de seu contexto histórico mais amplo.

No século XIX, o desenvolvimento do capitalismo e as forças produtivas da humanidade foram auxiliados pela formação de estados nacionais, como com a unificação da Alemanha em 1871, o estabelecimento do estado italiano e a Guerra Civil Americana, que lançou as fundações políticas para o desenvolvimento dos Estados Unidos como uma potência econômica.

Mas o avanço das forças produtivas não parou nas fronteiras nacionais. Ele se espalhou globalmente no último quarto do século XIX e na primeira década do século XX. Esse vasto desenvolvimento econômico, no entanto, trouxe à tona a contradição central no sistema capitalista global – uma que o atormentou desde então – entre o desenvolvimento de uma economia global e a divisão do mundo em estados-nação e grandes potências rivais.

Esse conflito explodiu na forma da Primeira Guerra Mundial, quando cada governo capitalista procurou resolvê-lo, como observou Leon Trotsky, “não através da cooperação inteligente e organizada de todos os produtores da humanidade, mas através da exploração do sistema econômico mundial pela classe capitalista do país vitorioso”.

A Revolução Russa de outubro de 1917 – a derrubada do capitalismo pela classe trabalhadora – apontou para a única saída possível. Lênin e a liderança do Partido Bolchevique conceberam e lutaram para que a Revolução Russa fosse o primeiro tiro da revolução socialista mundial, ou seja, para a tomada do poder político pela classe trabalhadora internacional como condição prévia para a reconstrução da economia global sobre fundações socialistas – a próxima etapa necessária no desenvolvimento histórico da humanidade.

A guerra não resolveu nada. O nacionalismo econômico se intensificou nas duas décadas seguintes, levando à eclosão de uma guerra mundial ainda mais devastadora em 1939.

Nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial e naqueles que se seguiram, os líderes do imperialismo mundial reconheceram que uma nova ordem econômica internacional e um novo sistema monetário precisavam ser construídos, uma vez que um retorno às condições da década de 1930 levaria à revolução socialista, inclusive nos EUA.

Tentou-se superar a contradição entre o desenvolvimento de uma economia global e a divisão do mundo em estados-nação e grandes potências rivais através do desenvolvimento de um novo sistema mundial comercial e monetário baseado no poder econômico da maior potência imperialista, os Estados Unidos. Ele foi a base do sistema monetário de Bretton Woods, estabelecido em 1944, no qual o dólar americano, lastreado em ouro, se tornou a principal moeda internacional.

Mas este sistema não conseguiu oferecer uma solução duradoura ao capitalismo do pós-guerra. Apenas temporariamente, em termos históricos, o aperfeiçoou. A contradição essencial ressurgiu, uma vez que a própria expansão econômica que ele havia produzido minou os fundamentos sobre os quais se baseava – a superioridade econômica dos EUA em relação a seus rivais.

O início do fim desse domínio aconteceu com a decisão do presidente dos EUA, Richard Nixon, em 15 de agosto de 1971, de tirar o dólar do padrão ouro. O relativo enfraquecimento dos EUA em relação a seus rivais econômicos fez com que ele não pudesse mais manter o sistema que havia criado.

O histórico declínio econômico dos EUA continuou em ritmo acelerado desde então. Da potência econômica do capitalismo mundial, tornou-se o centro da podridão e decadência capitalista, manifestada, sobretudo, no processo de financeirização – o completo divórcio da acumulação de riqueza do processo subjacente de produção – e na obtenção de lucro, não através do desenvolvimento industrial, como acontecia antes, mas por meio do parasitismo e especulação.

Essa podridão havia vindo à tona na crise financeira de 2008 e agora explodiu de formas ainda mais grotescas com a pandemia – como com a atual ascensão do mercado de ações enquanto dezenas de milhares estão morrendo.

No entanto, o imperialismo dos EUA não tem intenção de sair de cena. Ao invés disso, confrontado por rivais em todas as frentes – China, Alemanha, União Europeia e Japão – e vendo inimigos por todos os lados, está determinado a manter sua posição de todas as maneiras possíveis, incluindo a guerra.

A fonte dos grandes problemas que a humanidade enfrenta não é a globalização econômica e a integração da vida econômica e social em escala mundial.

A globalização da produção, por si só, representa um avanço importante, elevando a produtividade do trabalho – a base material para todo avanço econômico – a novos níveis. Além disso, os vastos e complexos sistemas de planejamento e comunicação, pelos quais as empresas transnacionais realizam suas atividades econômicas, estabelecem as bases materiais para uma forma superior de sociedade, uma economia socialista internacional planejada, conscientemente controlada e democraticamente regulamentada pelos produtores mundiais – a classe trabalhadora internacional.

Em 1934, quando as nuvens de guerra se acumulavam mais uma vez, Trotsky alertou que o apelo dos regimes fascistas e nacionalistas por um retorno ao “lar nacional” tinha um significado profundo.

Embora a perspectiva de desenvolvimento econômico nacional harmonioso com base na propriedade capitalista fosse uma completa ficção, ela tinha uma realidade política ameaçadora: o esforço das principais potências em reunir todos os recursos econômicos da nação em preparação para a guerra. Essa guerra estourou apenas cinco anos depois, com consequências ainda mais devastadoras do que a Primeira Guerra Mundial.

Hoje, a promoção do nacionalismo econômico – agora acelerada como resultado da pandemia – possui o mesmo conteúdo reacionário.

Os problemas que a humanidade enfrenta não surgem da globalização econômica como tal, mas estão enraizados na profunda contradição entre esse desenvolvimento progressista e a ordem social e política reacionária, baseada no lucro privado e na divisão do mundo em estados-nação e grandes potências rivais, dentro da qual está inserido.

As forças produtivas, criadas pelo trabalho da classe trabalhadora internacional, devem, portanto, ser libertadas desses grilhões reacionários. Esse caminho foi traçado no tiro inicial da revolução socialista mundial em outubro de 1917. Esse é o caminho para o qual a classe trabalhadora internacional deve agora retornar, o único caminho a seguir para sair da crise atual.

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