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Saúde colapsa na Bolívia após regime pós-golpe reabrir economia

Publicado originalmente em 29 de junho de 2020.

O número de casos confirmados de COVID-19 na Bolívia, que chegou a 30.676 neste sábado, triplicou desde que o país iniciou a reabertura das atividades econômicas há menos de um mês. A velocidade de transmissão da doença está atingindo patamares cada vez mais preocupantes, tendo ultrapassado o marco de mil casos diários em cinco dias diferentes da semana passada.

O sistema de saúde boliviano está entrando em colapso generalizado. Há cerca de duas semanas, imagens de ao menos seis pessoas morrendo de COVID-19 nas ruas de cidades como La Paz, Cochabamba e Santa Cruz de la Sierra circularam na mídia.

Um dos casos foi identificado pelo El Deber como sendo Juan Carlos Ch., que morreu numa rua de Cochabamba após ter peregrinado por sete hospitais sem conseguir atendimento. Tornando o caso ainda mais revoltante, três cemitérios diferentes recusaram seu corpo por estarem lotados.

Jeanine Áñez na comemoração do 194º Aniversário da Polícia Boliviana

Essa situação tem sido enfrentada por várias famílias bolivianas, que estão sendo obrigadas a reter os corpos de seus entes queridos por dias dentro de suas casas, ou enterrá-los de forma improvisada, ameaçando espalhar ainda mais a doença pelas comunidades.

Ao longo dos últimos dias, uma série de centros de tratamento e um laboratório que processa exames de COVID-19 foram obrigados a suspender suas atividades após atingirem lotação máxima, escassez de insumos ou contaminação massiva entre seus funcionários.

Profissionais de saúde do Hospital Viedma em Cochabamba, um dos locais afetados, realizaram um protesto na terça-feira passada. Em cartazes, os trabalhadores exigiam: "não queremos seguro de vida, queremos viver". Uma trabalhadora relatou ao Los Tiempos: "As palavras da governadora ficaram no ar. Nós é que estamos comprando os equipamentos de proteção, o governo não nos deu nada".

Outra declarou: "Pedimos às autoridades um centro de isolamento, temos várias companheiras infectadas que estão em suas casas comprometendo suas famílias. Pedimos que realizem testes rápidos, pois não sabemos quem está infectado".

As mesmas condições levaram trabalhadores a protestar em hospitais de Santa Cruz e La Paz. A ausência de condições seguras está levando à morte substancial de profissionais de saúde. Somente na quinta-feira passada, quatro médicos morreram de COVID-19 em Santa Cruz, fazendo o total de profissionais da saúde mortos no país chegar a 48.

O avanço da doença ameaça também os quase 60 territórios indígenas bolivianos, a maior parte deles rodeados de municípios com casos registrados. Vários territórios denunciam terem sido abandonados pelas autoridades, sem acesso à saúde e aos bônus do governo. Segundo Miguel Vargas Delgado, diretor do Centro de Estudos Jurídicos e Investigação Social, os povos indígenas, sem exageros, "estão em risco de desaparecer".

O regime originado no golpe, liderado por Jeanine Áñez, respondeu à ascensão mortal da pandemia de COVID-19 com o aprofundamento irresponsável da reabertura da economia.

O governo anunciou na quarta-feira a criação do chamado "Programa Nacional de Reativação do Emprego", com o objetivo declarado de reativar a economia boliviana. Ele cria um fundo de 30 bilhões de bolivianos (cerca de 4,3 bilhões de dólares) para sustentar programas de transferência de renda ao mercado financeiro e empresas e financiamento de obras públicas e créditos imobiliários.

Contudo, as medidas de Estado policial que foram implementadas pelo governo sob o pretexto de garantir as quarentenas não estão sendo suspensas; ao contrário.

Num evento de celebração 194º aniversário da Polícia Boliviana, em 19 de junho, Áñez, que foi condecorada com a ordem de "Gran Cruz", declarou: "No momento que se aproxima, será sua vez [da polícia] de liderar, juntamente com seu povo, a construção do ambiente necessário para reativar a economia do país e dos lares bolivianos".

O peso da catástrofe social e sanitária está sendo desviado pelo governo com acusações crescentes a seus opositores. Áñez atribuiu o colapso de hospitais ao estado precário do sistema de saúde legado pela administração de Evo Moráles do Movimiento al Socialismo (MAS). E as crescentes acusações de corrupção na compra de 170 respiradores pelo governo foram caracterizadas por Áñez como "uma rede de conspiração " envolvendo o MAS.

Essas acusações se somam a tentativas reacionárias de atribuir um caráter "terrorista" à oposição política que justifique a manutenção à força do regime estabelecido com o golpe militar que derrubou Morales no último novembro.

Os protestos e bloqueios erguidos em maio por trabalhadores pobres em K'ara K'ara, no sul de Cochabamba, contra a política de fome sustentada pelo governo na quarentena, estão sendo alvo de intensa perseguição política. Na semana passada, duas pessoas foram presas como supostos líderes dos protestos em K'ara K'ara, uma delas a candidata a deputada pelo MAS Lucy Escobar, e condenadas por atentado à saúde pública, terrorismo e financiamento ao terrorismo.

A retenção por algumas horas de um policial, que aparentemente entrou por engano dentro do bloqueio de K'ara K'ara, foi caracterizada pelo ministro do governo, Arturo Murillo, como um "sequestro" ordenado pessoalmente pelo "narcoterrorista Evo Morales". Em sua conta do Twitter, Murillo afirmou que Morales "busca mortos para convulsionar" o país.

Em diferentes ocasiões, Murillo e Áñez repetiram o bordão de que a Bolívia tem "dois caminhos" possíveis: o primeiro o do MAS e do "evismo", que associam ao terrorismo, violência política e divisão dos bolivianos e o segundo é o "nosso".

A ameaça do regime pós-golpe se manter indefinidamente no poder foi reiterada ao longo da semana passada. Após uma série de idas e vindas, Áñez anunciou no domingo sua concordância com a realização de novas eleições em setembro. Entretanto, afirmou ter tomado a decisão sob pressão da oposição, tanto do MAS como de Carlos Mesa, candidato pela Comunidad Ciudadana. "Que assumam com valentia a responsabilidade que têm ao ter exigido com tanta insistência que haja eleições em plena pandemia", ela declarou.

Mas já na terça-feira, horas depois de ser promulgada a lei das eleições, o governo deu uma nova declaração contraditória. O chefe nacional de epidemiologia do Ministério de Saúde, Virgilio Prieto, afirmou numa entrevista que, devido às perspectivas de crescimento da pandemia e colapso nos hospitais, "possivelmente não possamos nem ir às urnas".

A classe trabalhadora, camponeses e indígenas bolivianos estão seriamente ameaçados pela política criminosa do governo reacionário de Áñez em resposta à pandemia e seus esforços de recrudescer o regime ditatorial.

Mas a oposição a tal ameaça vem necessariamente através da mobilização política independente da classe trabalhadora e de um rompimento com a oposição política encabeçada pelo MAS, que cumpre o papel de abrir caminho à reação. Morales reafirmou nesta semana que a necessidade do momento é de um diálogo nacional para conciliar (com as forças que promoveram o golpe) uma agenda econômica pós-pandemia.

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