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As raízes objetivas da desigualdade social

Publicado originalmente em 8 de outubro de 2020

Há um nervosismo crescente nos círculos políticos nos EUA e em todo o mundo sobre as consequências explosivas da desigualdade social cada vez maior, que agora está acelerando como resultado dos trilhões de dólares que estão sendo distribuídos às elites financeiras e corporativas dominantes para garantir que sua acumulação de riqueza possa continuar inalterada durante a pandemia de COVID-19.

Isso é acompanhado de esforços desesperados para fazer avançar a ilusória alegação de que algum tipo de reforma da economia capitalista pode ser promovida a fim de tentar evitar uma erupção da luta de classes.

Novos prédios residenciais sendo construídos com vista para o Central Park, Nova York, em 17 de abril de 2018. (AP Photo – Mark Lennihan)

Dois artigos recentes, um na revista Time, um bastião da mídia do establishment político americano, o outro na revista Foreign Affairs, a principal revista de política externa dos EUA, mostram essas duas tendências.

Em 14 de setembro, a Time publicou um importante artigo relatando os resultados de um estudo realizado pela RAND Corporation, um think tank americano de longa data, que revelou o enorme impacto do aumento da desigualdade social nos EUA nos últimos 45 anos.

O estudo da RAND descobriu que, durante esse período, quase 50 trilhões de dólares haviam sido desviados dos 90% mais pobres para os mais ricos da sociedade americana, indo principalmente para o 1% mais rico. O estudo revelou que se a distribuição de renda tivesse permanecido o que era durante o período de 1945 a 1975, então os trabalhadores americanos que fazem parte da faixa dos 90% mais pobres teriam recebido renda adicional de US$ 2,5 trilhões em 2018.

Como o artigo da Time observou: “Esta é uma quantia equivalente a quase 12% do PIB – o suficiente para mais do que dobrar a renda média e o suficiente para pagar a cada trabalhador americano que faz parte da faixa dos 90% mais pobres mais US$ 1.144 por mês. Todo mês. Todo ano.”

Embora o estudo não tenha usado o termo “classe” – um tabu na análise política em meio ao impulso liderado pelo New York Times para racializar todas as questões sociais – os dados apresentados pelos pesquisadores da RAND, Carter C. Price e Kathryn Edwards, deixaram claro que são determinados pela distribuição de renda. Segundo eles, “independentemente de sua raça, sexo, nível educacional ou renda, os dados mostram que se você ganha abaixo do percentil 90, a implacável redistribuição ascendente de renda desde 1975 está saindo do seu bolso”.

O artigo da Time também citou outras pesquisas do think tank American Compass que mostraram que um trabalhador do sexo masculino com renda média em 1985 precisava de 30 semanas de salário para pagar pela moradia, saúde e educação de sua família, o que subiu para 53 semanas em 2018 – mais do que as semanas de um ano.

“Em 2018, a renda total dos lares casados com dois trabalhadores em tempo integral era pouco maior que a renda de um lar solteiro se a desigualdade tivesse se mantido constante. As famílias de duas rendas estão agora trabalhando o dobro de horas para manter uma fatia cada vez menor do bolo, enquanto lutam para pagar os custos de moradia, saúde, educação, cuidado das crianças e transporte que cresceram a uma taxa duas a três vezes maior do que a da inflação.”

O dinheiro foi para as camadas superiores de renda. A participação do 1% mais rico na renda total aumentou de 9% em 1975 para 22% em 2018, enquanto os 90% mais pobres viram sua participação cair de 67% para 50%.

Isso fez com que 47% dos que pagam aluguel estejam vivendo no limite, 40% dos lares não possam arcar com uma emergência de US$ 400, 55% da população não possua nenhuma poupança para a aposentadoria, 72 milhões de pessoas ou não tenham seguro de saúde ou estejam com seguro insuficiente e não possam arcar com os serviços de coparticipação e milhões sejam forçados a trabalhar em condições inseguras devido à COVID-19 porque não têm outros meios de sobrevivência.

Tendo apresentado uma série de estatísticas devastadoras, o artigo da Time procurou então encobrir suas causas fundamentais e evitar que fossem tiradas as necessárias conclusões políticas. Segundo o artigo, “essa redistribuição ascendente de renda, riqueza e poder não foi inevitável; foi uma escolha – um resultado direto das políticas de gotejamento [que supõe que corte de impostos para os ricos beneficia toda a sociedade] que nós escolhemos implementar desde 1975.” [ênfase no original].

Para a Time, “nós escolhemos” reduzir os impostos sobre os bilionários, permitir a recompra de ações para manipular o mercado de ações, permitir às corporações adquirir um vasto poder através de fusões e aquisições, permitir a erosão do salário mínimo e eleger políticos que colocam os interesses dos ricos e poderosos acima dos do povo americano.

Em outras palavras, no limite, a própria massa da população é responsável por seu padrão de vida cada vez mais precário.

O exame dos fatos políticos e econômicos objetivos expõe esta calúnia. A causa fundamental dessa situação está na dinâmica do sistema de lucro capitalista e suas leis econômicas, aplicadas através do funcionamento do mercado, sobre o qual a massa da população não tem controle porque aqueles que controlam a economia – bancos e grandes corporações – são de propriedade privada.

A análise da RAND identificou o ponto de partida da redistribuição ascendente de renda em 1974-75. Esse período marcou o fim do boom do pós-guerra no qual o crescimento da renda em todos os níveis acompanhou aproximadamente o aumento do PIB per capita, o que significou que os níveis existentes de desigualdade de renda não tinham aumentado.

O fim do boom anunciou sua chegada com a destruição do sistema monetário de taxas de câmbio fixas de Bretton Woods em 1971, quando o Presidente Nixon, diante do enfraquecimento da posição econômica global do capitalismo dos EUA em relação a seus rivais, removeu o lastro de ouro do dólar americano.

Isso deu início a um período de turbulência econômica global que levou à recessão de 1974-75, a mais significativa desde a Grande Depressão.

Recessões tinham acontecido durante o boom do pós-guerra. Mas a de 1974-75 foi qualitativamente diferente porque seu final não foi marcado por uma recuperação econômica e uma maior taxa de crescimento, como havia acontecido nos anos 1950 e 1960, mas pelo que ficou conhecido como estagflação – baixo crescimento econômico, elevados níveis de desemprego e aumento da inflação.

A recessão de 1974-75 revelou uma das leis mais fundamentais da economia capitalista identificada por Marx – a tendência de queda da taxa de lucro.

Durante o boom, essa tendência pôde ser contida devido ao aumento da produtividade da força de trabalho no sistema industrial existente. Isso deixou de ser suficiente e o capital respondeu nos EUA e em todo o mundo com uma reestruturação fundamental da economia.

Essa reestruturação aconteceu através de uma ofensiva contra a classe trabalhadora desde o início dos anos 1980, a destruição de setores inteiros da indústria, a terceirização de processos de produção para aproveitar fontes de mão de obra mais baratas ao redor do mundo, o desenvolvimento acelerado de tecnologias baseadas em computadores e a crescente guinada às operações financeiras especulativas como base para a acumulação de lucros.

A redistribuição ascendente de renda em torno de US$ 50 trilhões, realizada tanto sob os governos republicanos como democratas e levada adiante pela burocracia sindical, que se transformou na agência aberta do capital, não foi o resultado de uma “escolha” feita pela população nas urnas. Foi o resultado de impulsos objetivos, oriundos do centro da própria economia capitalista, que determinaram, enfim, a direção e o funcionamento de toda a superestrutura política.

Significativamente, Price e Edwards, os autores do estudo da RAND, não se pronunciaram sobre a causa da crescente desigualdade, dizendo que “mais trabalho” precisa ser realizado nessa área.

Mas a análise científica, baseada nas leis da economia capitalista descobertas por Marx, revela sua origem. A conclusão de Marx, denunciada por economistas burgueses de todas as tendências políticas ao longo das décadas, foi que a lógica objetiva inerente ao sistema de lucro capitalista, quaisquer que sejam as reviravoltas em seu desenvolvimento histórico, era a acumulação de vasta riqueza em um polo e pobreza e miséria no outro.

Disso seguem-se conclusões políticas concretas, que todos os tipos de “críticos”, sobretudo os de “esquerda”, procuram encobrir: a única maneira da classe trabalhadora poder tomar o controle de seu próprio destino e utilizar a vasta riqueza e as forças produtivas que seu trabalho criou é acabando com o sistema de lucro, ou seja, com a expropriação dos exploradores, fazendo com que as grandes corporações e o sistema financeiro se tornem propriedade pública sob controle democrático.

Qual alternativa é oferecida pelos “críticos”? Ela pode ser resumida na conclusão do artigo da Time de autoria de Nick Hanauer, um capitalista de risco, e David Rolf, fundador da Área 775 do Sindicato Internacional dos Trabalhadores de Serviços.

Após escreverem sobre a necessidade de “experimentos” para desenvolver o aumento do poder dos trabalhadores, eles concluem: “Há poucas evidências de que o atual governo tenha algum interesse em lidar com esta crise. Nossa esperança é que um governo Biden seja historicamente corajoso”. Em outras palavras, a classe trabalhadora deve permanecer presa dentro da estrutura da política capitalista.

O artigo da economista de “esquerda” Mariana Mazzucato publicado na Foreign Affairs em 2 de outubro, intitulado “Capitalismo Depois da Pandemia, Obtendo a Recuperação Certa”, é mais uma tentativa de ocultar as causas subjacentes à crise atual.

Ela começa seu artigo com uma análise da resposta à crise financeira de 2008. O resgate de US$ 3 trilhões do sistema financeiro permitiu às empresas e bancos de investimento obterem as vantagens da recuperação enquanto a população “ficou com uma economia global tão quebrada, desigual e intensiva em carbono como antes. Agora, como os países estão se recuperando da pandemia de COVID-19 e dos lockdowns resultantes, devem evitar cometer o mesmo erro.”

Os atuais “esforços de resgate” dos governos e bancos centrais são necessários, mas “não é suficiente que os governos simplesmente intervenham como financiadores de emergência quando os mercados entram em colapso ou ocorram crises. Eles devem moldar ativamente os mercados de modo que produzam o tipo de resultado a longo prazo que beneficie a todos. O mundo perdeu a oportunidade de fazer isso em 2008, mas o destino lhe deu outra oportunidade.”

O que ocorreu em resposta à crise financeira global não foi um “erro”, mas uma resposta de classe. Em 2008, a financeirização que tinha começado com o fim do boom do pós-guerra havia chegado a tal ponto que toda a economia americana estava dependente da especulação, da corrupção e da criminalidade direta de Wall Street – uma situação que levou o Presidente George W. Bush a comentar no auge da crise que “this sucker’s going down”.

Após 2008, os trilhões de dólares injetados nos mercados financeiros pelo Fed através de taxas de juros ultrabaixas e da flexibilização quantitativa elevaram a montanha de capital financeiro fictício a alturas ainda maiores. Quando a pandemia começou a assolar o mundo, todo o sistema financeiro congelou em meados de março, exigindo uma intervenção ainda maior do governo e do Fed.

Mazzucato está bem ciente da extensão desse processo. Como ela observa: “A maior parte dos lucros do setor financeiro é reinvestida no mercado – bancos, companhias de seguro e no setor imobiliário – em vez de ser aplicado no setor produtivo, como infraestrutura ou inovação. ... A estrutura atual das finanças alimenta, assim, um sistema orientado pela dívida e por bolhas especulativas, que, quando explodem, fazem com que os bancos e outros implorem por ajuda do governo.”

Mas agora, sustenta, este sistema pode, de alguma forma, ser diferente, dando ao mundo uma chance de criar uma economia melhor que “gere menos desigualdade” e seja “mais inclusiva e sustentável”.

O que justifica esse ponto de vista, claramente voando diante de uma realidade da qual a autora está plenamente consciente?

Em uma palavra, a política. Mazzucato faz parte de um meio de “esquerda” inserido em setores da classe média alta, que, embora ofereça críticas à economia capitalista, é profundamente hostil à luta independente da classe trabalhadora, uma vez que coloca em perigo seus privilégios sociais e econômicos, espalhando assim ilusões na perspectiva reformista.

Considerando que Mazzucato tenta dar a essa ilusão um ponto de vista teórico, ela sustenta que as crises do capitalismo não surgem de suas contradições objetivas e insolúveis, mas de maneiras de pensar errôneas.

Após detalhar a crise atual, na parte do artigo intitulada “Repensando o valor”, ela escreve: “Tudo isso sugere que a relação entre o setor público e o privado está quebrada. Para consertá-la é preciso primeiro tratar de um problema subjacente em economia: a disciplina se equivocou em relação ao conceito de valor”.

Mas como Mazzucato bem sabe, Marx, baseando-se no trabalho dos economistas políticos clássicos que o precederam, estabeleceu no capítulo de abertura de O Capital, que trata da forma celular da economia capitalista, a mercadoria, que o valor não é um conceito, mas uma relação social objetiva.

O valor não é a-histórico. Ele surge em um sistema socioeconômico histórico específico, o capitalismo, no qual a produção é social, mas é realizada por proprietários privados dos meios de produção. O valor das mercadorias não é atribuído a elas nem pelos compradores nem pelos vendedores, mas é determinado pela quantidade da força de trabalho socialmente necessária nelas incorporada e passa a ser representado pelo dinheiro.

O modo capitalista de produção surge da produção de mercadorias quando a força de trabalho, a única mercadoria que a classe trabalhadora detém, é comprada e vendida no mercado e, tendo sido comprada pelos proprietários dos meios de produção, é colocada para trabalhar a fim de extrair valor adicional, ou mais-valia. Essa mais-valia constitui a base do lucro industrial e as outras formas de rendimento que fluem para os proprietários de terras, bancos e financistas.

O objetivo do sistema capitalista não é a produção dos bens e serviços necessários para o progresso da sociedade, mas a acumulação de dinheiro, o representante do valor. O dinheiro, como Marx explicou, é o início e o fim do processo e assim surge necessariamente uma situação em que o capital financeiro vem a dominar o sistema e todo o establishment político e econômico se dedica a defender os interesses desta oligarquia, qualquer que seja o custo social, e, como a pandemia revelou tão claramente, inclusive a própria vida.

Nenhum diabo, escreveu certa vez Trotsky, jamais cortou voluntariamente suas próprias garras. E as garras da oligarquia financeira, que rasgam cada vez mais profundamente o corpo da sociedade, não surgem de avaliações incorretas do que constitui o valor.

Elas são o produto necessário de uma ordem socioeconômica baseada na propriedade privada dos meios de produção, que agora entrou num estado avançado de decadência e que agora deve ser derrubada pela classe trabalhadora e substituída pelo socialismo para que o progresso humano possa ser retomado.

O fato de que tais esforços desesperados estão sendo feitos para obscurecer e mistificar a lógica econômica objetiva de destruição da vida da ordem capitalista a fim de tentar bloquear a compreensão desta tarefa é um sinal certo de que isso está sendo colocado decididamente na ordem do dia.

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