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Com explosão da desigualdade no Brasil, elite dominante monta armadilha racialista para a classe trabalhadora

Publicado originalmente em 8 de outubro de 2020

Ao longo da última meia década, a classe trabalhadora brasileira sofreu um violento rebaixamento de suas condições de vida. A recessão econômica no Brasil, marcada pela crise do chamado 'ciclo das commodities', significou, além da queda e estagnação de seu PIB, um aprofundamento dos níveis já obscenos de desigualdade social.

Entre 2015 e 2019, enquanto a metade mais pobre da população viu sua renda encolher 17%, a do 1% mais rico teve um aumento de 10%. O relatório de Desenvolvimento Humano da ONU, divulgado no final de 2019, reportou que o Brasil caiu uma posição no ranking mundial da desigualdade, passando a ocupar o posto de sétimo país mais desigual do mundo.

Esta crise social se expressou num forte aumento do desemprego, especialmente entre a juventude. O índice oficial de desemprego entre jovens de 14 a 25 anos saltou de 14,5% no final de 2014, a 26% no final de 2018. No mesmo período, a renda dos jovens de 20 a 24 anos encolheu cinco vezes mais do que a do restante da população.

Luiza Helena Trajano, mulher mais rica do Brasil. (Crédito: World Economic Forum/Benedikt von Loebell)

A pandemia de COVID-19, que atingiu o Brasil em março de 2020, exacerbou as contradições que vinham se desenvolvendo nos anos anteriores, levando-as a níveis cada vez mais intoleráveis.

A resposta criminosa da elite dominante capitalista à pandemia, guiada por seus interesses de lucro, foi permitir a disseminação do novo coronavírus, provocando a morte de quase 150 mil brasileiros, ao mesmo tempo em que aprofundou os ataques econômicos sobre a classe trabalhadora.

Nos primeiros três meses da pandemia, que coincidem com uma expressiva queda do PIB brasileiro, praticamente 10 milhões de trabalhadores perderam seus empregos, enquanto outros 11 milhões tiveram suas jornadas e salários reduzidos. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registrou pela primeira vez mais da metade da população em idade de trabalhar estando fora da força de trabalho.

Os índices de desemprego na juventude dispararam. Se entre a população em geral o desemprego oficial atingiu níveis recordes de 13,2% (que seguem aumentando), entre jovens de 18 a 24 anos alcançou 29,7%. Isso deixará marcas permanentes em toda uma geração da classe trabalhadora brasileira.

A combinação da perda de empregos à diminuição dos salários no primeiro trimestre da pandemia produziu uma queda de 20% da renda individual do trabalho dos brasileiros e um aumento de 2,82% em sua desigualdade, de acordo com um estudo recente da Fundação Getúlio Vargas (FGV). A renda do trabalho da metade mais pobre teve um decréscimo de 27,9%, contra 17,5% entre os 10% mais ricos. Esses números constituem recordes históricos negativos, tanto em termos absolutos como no grau de sua variação.

Mas o estudo observou um 'paradoxo' ao considerar dados de fontes de renda em geral, e não somente do trabalho. Eles mostraram uma queda da pobreza e desigualdade no mesmo período. O pagamento do auxílio emergencial de R$600 a uma parcela significativa da população produziu, em suas palavras, um 'efeito-anestesia' sobre a crise social real. A diminuição pela metade deste auxílio em setembro e seu esperado fim em dezembro sinalizam que essa crise está cada vez mais perto de estourar.

Enquanto a classe trabalhadora e setores da classe média passaram pelos mais terríveis sofrimentos e privações durante a pandemia, o cenário foi muito diferente para a oligarquia capitalista.

Nos primeiros cinco meses da pandemia, mesmo com uma queda de mais de 10% no PIB do país, os 42 bilionários brasileiros tiveram um estupendo crescimento de sua renda combinada, que saltou de US$123,1 bilhões a US$157,1 bilhões, segundo a organização humanitária Oxfam.

Acampamento de sem-tetos em São Paulo em 2014. (Crédito: Ben Tavener)

A revista Forbes brasileira, ao divulgar sua lista de bilionários em setembro, notou: 'Apesar das inúmeras consequências econômicas causadas pela pandemia de Covid-19 neste ano, a lista de bilionários brasileiros da Forbes [em reais] bateu um novo recorde de novos nomes. São 33 novos bilionários no ranking, 16% a mais do que no ano passado.'

Um dos destaques da lista foi Luiza Helena Trajano, presidente do conselho administrativo da rede varejista Magazine Luiza. Ela saltou do 24º ao 8º lugar, aparecendo pela primeira vez como a mulher mais rica do Brasil. Trajano teve um aumento de mais de 180% de seu patrimônio, que chegou a R$24 bilhões. As ações do Magazine Luiza, que está tornando-se uma espécie de Amazon brasileira, acumulam uma valorização de quase 90% em 2020.

Como por acaso, menos de uma semana antes da Forbes divulgar sua lista, Luiza Trajano ocupava páginas de destaque nos jornais brasileiros por uma polêmica que não estava centrada no acúmulo obsceno de riqueza em suas mãos.

No último 18 de setembro, o Magazine Luiza anunciou um programa de trainee para 'cargos de liderança' admitindo exclusivamente candidatos negros. A empresa conclamou seu programa de treinamento com base racial como primeiro do tipo no Brasil. Foram abertas 20 vagas com salário de R$6.600 a candidatos recém-formados em qualquer curso superior. Pouco depois, a transnacional farmacêutica de base alemã, Bayer, anunciou um programa de trainee exatamente nos mesmos termos, com 19 vagas voltadas exclusivamente a brasileiros negros.

Em sua conta do Twitter, o Magazine Luiza explicou o programa alegando: 'Atualmente, temos em nosso quadro de funcionários 53% de pretos e pardos. E apenas 16% deles ocupam cargos de liderança. Precisamos mudar esse cenário'. Nas semanas seguintes, em uma série de entrevistas, Trajano completou a justificativa com frases vazias sobre 'racismo estrutural'. Em uma de suas aparições, declarou que o programa não deveria ser creditado a ela, mas a George Floyd, assassinado pela polícia dos EUA!

Frente a ataques de direita ao programa de trainee, setores da mídia brasileira retrataram Luiza Trajano como uma espécie de bastião dos valores democráticos. Ela também recebeu apoio efusivo da pseudoesquerda. O site de notícias Brasil 247, alinhado ao Partido dos Trabalhadores (PT), a descreveu como 'uma empresária tradicionalmente ligada às causas progressistas no país, tendo apoiado os governos do PT e a luta contra o racismo'.

O professor da Universidade de São Paulo (USP) Dennis de Oliveira, referência nas discussões racialistas da pseudoesquerda brasileira, afirmou: “A iniciativa do Magazine Luiza, além de ser produto da pressão do movimento negro, também mostra que a empresa está antenada com estudos feitos no mundo inteiro, nos Estados Unidos principalmente, mostrando que empresas que adotam políticas a favor da diversidade obtêm resultados melhores”.

Num artigo publicado no Ecoa, a jornalista Bianca Santana afirmou que, com o lançamento do programa de trainee do Magazine Luiza, a 'mulher mais rica do Brasil … anuncia uma ruptura com o pacto narcísico da branquitude'.

Essas ideias corruptas estão baseadas nos interesses de camadas da classe média alta e sua disputa por cargos e posições no topo da sociedade. Ao contrário do que dizem, os interesses das massas de trabalhadores brancos não são defendidos por um suposto 'pacto da branquitude', assim como o alegado 'rompimento' deste “pacto”, com a patética criação de 20 cargos bem remunerados num contexto em que mais da metade da população não tem emprego, não altera em nada as condições de desespero crescente das massas de trabalhadores negros.

O enaltecimento de uma figura como Luiza Trajano, cujos interesses sociais estão diretamente ligados às privações impostas à grande maioria da população, como uma figura progressista na sociedade brasileira é uma farsa grotesca. Sua promoção de políticas racialistas, assim como as impulsionadas pelo PT e a pseudoesquerda, deriva do pavor que têm de um levante da classe trabalhadora que ponha seus privilégios sociais em risco.

Em sua última entrevista, transmitida na segunda-feira no programa RodaViva, Trajano deu voz a um conjunto de ideias que correspondem a seus interesses de classe reacionários. Ao mesmo tempo em que declarou ter chorado ao descobrir o que era 'racismo estrutural', expressou sua firme oposição à taxação das fortunas de bilionários como ela, defendendo que os capitalistas devem ser livres para decidir a que causas sociais contribuir com 'doações'.

Ela também fez uma tentativa patética de negar sua posição de mulher mais rica do Brasil, dizendo não concordar com os critérios da Forbes, e que aqueles números estão somente 'no papel', correspondendo a flutuações no mercado de ações. Que sua riqueza está baseada em especulação no mercado financeiro é verdade, mas esta é a forma através da qual toda a elite parasitária à qual ela pertence acumulou níveis de riqueza sem precedentes enquanto a economia real e as condições das massas seguem em declínio.

Expressando o olhar de sua classe sobre a pandemia de COVID-19, Trajano afirmou: 'Eu confesso que fiquei muito tranquila com a empresa, isso é uma coisa que a epidemia me deu'. Ela recusou-se a condenar a política sociopata do presidente fascista Jair Bolsonaro, cujas medidas a beneficiaram diretamente, afirmando que o que a deixou 'muito triste' foram as divisões políticas criadas durante a pandemia.

Trajano defendeu ainda a privatização dos Correios, dos quais sua empresa é candidata a compradora, dizendo que 'privatização, para mim, não quer dizer mandar os outros embora, é dar velocidade'. Isso é uma mentira deslavada. Os trabalhadores dos Correios acabaram de sair de uma greve, amargamente traída pelos sindicatos, na qual lutaram contra um conjunto de ataques sem precedentes, que visavam aumentar a rentabilidade da empresa e torná-la mais atrativa para a aquisição por empresas como o Magazine Luiza e Amazon.

O caráter pequeno-burguês da política da pseudoesquerda é o que a faz se identificar com uma figura como essa. Sua tentativa de impor a falsa concepção de que a principal divisão da sociedade é entre raças, e não classes sociais, cumpre um papel político absolutamente reacionário: submeter a classe trabalhadora à oligarquia capitalista e seu Estado.

Os esforços da pseudoesquerda e de partidos burgueses como o PT de dividir a classe trabalhadora em segmentos raciais, de gênero, e nacionais colabora com os esforços e alimenta o crescimento de forças de caráter fascista e direitista na sociedade, que surgem do mesmo solo apodrecido do capitalismo em degeneração.

A resposta aos problemas fundamentais que assolam a sociedade brasileira e mundial está na unificação da classe trabalhadora como força política independente, lutando pela expropriação das fortunas e empresas nas mãos da elite dominante.

A onda mundial de greves e protestos da classe trabalhadora, que se intensificou desde o início da pandemia, mostra o imenso potencial de desenvolvimento de uma direção revolucionária internacional, armada com um programa socialista e capaz de unir a classe trabalhadora de todas as raças e nacionalidades na luta pelo poder político.

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