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Perspectivas

A pseudociência assassina da “imunidade de rebanho”

Publicado originalmente em 16 de maio de 2020

Em 12 de maio, a Foreign Affairs, a principal revista de política externa dos EUA, publicou um artigo em que defende que uma grande parte da população estadunidense e mundial será infectada pela COVID-19. O artigo é intitulado “A estratégia da Suécia contra o coronavírus logo será a do mundo: a imunidade de rebanho é a única opção realista – a questão é como chegar a ela com segurança”.

O artigo conclui: “Os esforços para conter o vírus estão condenados ao fracasso em muitos países e, no final, uma grande porcentagem de pessoas será infectada”. Afirma ainda que “gerir – mais do que derrotar a pandemia – é a única opção realista”.

O argumento central dos defensores da “imunidade de rebanho” é que, quando um número suficiente de pessoas for infectado pela COVID-19, talvez 50-70% da população, as taxas de infecção diminuirão naturalmente.

Como corolário, os defensores da imunidade de rebanho alegam que os esforços para conter a propagação da pandemia, tais como testes, rastreamento de contatos e isolamento das pessoas infectadas, bem como o fechamento de escolas e empresas, devem ser abandonados para permitir que a doença se propague o mais livremente possível.

Dois acontecimentos esta semana expuseram esta teoria pseudocientífica como falsa e perigosa. No depoimento dado ao Congresso dos EUA na terça-feira, o Dr. Anthony Fauci deixou claro que não existem provas conclusivas de que a pessoa infectada com a COVID-19 esteja imune à doença a longo prazo, reforçando os alertas da Organização Mundial da Saúde (OMS) no mês passado.

Além disso, países de todo o mundo começaram a divulgar os resultados de testes em larga escala de suas populações para os anticorpos da COVID-19. Em todos os lugares, estes testes têm mostrado que, mesmo nas áreas com os piores surtos da doença, apenas uma pequena fração da população foi infectada.

Um estudo divulgado esta semana revelou que apenas 5% da população espanhola possui anticorpos contra a COVID-19, apesar de o país ter a maior taxa de infecção da doença entre todos os grandes países do mundo.

Considerando que ser infectado pelo novo coronavírus garanta imunidade, o que, mais uma vez, não está claro, a imunidade hipotética para 5% da população espanhola custou 27.459 vidas. Isto significa que a taxa de infecção de 50% necessária para assistir a uma diminuição dos casos exigiria o sacrifício de 250 mil seres humanos.

Se números semelhantes se repetirem nos Estados Unidos, que possui 330 milhões de habitantes, uma hipotética “imunidade de rebanho” exigiria o sacrifício de quase 2 milhões de pessoas.

É por esta razão que o porta-voz da OMS, Mike Ryan, respondeu com indignação esta semana quando questionado sobre a política de “imunidade de rebanho”.

“Os humanos não são animais”, disse o veterano epidemiologista irlandês. Segundo ele, o termo é relevante apenas para o domínio da criação animal, em que um “animal individualmente não importa tanto do ponto de vista da economia brutal dessas decisões”.

O uso do termo, disse, “pode levar a uma aritmética muito brutal que não coloca as pessoas, as vidas e o sofrimento no centro dessa equação”.

Existe a “ideia de que talvez os países que tiveram medidas frouxas e não fizeram nada cheguem de repente, por magia, a alguma imunidade de rebanho, não importando se perdermos alguns idosos pelo caminho. Este é um cálculo realmente perigoso.”

Para justificar a sua utilização deste “cálculo perigoso”, os autores do artigo na Foreign Affairs citam o “modelo sueco”. Segundo eles,

As autoridades suecas não declararam oficialmente como objetivo atingir a imunidade de rebanho, que a maioria dos cientistas acredita ter sido alcançada quando mais de 60% da população teve o vírus. Mas o aumento da imunidade faz parte, sem dúvida, da estratégia mais ampla do governo, que se reflete na provável manutenção de escolas, restaurantes e a maior parte das empresas abertas.

Eles continuam:

Ao invés de declarar um lockdown ou um estado de emergência, a Suécia pediu que seus cidadãos praticassem o distanciamento social de maneira majoritariamente voluntária. As autoridades suecas... evitaram controles severos, multas e policiamento. Os suecos mudaram o seu comportamento, mas não tão profundamente como os cidadãos de outras democracias ocidentais. Muitos restaurantes continuam abertos, embora sejam pouco frequentados; as crianças pequenas continuam a frequentar a escola.

Contudo, a estratégia da Suécia em relação à pandemia de COVID-19 tem sido duramente criticada por médicos, cientistas e acadêmicos, milhares dos quais assinaram uma carta pedindo que o governo levasse adiante uma política mais agressiva de combate ao novo coronavírus.

Estes críticos apontam para o fato de o país ter sofrido um surto substancialmente mais mortal do que os seus vizinhos, com 361 mortes por milhão de pessoas em comparação com a Dinamarca (93 por milhão), a Noruega (43), a Finlândia (53) e a Islândia (29).

As políticas irresponsáveis da Suécia deram munições à extrema direita mundial, que as utilizou como exemplo para defender uma reabertura prematura de empresas e escolas.

Como todos os defensores da política de “imunidade de rebanho”, os autores do artigo, que incluem um cientista político, um sociólogo e um economista, não tentam conciliar as suas reivindicações com as declarações universais de epidemiologistas, especialistas em saúde pública e da OMS de que a COVID-19 pode e deve ser contida através de medidas convencionais de saúde pública.

Afirmam simplesmente, diante de todas as provas existentes, que é impossível controlar a doença e evitar que as pessoas sejam infectadas.

Os países que investiram em testes, quarentena e rastreamento de contatos, de acordo com as prescrições da OMS, fizeram com que o número diário de novos casos fosse de um ou dois dígitos.

A Coreia do Sul, um dos primeiros centros do surto, teve apenas 260 mortes. A China, o país onde a doença teve origem, tem uma taxa de mortalidade quase 100 vezes inferior à dos Estados Unidos. A Malásia tem registado números igualmente baixos.

Em contrapartida, a situação desastrosa da pandemia de COVID-19 nos Estados Unidos, que tem cinco vezes mais casos do que qualquer outro país, está diretamente relacionada com o fato de o país não ter amplamente testado sua população durante meses, como indica o depoimento de quinta-feira da autoridade médica demitida por Trump, o Dr. Rick Bright.

Vale a pena observar que o artigo na Foreign Affairs exclui a palavra “teste”, o que mostra sua completa desonestidade. Ele considera as medidas de lockdown como inúteis para a conter a pandemia, denunciando os efeitos econômicos e sociais dos lockdowns para que não sejam implementados.

Na realidade, a OMS deixou claro que os lockdowns são apenas uma medida temporária para evitar que os sistemas de saúde colapsem, devendo ser utilizados para proporcionar o tempo necessário para expandir maciçamente a infraestrutura de saúde pública com o objetivo de deter a pandemia.

Independentemente de adotarem ou não publicamente a “imunidade de rebanho”, a realidade é que nenhum país na América do Norte ou Europa tem um plano para prevenir a infecção generalizada de sua população com a COVID-19. Os lockdowns temporários realizados nos Estados Unidos e Europa não têm sido utilizados para implementar a infraestrutura necessária de testes, quarentena e rastreamento de contatos.

Pelo contrário, estados e países estão reabrindo suas economias independentemente de suas taxas de infecção, testes ou capacidade do sistema de saúde. Segundo os alertas de Fauci e Bright, isso poderá levar a um grande ressurgimento da doença, seja a curto prazo, durante a próxima temporada de gripe ou ambas.

De acordo com a “economia brutal” do capitalismo, as vidas perdidas para a pandemia de COVID-19 são simplesmente o custo de se fazer negócios. Embora trilhões de dólares tenham sido gastos para sustentar os mercados financeiros, nenhum esforço sério foi realizado para conter a pandemia. Além disso, quaisquer medidas de mitigação que tenham sido colocadas em prática, incluindo o fechamento de empresas, estão sendo rapidamente abandonadas.

Os esforços da classe dominante para contrapor a vida dos trabalhadores à sua forma de vida é uma escolha totalmente falsa. Ambos podem ser defendidos com a alocação necessária de recursos sociais para deter e erradicar a COVID-19 e todas as outras doenças transmissíveis. Os locais de trabalho não essenciais devem permanecer fechados durante o tempo necessário para que estas medidas sejam implementadas.

Mas conter a pandemia exige um investimento em infraestrutura social que a classe capitalista não está disposta a fazer. A pandemia de COVID-19 deixou clara a absoluta incompatibilidade do sistema capitalista com a preservação do direito social mais básico: o direito à vida.

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