Português
Perspectivas

A nomeação de Kamala Harris e a lógica direitista da política de identidade

Publicado originalmente em 20 de agosto de 2020

O Partido Democrata concluiu na quarta-feira a terceira noite de sua convenção, culminando com a nomeação oficial da senadora da Califórnia Kamala Harris como candidata à vice-presidência de Joe Biden.

O que se viu quarta-feira está de acordo com o caráter fútil e tedioso do evento como um todo. Vários reacionários e multimilionários, de Hillary Clinton a Nancy Pelosi, declararam a necessidade urgente de eleger Biden, o corrupto representante corporativo de Delaware reformulado como um santo vivo, para corrigir todos os erros e restaurar os EUA ao caminho da prosperidade e da retidão.

Nenhum programa real foi apresentado para lidar com a enorme catástrofe social e econômica produzida pela pandemia do coronavírus e a resposta bipartidária da classe dominante a ela. Tudo foi reduzido à narrativa ficcionalizada da vida de Biden e de sua companheira de luta, Kamala Harris.

A escolha de Harris foi apresentada como um momento “histórico” na política estadunidense. Essa avaliação foi baseada inteiramente no fato de que Harris é a primeira mulher com ascendência negra e indígena escolhida pelo partido político mais antigo do mundo para concorrer à vice-presidência. Foi inevitavelmente declarado que as jovens em todo o país podem concluir que também elas poderão um dia ser vice presidente dos Estados Unidos da América.

Tudo isso é, se nos for permitido usar o slogan de Biden, “malarkey” (“besteira”). Harris já provou ser uma funcionária de confiança dos interesses dos ricos e poderosos em detrimento da classe trabalhadora. O Wall Street Journal escreveu na semana passada que os investidores de Wall Street tinham “respirado aliviado” por Biden ter escolhido Harris. A publicação da indústria American Banker observou que seu maior financiamento de campanha veio de executivos da indústria financeira e de seus escritórios de advocacia mais confiáveis.

Pouco antes de encerrar sua candidatura à presidência em dezembro de 2019, a campanha de Harris orgulhava-se de ter o apoio dos maiores bilionários, incluindo o herdeiro da fortuna petrolífera Gordon Getty e o abutre capitalista Dean Metropoulos.

Como promotora do Distrito de São Francisco de 2004 a 2011, Harris levou adiante uma agenda que incluía a implementação de uma lei para multar e prender os pais de estudantes faltosos por até um ano. Como procuradora-geral da Califórnia de 2011 a 2017, ela advertiu os pais de todo o estado que eles enfrentariam “toda a força e as consequências da lei” se seus filhos faltassem a muitos dias de aula.

Durante seu mandato, Harris também se colocou contra uma ordem da Suprema Corte para libertar prisioneiros das prisões superlotadas do estado. Seus promotores (“para o povo”, como Harris disse ontem à noite) argumentaram no tribunal que libertar muitos prisioneiros esgotaria a mão-de-obra barata dos presos que lutam contra os grandes incêndios florestais do estado por menos de US$ 2 por dia.

Como senadora da Califórnia desde 2017, Harris faz parte das comissões que supervisionam o orçamento federal, o judiciário, a segurança interna e as agências de inteligência.

Através de sua posição na Comissão de Inteligência, Harris sabe das informações mais sensíveis sobre as operações criminosas do imperialismo dos EUA em todo o mundo. Nesse papel, ela apoiou a campanha dos democratas contra a Rússia com o objetivo de pressionar a administração Trump a adotar uma postura mais hostil em relação a Moscou.

Ela também apoia a perseguição ao WikiLeaks e a seu fundador, Julian Assange, que pode ser condenado a 175 anos de prisão nos EUA por expor crimes de guerra militares estadunidenses, declarando que a organização tinha causado “danos consideráveis” aos EUA.

Enquanto fingia ser de esquerda ao propor cortar o orçamento anual do Pentágono de mais de 750 bilhões de dólares, em julho Harris votou contra uma proposta do senador Bernie Sanders, de Vermont, que teria cortado o financiamento em míseros 10%. Ela disse que apoiava a ideia, mas que qualquer corte no orçamento militar deveria ser feito “estrategicamente”.

Harris representa o Partido Democrata, um partido de bilionários de Wall Street, as agências de inteligência e os militares. Sua nomeação na quarta-feira aconteceu apenas um dia depois de os democratas apresentarem uma série de republicanos que decidiram apoiar Biden, incluindo Colin Powell – o primeiro negro chefe do Estado Maior-Conjunto e arquiteto chefe da guerra de 2003 no Iraque – e a viúva do notório belicista, o senador John McCain.

Os comentários finais de Harris na convenção da noite passada foram precedidos pelos de Obama, do qual falaremos depois. Basta dizer que Obama, o primeiro negro indicado pelos democratas e a assumir a presidência, começou o resgate de bancos, continuou as guerras de George W. Bush, implementou uma política de assassinato por drone e deportou mais imigrantes do que qualquer um de seus antecessores.

Foram as políticas de direita da administração Obama que abriram o caminho para a chegada de Trump à presidência.

Os democratas esperam que a celebração interminável do banal e vazio simbolismo da candidatura de Harris sirva como uma repetição da candidatura de Barack Obama à presidência em 2008, empregando políticas de identidade para cobrir o conteúdo de direita de seu histórico e o do Partido Democrata. Esta é a lógica da reacionária política de identidade racial, étnica e de gênero, promovida incessantemente pelos opositores pseudoesquerdistas ao marxismo.

Entretanto, a chegada de um número crescente de mulheres, estadunidenses negros e de outras minorias étnicas a posições de poder – desde as câmaras municipais, passando por prefeituras e departamentos de polícia até a própria presidência – não tem feito nada para promover os interesses da classe trabalhadora. Na verdade, nas últimas quatro décadas, a desigualdade de riqueza cresceu mais rapidamente dentro dos grupos raciais, pois uma pequena camada da população alcançou posições de poder e privilégio, enquanto as condições para aqueles de todas as raças e gêneros que fazem parte dos 90% da população na base da pirâmide se deterioraram.

Além de Obama, figuras como a juíza da Suprema Corte Clarence Thomas, as assessoras de segurança nacional Condoleezza Rice e Susan Rice e a secretária de Estado Hillary Clinton – e, pode-se acrescentar, a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher e a chanceler alemã Angela Merkel – mostraram que as mulheres e as minorias raciais podem levar adiante os interesses da oligarquia financeira de forma tão implacável quanto qualquer outro representante da classe dominante.

Há algo conveniente na escolha de Harris para co-liderar o voto dos democratas. A resposta dos democratas aos protestos multirraciais e multiétnicos contra a violência policial que estouraram há alguns meses foi desviá-los para a política de divisão racial, usando a alegação reacionária e falsa de que o que estava envolvido era um conflito entre os “EUA branco” e os “EUA negro”, ao invés de um conflito entre a classe trabalhadora e o capitalismo. Esse esforço agora culminou na escolha da antiga “chefe de polícia” da Califórnia como candidata à vice-presidência dos democratas.

O objetivo é bloquear o surgimento de um movimento poderoso e unificado da classe trabalhadora. A pandemia de COVID-19 expôs a indiferença criminosa de toda a elite dominante à vida da classe trabalhadora. Como foi demonstrado com a aprovação quase unânime do resgate trilionário através da Lei CARES, a preocupação deles é com suas carteiras de ações e os lucros de suas corporações à custa de mais de 175.000 pessoas que já morreram e dos mais de 5,5 milhões que foram infectados pelo novo coronavírus.

A luta para levar adiante os interesses da classe trabalhadora terá que ser travada através dos métodos da luta de classes, em oposição aos democratas e republicanos e ao sistema capitalista que eles defendem.

Loading