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Perspectivas

O imperialismo alemão e o estranho caso Alexei Navalny

Publicado originalmente em 5 de setembro de 2020

Em 20 de agosto, o político russo pró-Ocidente Alexei Navalny se sentiu mal em um voo para Moscou. Após ser transferido para um hospital em Berlim, o governo alemão anunciou categoricamente que ele havia sido envenenado com o agente nervoso Novichok.

Políticos e meios de comunicação dos países ocidentais, sobretudo da Alemanha, declararam que o governo russo é responsável pelo envenenamento de Navalny e intensificaram seus apelos para um confronto com a Rússia. Um determinado padrão está se repetindo. Um incidente ocorre e imediatamente é declarado pelos meios de comunicação que Putin ou Assad é responsável, exigindo uma resposta imediata.

Mesmo o caso mais comum de homicídio envolve uma grande investigação antes que o suposto responsável seja revelado publicamente. Mas, neste caso, toda a mídia ocidental concluiu imediata e unanimemente quem era o culpado.

Assumindo que Navalny tenha sido envenenado, seria de se pensar que haveria uma gama de suspeitos. Não é possível que um indivíduo ou indivíduos pudessem ter envenenado Navalny não porque apoiam o regime de Putin, mas porque se opõem a ele?

Afinal, o governo alemão está sob imensa pressão dos Estados Unidos para parar a construção do gasoduto Nord Stream II e os últimos acontecimentos já aceleraram os apelos para o abandono do projeto.

A Alemanha tem historicamente considerado a Europa do Leste como sua esfera de influência, ou, para usar o termo de Hitler, “Lebensraum” (“Espaço Vital”). Agora, quase 80 anos após o início da Operação Barbarossa, que levou a morte mais de 27 milhões de soviéticos, a Alemanha está novamente liderando a acusação para um conflito com a Rússia.

Em entrevista ao jornal Rheinische Post, a ministra alemã da Defesa Annegret Kramp-Karrenbauer ameaçou explicitamente retaliar o governo russo.

O “sistema Putin” é um “regime agressivo, que procura sem escrúpulos fazer valer seus interesses por meios violentos e viola repetidamente as normas internacionais de comportamento”, disse ela. O envenenamento de Alexei Navalny, afirmou, é a prova de que na Rússia são usadas armas químicas proibidas contra as pessoas. O regime de Putin está assim “no mesmo nível dos regimes, como o da Síria, que usaram armas químicas contra sua própria população civil”.

As alegações não comprovadas e, em muitos casos, completamente refutadas de que o governo sírio empregou armas químicas contra civis têm servido repetidamente como pretexto para as potências ocidentais lançarem ataques aéreos ao país.

A retórica é igualmente agressiva nas páginas de opinião dos principais jornais. O jornal financeiro alemão Handelsblatt se irritou em 25 de agosto, dizendo que era preciso deixar claro que “o Ocidente morde, assim como late, e que abordagem de se aproximar de Moscou chegou ao fim”. Em 3 de setembro, a revista Der Spiegel exigiu: “O momento da dureza é agora. Agora é o momento de ferir o homem no Kremlin.”

A chanceler Angela Merkel jogou combustível na fogueira na quarta-feira, quando declarou em uma coletiva de imprensa que os médicos toxicologistas do Exército alemão haviam provado “sem dúvida” que Navalny havia sido vítima de um crime e envenenado por um agente nervoso da família Novichok. Ela fez um ultimato ao governo russo para “responder a perguntas muito sérias”, e anunciou que a União Europeia (UE) e a OTAN tomariam uma ação conjunta.

Ambas as organizações responderam imediatamente às exigências de Merkel. Em uma declaração na quinta-feira, a UE ameaçou a Rússia com sanções. Em uma carta ao alto representante da UE para assuntos externos, Josep Borrell, 107 deputados do Parlamento Europeu exigiram uma investigação “dentro das estruturas das Nações Unidas ou do Conselho Europeu” para “investigar os verdadeiros motivos deste crime”. A iniciativa da carta partiu do deputado alemão do Partido Verde Sergey Lagodinsky.

Seria o cúmulo da ingenuidade acreditar que o possível envenenamento de Navalny é a razão para esta campanha agressiva contra a Rússia. Seu caso serve apenas como um pretexto para intensificar a ofensiva contra a Rússia que a OTAN vem realizando há muito tempo. A Alemanha, em particular, está explorando o caso para dar mais um passo em direção a seu tão querido objetivo de emergir novamente como uma grande potência militar.

Nada do que foi dito sobre o caso Navalny pela mídia ou por políticos pode ser considerado válido. A hipocrisia da suposta preocupação com seu destino é quase impossível de exagerar.

Após o assassinato da jornalista de Malta Daphne Caruana Galizia e do jornalista investigativo eslovaco Jan Kuciak e de sua noiva, não se discutiu a aplicação de sanções, apesar de fortes evidências em ambos os casos apontarem para o envolvimento de círculos poderosos do governo e de grandes empresas. Ambos os países são membros da UE e da OTAN.

Ainda esta semana, o empresário eslovaco Marian Kocner foi absolvido por um tribunal do assassinato de Kuciak, embora várias testemunhas o tenham identificado como o mandante do assassinato do jornalista.

O regime saudita nunca foi ameaçado com sanções após ordenar o assassinato e o desmembramento do jornalista oposicionista Jamal Khashoggi em seu consulado em Istambul.

Ainda não foram apresentadas evidências para provar “sem dúvida” que Navalny foi envenenado por um agente nervoso da família Novichok. O laboratório em Munique que apresentou as provas não é neutro nem independente. Ele está sob o comando do Exército alemão, que está desempenhando um papel de liderança na escalada militar da OTAN contra a Rússia e tem um interesse direto em desacreditar o governo russo. Há vinte anos, a agência alemã de inteligência estrangeira (BND) desempenhou um papel importante em “provar” que o Iraque possuía armas de destruição em massa, a acusação que serviu como o principal pretexto para a guerra liderada pelos EUA contra o país do Oriente Médio, mas que mais tarde se provou ser uma farsa.

Mas mesmo que se aceite que Navalny foi envenenado, isto não prova de forma alguma o envolvimento do regime de Putin. Novichok foi produzido em laboratórios soviéticos durante os anos 1970 e 1980, mas após a dissolução da União Soviética, ele, como tudo mais, pode ser comprado. Por exemplo, sabe-se que a BND comprou uma amostra de Novichok de um cientista militar russo nos anos 1990 e a passou para agências ocidentais, sugerindo que eles estão em condições de produzir o Novichok. O agente nervoso também foi descoberto em mãos privadas e tem sido usado para acerto de contas entre gângsteres búlgaros.

É mais do que inexplicável por que Putin, um antigo agente de inteligência, seria tão tolo a ponto de primeiro envenenar Navalny e depois permitir que ele fosse transferido para uma clínica alemã dois dias depois, onde ele sabia que o veneno seria descoberto.

Como o World Socialist Web Site explicou em um artigo esta semana, Navalny tem laços com extremistas de direita, oligarcas competindo com o Kremlin e agências de inteligência ocidentais. Ele tem muitos inimigos que têm interesse em se desfazer dele. Também é possível que ele tenha pisado nos dedos dos pés de um de seus mentores, que pode ter visto o ataque como uma oportunidade para desacreditar Putin.

Em 2014, a classe dominante alemã chegou à conclusão de que era necessário assumir maior “responsabilidade internacional” e iniciar uma grande escalada militar. “A Alemanha é grande demais para comentar a política mundial à margem”, disse o então ministro e atual presidente alemão Frank-Walter Steinmeier na Conferência de Segurança de Munique.

Desde então, o país lançou um programa maciço de rearmamento, participou de várias intervenções militares no Oriente Médio e na África, e se juntou ao reforço militar da OTAN nas fronteiras da Rússia. O renascimento do militarismo tem sido acompanhado pela banalização dos crimes dos nazistas e pelo fortalecimento das forças de extrema direita, como a Alternativa para a Alemanha (AfD). Com a pandemia do coronavírus, estes desenvolvimentos se intensificaram.

Já antes do caso Navalny, a Sociedade Alemã de Relações Exteriores (DGAP) publicou um comentário agressivo de seu presidente, Tom Enders, apelando para que a Alemanha seguisse uma política externa “corajosa e combativa”. Enders foi o CEO da Airbus antes de assumir a presidência da DGAP. A Airbus, junto com a Boeing, não só é a maior produtora mundial de aeronaves civis, mas também a maior fabricante de armas da Europa.

O fato de o imperialismo alemão estar agora se voltando contra a Rússia segue um padrão histórico. Em sua luta por “espaço vital no Oriente”, o regime nazista invadiu a União Soviética e procurou exterminar grandes parcelas da população soviética. Em seu conflito cada vez maior com a Rússia, a burguesia alemã está se valendo mais uma vez dessas tradições criminosas.

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The case of Alexei Navalny and the imperialist intervention in Russian politics
[3 de setembro de 2020]

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