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Forças Armadas brasileiras realizam exercícios militares inéditos em meio a ameaças dos EUA contra a Venezuela

Publicado originalmente em 2 de novembro de 2020

O Brasil foi palco nos últimos meses de dois exercícios militares inéditos conjuntos de suas Forças Armadas em meio a ameaças cada vez maiores dos EUA contra o governo Maduro na Venezuela. Desde que chegou ao poder no início do ano passado, o governo do presidente fascista Jair Bolsonaro se alinhou à operação de mudança de regime dos EUA na Venezuela, fazendo com que o Brasil se tornasse um dos primeiros países a reconhecer o fantoche americano Juan Guaidó como “presidente interino”.

Lançador múltiplo de foguetes Astros do Exército brasileiro. (Crédito: Ministério da Defesa do Brasil)

Entre 8 e 22 de setembro, o Exército brasileiro realizou um exercício militar que simulou uma guerra entre dois países na estratégica região ao redor da capital do estado do Amazonas, Manaus. A chamada Operação Amazônia também realizou exercícios militares na região de tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Venezuela, uma importante rota do tráfico de drogas no oeste da Amazônia, e no estado mais ao norte do Brasil que faz fronteira com a Venezuela, Roraima, onde o Exército brasileiro coordena desde 2018 um centro para refugiados venezuelanos.

Apesar de exercícios militares parecidos já terem sido realizados na região, a Operação Amazônia teve um caráter sem precedentes pela dimensão e articulação entre os três braços das Forças Armadas brasileiras. Contanto com a presença de 3.600 soldados de seis dos oito comandos militares do Brasil, foi o maior exercício militar já realizada na Amazônia. A Operação Amazônia envolveu exercícios de grupos de artilharia, artilharia antiaérea e paraquedistas, além do lançamento de mísseis pelo sistema Astros, que é considerando a maior arma do Exército brasileiro.

A Operação Amazônia também aconteceu em meio ao maior destacamento militar dos EUA na América Latina desde a invasão do Panamá em 1989 e a uma pressão cada vez maior dos governos dos EUA e do Brasil sobre a Venezuela. Dias antes do início do exercício militar, o governo Bolsonaro considerou os diplomatas do governo Maduro no Brasil como “personae non grata” depois de o Supremo Tribunal Federal impedir a expulsão deles do país.

Região invadida pelo país “vermelho”, com o assim chamado “delta prometido” em amarelo. (Crédito: TV Encontro das Águas)

A ação mais provocativa do governo brasileiro contra a Venezuela, no entanto, aconteceu durante a própria Operação Amazônia. Em 18 de setembro, o Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, encontrou-se em Roraima com o chanceler Ernesto Araújo, que defendeu o “fim” do “atroz” e “baseado no narcotráfico” regime de Maduro. Depois, Pompeo seguiu para a Colômbia, onde os militares dos EUA estavam realizando exercícios militares junto com as forças armadas colombianas. A visita de Pompeo ao Brasil antes das eleições americanas foi considerada uma “provocação e hostilização a uma nação vizinha” por seis ex-ministros das Relações Exteriores.

De fato, sob o pretexto de defender a soberania nacional contra um ataque inimigo e de proteger os recursos minerais da região, a Operação Amazônia estava cheia de referências à Venezuela. A simulação de guerra envolveu o ataque do país “vermelho” ao país “azul”, que começou na cidade de Caburaí, em Roraima, na fronteira com a Venezuela. O país “vermelho” chegou a controlar toda a região de fronteira entre o Brasil e a Venezuela e também a Colômbia, chegando próximo a Manaus, na região conhecida como “delta prometido”.

Nessa região está presente a maior reserva de elementos terras raras no Brasil e uma das maiores do mundo, que são utilizados na indústria eletrônica e cuja produção hoje é dominada quase que inteiramente pela China. Entre os locais estratégicos tomados pelo país “vermelho” estava a importante Região de Urucu, local da maior reserva conhecida de petróleo e gás natural terrestre do Brasil. A TV Encontro das Águas informou que um dos exercícios militares da Operação Amazônia simulou a retomada da infraestrutura do complexo petrolífero de Urucu depois de ter sido capturado e “estatizado” pelo país “vermelho”.

O silêncio da mídia burguesa brasileira sobre a Operação Amazônia foi quebrado mais de um mês depois do início do exercício militar. Segundo uma reportagem de O Globo publicada em 15 de outubro, inicialmente o Ministério da Defesa se recusou a responder às perguntas sobre a operação, que foram obtidas mais tarde através da lei de acesso à informação.

O Globo e a Folha de S. Paulo informaram que procuraram também o Ministério das Relações Exteriores via lei de acesso à informação sobre a visita de Pompeo ao Brasil. Depois de mais de um mês e meio sem resposta, a Folha informou na última sexta-feira que o ministério classificou como “secretos” os telegramas diplomáticos sobre a viagem de Pompeo até 2035. Essa decisão, justificada pelo “risco à segurança do Estado”, revela apenas que a visita de Pompeo envolveu a elaboração de um plano criminoso.

A Operação Amazônia foi seguida de um outro exercício militar conjunto inédito das Forças Armadas brasileiras no início de outubro no litoral do Rio de Janeiro. Mais de mil militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, incluindo tropas de forças especiais, participaram da Operação Poseidon, que envolveu exercícios de pouso e decolagem de helicópteros do porta-helicóptero multipropósito Atlântico da Marinha brasileira, considerado o maior navio de guerra da América Latina. Saudando a operação, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, disse que “hoje em dia nos conflitos modernos, a operação conjunta é fundamental”.

Porta-helicópteros Atlântico. (Crédito: Marinha do Brasil)

Tanto a Operação Amazônia quanto a Operação Poseidon marcam um ponto de inflexão na atuação das Forças Armadas brasileiras e em sua relação com o imperialismo americano. Elas aconteceram após o governo Bolsonaro enviar em 22 de julho ao Congresso Nacional a nova Estratégia Nacional de Defesa (END). Sem dúvida, ela levará a uma recuperação das Forças Armadas brasileiras e a uma nova corrida armamentista na região.

Ecoando a Estratégia de Segurança Nacional do governo Trump, a versão brasileira diz que “nos últimos anos tem crescido o espectro do conflito estratégico militar entre as maiores potências e ressurgido a competição pela supremacia global”. Regionalmente, a END destaca que “não se pode desconsiderar a possibilidade da ocorrência de tensões e crises no entorno estratégico, com possíveis desdobramentos para o Brasil”.

A END explica que o alcance regional do “entorno estratégico” inclui “o Atlântico Sul, a Antártica e os países africanos lindeiros ao Atlântico Sul [que] detêm significativas reservas de recursos naturais.” Entre esses recursos, destaca aqueles encontrados na Amazônia, como “água doce, alimentos, recursos minerais e biodiversidade”, e no Atlântico Sul, onde se encontra a chamada “Amazônia Azul”, que possui as “maiores reservas de petróleo e gás do Brasil”. A disputa por esses recursos, segundo a EDN, “poderá levar a ingerências em assuntos internos.”

Como consequência desse novo contexto mundial e regional, segundo a END, existe a “necessidade de expansão dos gastos militares de defesa” para a “aquisição de Produtos de Defesa”. Hoje, o Brasil gasta 1,4% do PIB nas Forças Armadas, um valor que o ministro da Defesa defendeu que chegue aos 2% do PIB a partir do ano que vem.

A mudança histórica representada pela nova END foi expressa pelo professor da Universidade Federal de Santa Catarina e especialista em Forças Armadas Lucas Rezende. Escrevendo para o Intercept Brasil, ele disse que “Pela primeira vez desde a Guerra do Paraguai (1864-1870), o Brasil ameaça formalmente que poderá entrar em guerra contra outro país vizinho para defender seus interesses”.

Essa mudança está ligada, por um lado, à ofensiva de Washington sobre o subcontinente sul-americano, historicamente considerado o “quintal” do imperialismo americano, como parte de seu “pivô para a Ásia” para se contrapor à cada vez maior presença chinesa na região. Desde 2009, a China é o principal parceiro comercial do Brasil. Com Trump, esse movimento se acelerou com a ressurreição aberta da Doutrina Monroe.

Por outro, desde o impeachment fraudulento de Dilma Rousseff do Partido dos Trabalhadores (PT), os governos brasileiros têm buscado solucionar parte da crescente crise econômica, agora intensificada pela pandemia de COVID-19, aproximando-se dos EUA. Com Bolsonaro e suas afinidades ideológicas fascistas com Trump, essa aproximação aumentou, particularmente na área militar.

Na primeira viagem de Bolsonaro aos EUA, em março do ano passado, ele e o presidente Trump assinaram um acordo de salvaguarda tecnológica para os EUA utilizarem a base de Alcântara, no Maranhão, para lançar satélites e foguetes. Por sua vez, Trump anunciou que tinha a intenção de nomear o Brasil como aliado preferencial extra-OTAN, o que foi oficializado pelo presidente americano em agosto do ano passado. Em 2018, a Colômbia, o maior aliado dos EUA na região, tornou-se um dos “parceiros globais” da OTAN.

A designação do Brasil como aliado preferencial extra-OTAN abriu o caminho para Bolsonaro e Trump assinarem em março deste ano nos EUA o Acordo de Pesquisa, Desenvolvimento, Teste e Avaliação (RDT&E), saudado pelo Comandante do Comando Sul dos Estados Unidos (SOUTHCOM), almirante Craig Faller, como “histórico”. Além de facilitar a venda de produtos da indústria de defesa brasileira aos EUA e aos países membros da OTAN, o acordo aumentará intercâmbios militares e manobras conjuntas entre os dois países e possibilitará que o Brasil e os EUA desenvolvam projetos comuns de defesa.

Faller, que tem realizado as ameaças mais diretas contra a Venezuela e é conhecido por suas tiradas anti-China, havia visitado o Brasil em fevereiro de 2019 para “discutir a cooperação e parcerias bilaterais nas áreas de defesa e segurança”. Mais importante, ele anunciou a indicação do general brasileiro de Brigada Alcides Valeriano de Faria Junior como subcomandante de interoperabilidade do SOUTHCOM. Essa indicação, que significa a inclusão de um general brasileiro na cadeia de comando dos EUA, é inédita, e, no caso de uma invasão americana da Venezuela, pode fazer com que o Brasil seja diretamente arrastado para o conflito.

O último episódio do alinhamento cada vez maior entre os EUA e o Brasil aconteceu em 19 de outubro, quando o conselheiro de segurança dos EUA Robert O’Brien visitou o Brasil para assinar um acordo de investimento em diversas áreas, incluindo no setor de telecomunicações. Denunciando a China por ataques cibernéticos, ele recomendou “fortemente” que o Brasil adote fornecedores “confiáveis” no leilão da tecnologia 5G marcado para acontecer no ano que vem. O’Brien lembrou em um discurso a parceria histórica compartilhada desde 1822 com a doutrina Monroe e disse que o Brasil e os EUA hoje “estão mais próximos do que nunca”, o que inclui o “compromisso com eleições democráticas livres e justas na Venezuela”.

Esse alinhamento, no entanto, tem sido criticado por setores da burguesia brasileira muito dependentes das exportações para a China, como o agronegócio, e que também têm sido alvo do aumento de tarifas pela administração Trump. Eles consideram que “Brigar com a China é péssimo negócio para o Brasil”, como foi expresso pela comentarista econômica Miriam Leitão, que também criticou a possibilidade de o Brasil não adotar a rede 5G da Huawei, presente em 40% da infraestrutura de telecomunicação brasileira.

Os últimos dados da balança comercial brasileira reforçam essas queixas. Enquanto as exportações brasileiras para a China cresceram 14% este ano em comparação com o ano passado, com um superávit comercial de US$ 28 bilhões, as exportações brasileiras para os EUA caíram 31%, com um déficit comercial de US$ 3 bilhões.

Com o imperialismo americano aumentando sua agressividade na região para compensar seu declínio econômico de décadas, esses desenvolvimentos colocam enormes perigos para a classe trabalhadora e a juventude brasileira, com a possibilidade de a América Latina se tornar um campo de batalha de uma guerra regional ou mesmo mundial.

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