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Trabalhadores famintos na Bolívia se chocam com tropas enviadas pelo regime golpista

Em meio ao crescimento da epidemia de COVID-19 na Bolívia, o "governo interino" autoproclamado de Jeanine Áñez promove uma escalada da repressão estatal, utilizando os militares nas ruas para esmagar protestos de trabalhadores que passam fome.

Na segunda-feira à noite, um protesto em K'ara K'ara, um bairro pobre na zona sul de Cochabamba, a quarta maior cidade da Bolívia, foi duramente reprimido pela polícia e militares. Vídeos mostram bombas de gás sendo atiradas dentro de casas populares. Os manifestantes exigiam ser liberados da quarentena para trabalhar e tentar prover alimentos a suas famílias. Também pediam a queda do governo de Áñez, imposto por um golpe militar no final de 2019.

Os protestos continuaram nos dias seguintes em Cochabamba. A avenida principal de K'ara K'ara foi bloqueada com pedras pelos moradores desde terça-feira. Uma grande manifestação saiu ontem dos bairros ao sul em direção ao centro da cidade denunciando, além da política de fome do governo, a falta de acesso a água.

De acordo com o Los Tiempos, a mobilização explodiu após a cobrança de empréstimos pelos bancos. "O governo disse que iríamos pagar os créditos ao banco depois de seis meses da quarentena, mas já estão nos ligando para irmos pagar em junho. Com o que vamos pagar se não estamos trabalhando?", disse um morador.

Esses protestos expressam o desespero econômico que se espalha pela classe trabalhadora e os camponeses bolivianos. Cerca de 70 por cento dos trabalhadores da Bolívia estão no mercado informal e perderam sua renda em meio à pandemia.

Há mais de um mês, trabalhadores vêm se manifestando em Cochabamba e outras cidades, como El Alto. "O governo nos trancou, a fome vai nos matar", dizia um cartaz de um protesto contra a quarentena em Riberalta no início de abril, segundo o El País.

Outros protestos foram registrados em La Paz, em 30 de abril, por trabalhadores empobrecidos que aguardavam há dias em filas para receber os bônus miseráveis de 500 bolivianos (cerca de 70 dólares) anunciados governo, mas que foram adiados repetidas vezes.

No início de maio, circulou um vídeo de um policial da Unidade Tática de Operações Especiais (UTOP) cometendo violência sexual contra uma mulher que estava sendo presa junto a outras dezenas de pessoas por violar a quarentena. Questionada por jornalistas por que havia saído de casa, ela respondeu chorando: "Não recebi nenhum bônus e saí hoje porque era meu dia de sair, fui comprar algumas verduras".

O governo de Áñez respondeu aos gritos de desespero e revolta da população boliviana com a criação de uma medida ditatorial destinada a explorar a pandemia para aprofundar o grau de controle do Estado policial. O decreto 4231 incrimina quem "difundir de forma escrita, artística ou por qualquer outro procedimento que ponha em risco ou afete a saúde pública, gerando incerteza na população".

Ao defender o decreto, o ministro da presidência Yerko Núñez afirmou que: "Os cidadãos que estão tentando, pelas redes sociais, confundir e desinformar devem ter cuidado. Esses são os que deveriam estar preocupados, os que querem dividir e enfrentar os bolivianos. Os jornalistas devem ficar tranquilos"

Esta perigosa escalada da repressão estatal, cinicamente justificada pela necessidade de conter o avanço da pandemia é acompanhada, além da política de fome, por um descaso absoluto com a saúde dos bolivianos.

O coronavírus avança com rapidez pelo país. Somente na terça-feira, mais 275 casos foram registrados e, na quinta-feira, o governo declarou a existência de mais de 3.000 casos e 140 mortes. Contudo, mais do que em qualquer outro país da América Sul, os números reais são escamoteados pelo índice baixíssimo de testagem: 655 testes a cada 1 milhão de pessoas. Sem dúvidas, o número de infecções e mortes é substancialmente maior do que o confirmado.

Nos hospitais existe uma falta generalizada de recursos básicos, desde os ventiladores até os equipamentos de proteção individual. Enfermeiros do hospital de Montero, que também se manifestaram nas ruas, expuseram através de fotos e vídeos nas redes sociais como são obrigados a lavar seus aventais descartáveis para reutilizá-los.

Nesta semana o governo aprovou a utilização de um vermífugo, a Ivermectina, que não apresenta eficiência comprovada no tratamento da COVID-19.

A resposta desastrosa do governo se expressou também numa rebelião de milhares de presos no Centro de Reabilitação de Palmasola, em Santa Cruz de La Sierra, na noite da última segunda-feira após a morte de ao menos dois detentos por COVID-19. O presídio é o maior da Bolívia e concentra 6.000 pessoas, cerca de 40 por cento de toda a população carcerária do país, mais de 70 por cento delas em prisão preventiva. Os presos protestavam gritando: "Queremos viver!" e foram dispersados por uma invasão da polícia.

Os acontecimentos recentes demonstram explicitamente que Áñez e os militares bolivianos não têm a pretensão de constituir meramente um "governo de transição", mas de se manter no poder indefinidamente.

As eleições gerais, agendadas para 3 de maio, foram adiadas indefinidamente pelo Supremo Tribunal Eleitoral após os primeiros casos da pandemia. As propostas da Assembleia Nacional da Bolívia de realização das eleições num período de 90 dias têm sido negadas insistentemente por Áñez, que afirma que estas só poderão ocorrer “quando isso não for mais um risco para a saúde”.

Enquanto finge estar preocupado com a saúde pública para adiar as eleições e se manter no poder, o governo já está implementando seus planos de retomada das atividades em uma série ramos da economia para garantir os interesses do lucro capitalista. Desde o início da semana, o trabalho nas minas, fábricas e manufaturas, entre outros setores "estratégicos" foi retomado com base num decreto do ministro do trabalho que se sobrepõe às medidas de quarentena impostas nos municípios.

O adiamento das eleições na Bolívia atende aos interesses da burguesia nacional e sua acomodação ao imperialismo dos EUA, o que foi evidenciado pela aprovação de Donald Trump comunicada diretamente a Áñez. “Agradeço ao telefonema do presidente dos Estados Unidos, @realDonaldTrump, para expressar sua solidariedade democrática com o povo boliviano na luta contra a COVID-19 e na agenda bilateral que temos em desenvolvimento”, ela escreveu em sua conta no Twitter.

Para defender seu direito mais básico à vida, as massas bolivianas são empurrados a combater o regime instalado pelo golpe militar apoiado pelos EUA.

Mas essa tarefa não pode ser levada adiante sob a direção do Movimiento al Socialismo (MAS) – do presidente deposto Evo Morales – e dos sindicatos. Essas instituições estão submetidas e são inseparáveis da burguesia nacional boliviana. Por isso abriram caminho à subida de Áñez ao poder, abandonando as massas bolivianas que lutavam contra o golpe nas ruas. A oposição atual desses setores ao governo se baseia em facções da burguesia boliviana e seus esforços para alcançar um grande acordo nacional que envolva aqueles que participaram do golpe.

A luta contra o regime golpista só pode ser travada com base na independência política da classe trabalhadora em aliança com os camponeses, e sob uma direção revolucionária socialista e internacionalista, que promova sua unificação com os trabalhadores da América Latina e de todo o mundo.

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