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"Nosso sistema está tão quebrado que precisa ser derrubado e reconstruído"

Profissionais de saúde aderem aos protestos massivos contra o racismo e violência policial e explicam por que

Publicado originalmente em 9 de junho de 2020

Nos últimos 10 dias, milhares de profissionais de saúde aderiram ao crescente movimento de protestos contra a violência policial e racismo nos EUA e ao redor do mundo. Muitos se juntaram aos protestos, inclusive para prestar assistência médica aos manifestantes atacados violentamente pela polícia, enquanto outros milhares realizaram manifestações de apoio em seus hospitais sob o slogan WhiteCoatsforBlackLives (Aventais Brancos pelas Vidas Negras).

A mídia não divulgou qualquer informação sobre o total de trabalhadores que participaram desses protestos, e a cobertura nacional foi extremamente limitada. No entanto, com base nas redes sociais, fica claro que houve participação de trabalhadores em centenas, senão milhares, de unidades de saúde em praticamente todos os estados, tanto em áreas rurais quanto urbanas.

Enquanto os protestos têm se focado na violência policial e no racismo, por trás deles existe uma revolta social e política muito mais ampla com relação à desigualdade social, à resposta criminosa do governo à pandemia do coronavírus e uma oposição à ameaça da ditadura e aos dois grandes partidos da burguesia, Republicano e Democrata.

Trabalhadores do hospital de Elmhurst, Nova Iorque.

Os profissionais da saúde estão há meses na linha de frente da luta contra a COVID-19. Entretanto, suas vidas e saúde têm sido ameaçadas pela política criminosa e cruel do governo, que os largou sem Equipamentos de Proteção Individual (EPI) adequados. Pelo menos 586 profissionais de saúde norte-americanos morreram de COVID-19, segundo a última contagem do Guardian e do Kaiser Health News, e mais de 62.000 foram infectados. Enquanto isso, quase 1,5 milhões de trabalhadores do setor de saúde foram demitidos e dezenas de milhares foram colocados em licença, ao mesmo tempo em que os principais grupos hospitalares receberam 1,5 bilhão de dólares como parte do resgate governamental às grandes corporações e Wall Street.

O WSWS conversou com trabalhadores da saúde em Illinois e Kentucky que aderiram aos protestos ou estão organizando protestos próprios. Seus primeiros nomes foram mudados para proteger suas identidades.

Kelly é uma enfermeira da UTI [unidade de terapia intensiva] de Kentucky, que tem tratado pacientes da COVID-19 ao longo dos últimos meses. Agora, além de sua agenda intensiva de trabalho, ela está organizando protestos contra a violência policial entre os trabalhadores da saúde de Louisville.

Explicando sua motivação para isso, Kelly destacou não só sua oposição ao racismo, mas também às enormes quantias de dinheiro gastas pelos EUA com os militares: "Em 2015, as despesas militares representaram cerca de 54% dos gastos do nosso orçamento discricionário, de acordo com o Projeto de Prioridades Nacionais. Em contrapartida, os gastos com educação representaram apenas 6% do orçamento. Ver nosso país despreparado para uma pandemia dessa proporção não foi surpreendente. Muitos países afundaram. No entanto, nosso ponto de vista muda totalmente quando vemos a capacidade de mobilizarem a polícia e os militares com tanta facilidade em tão poucos dias.

"Já se passaram meses desde o nosso primeiro caso de COVID-19 e ainda estou usando a mesma N95 há semanas. Eu só ganhei uma adicional porque quebrou a alça da minha máscara anterior, que eu tive desde o início. Essas desigualdades óbvias que estão bem na nossa frente, estamos vivendo elas em tempo real".

As percepções de Kelly foram ecoadas por Linda, uma paramédica do Kentucky, que aderiu aos protestos em sua cidade e vem prestando atendimento médico aos manifestantes. Ela disse ao WSWS: "Meus motivos para participar são obviamente que existe um problema profundamente enraizado com o racismo nos EUA, mas também um problema maior com a militarização de nossa polícia. Eu trabalho nas ruas. Vou às casas das pessoas e transfiro pacientes entre as unidades. Vejo que nossa polícia está bem equipada para a guerra com civis, mas só recebi uma máscara N95.

"Eu vejo as estatísticas e sei que os negros estão morrendo em maior número no meu estado, desproporcional ao tamanho da população, porque não têm recursos e nem acesso à saúde. Sei que as pessoas são pobres e estão desesperadas e doentes, e nosso governo está atacando-as brutalmente nas ruas, e os bilionários no meu país estão lucrando com esse surto, ignorando nosso sofrimento".

O papel da polícia como uma força empregada contra os trabalhadores está sendo amplamente discutido pelos profissionais da saúde e entre outros setores da classe trabalhadora nas redes sociais. Uma enfermeira do Kentucky descreveu no Facebook como a polícia atacou professores e alunos num piquete de greve que se manifestavam por mais fundos para a educação:

"Uma vez eu participei de um piquete com professores do ensino fundamental em greve. PROFESSORES DA ESCOLA PÚBLICA. Também havia criancinhas adoráveis participando do piquete. Obviamente, era pacífico... Estávamos gritando sobre a necessidade de aumentar o financiamento para as crianças pequenas. E aí apareceu a polícia para ajudar a manter a 'paz'. Eles foram lá com força total, com armas à mostra para todos os garotos de oito anos de idade verem, sendo ameaçadores, tirando fotos escondidos de piqueteiros, seguindo as pessoas de volta aos seus carros.

"Toda vez que um pelego aparecia, eles nos empurravam para fora do caminho para que os pelegos pudessem cruzar a linha de piquete. Um piqueteiro 'ficou muito perto do carro' de um pelego que tentava cruzar a fileira de professores. Um policial o agarrou pelas costas da camisa, o virou e o jogou de cara na parede enquanto o algemava. 'Atentado à ordem'. Poucas horas depois, um pelego acelerou com o carro contra os piqueteiros. A polícia virou as costas e fingiu não ter visto".

Trabalhador da saúde em manifestação em Nova Iorque. O cartaz diz: "Eu não tratei pacientes com COVID para ficar calado enquanto vidas negras são assassinadas pela polícia".

Com a mobilização de militares e policiais para reprimir violentamente e intimidar os manifestantes, a generalização internacional das manifestações de massa tem encorajado muitos trabalhadores e jovens nos EUA. Neste fim de semana, milhões de manifestantes nos EUA foram acompanhados por centenas de milhares de trabalhadores e jovens em protestos na Alemanha, Reino Unido, Austrália, Áustria e muitos outros países. Vídeos desses protestos têm sido assistidos por milhões de pessoas nas redes sociais.

Uma enfermeira de Illinois que participou de uma manifestação em seu hospital chamou a atenção a esses protestos e disse: "Ouvi falar dos protestos em Londres e outros lugares. A palavra está finalmente se espalhando. Isto não é apenas um problema nos Estados Unidos. É um problema mundial. A história nos mostra que é um problema que há muito tempo já deveria ter sido erradicado. Acredito que quando o superarmos, seremos mais fortes e unidos".

Questionada sobre a movimentação de Trump em direção à ditadura e a resposta dos membros do Partido Democrata, ela disse: "A movimentação de Trump me deixa totalmente aterrorizada. Estou muito preocupada que ele vá aproveitar a oportunidade e tentar adiar as eleições". Kelly e Linda expressaram forte oposição não apenas às movimentações em direção à ditadura, mas ao sistema político como um todo.

Kelly afirmou: "Desde o primeiro dia em que Trump tomou posse, ele tem nos levado em direção a uma ditadura, é assim que ele opera. Quando olhamos para o 1% mais rico, fica claro que a distribuição de renda não acontece, o dinheiro e o poder ficam no topo. Ele quer desesperadamente que o nosso país funcione assim enquanto ele estiver no poder... Acho que o nosso sistema bipartidário é absolutamente falho e, se quisermos ver qualquer avanço real, ele precisa ser desmontado. A disputa política é um circo patrocinado pelas corporações e que oferece um monte de produtos superfaturados para consumirmos enquanto assistimos ao espetáculo".

Linda afirmou: "Os democratas decretaram uma nova onda do Patriot Act (Ato Patriótico) que dá a Trump maior poder policial. Eles são ineficazes e são o outro lado da mesma moeda, patrocinados pela elite corporativa. Nosso sistema está tão quebrado que precisa ser derrubado e reconstruído".

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