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Trabalhadores argentinos na encruzilhada

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Este documento foi publicado originalmente em sete partes, entre dezembro de 1988 e janeiro de 1989, no Bulletin, jornal da Workers League, a predecessora do Partido Socialista pela Igualdade (EUA) e então seção americana do Comitê Internacional da Quarta Internacional (CIQI).

No presente formato, ele foi publicado em 1989 na revista Fourth International Vol. 16 Nº 1-2, publicação internacional do CIQI.

O peronismo e o movimento operário

A história do peronismo está ligada à resposta da burguesia à crise do capitalismo e à ascensão da classe trabalhadora moderna argentina.

A crise capitalista mundial dos anos 1930 cortou os mercados de carne e grãos argentinos e levou a uma fuga de capital estrangeiro, forçando a burguesia argentina a embarcar em uma política de substituição de importações.

A rápida industrialização começou no início da década de 1930 e continuou durante a década seguinte. Entre 1933 e 1949, a força de trabalho industrial da Argentina cresceu 100%, transformando as relações sociais e levando a uma grande crise política. O número de trabalhadores sindicalizados havia subido para 350.000 em 1943, o ano em que um golpe de Estado levou os militares ao poder.

Juan Perón

O general Juan Perón desempenhou um papel fundamental no novo regime militar como secretário do Trabalho e do Bem-Estar Social. Nessa posição, ele ficou identificado com as reformas sociais implementadas para criar condições a um compromisso de classe com o poderoso movimento operário nascente. Elas incluíam a criação do salário mínimo, segurança no emprego, férias e descansos pagos, regulamentação do trabalho infantil, habitação pública e outras medidas.

Ao mesmo tempo, o regime levou a cabo uma série de estatizações (pagas com generosas indenizações) dos bancos, ferrovias e outras instalações antes pertencentes ao imperialismo britânico, que na época estava centralizando todo seu capital para a guerra e completando seu recuo, de forma ordeira, da posição de potência imperialista dominante na Argentina.

Internacionalmente, o regime manteve uma posição neutra, opondo-se a grandes setores da burguesia "democrática", apoiada pelo Partido Comunista stalinista e pelos social-democratas, que exigiam que o país se alinhasse ao imperialismo americano na guerra contra a Alemanha.

Baseando-se em tais políticas, o peronismo afirmou-se como defensor da "justiça social", da "soberania nacional" e da "independência econômica". Mas o peronismo era um movimento burguês e não proletário. Seus fundamentos foram, acima de tudo, a posição do capitalismo argentino durante a Segunda Guerra Mundial e no período imediatamente posterior. Impulsionado pelo aumento dos preços da carne e dos grãos e relativamente fortalecido pela devastação do capitalismo europeu na guerra, o capitalismo argentino conseguiu fazer concessões e cultivar uma nova aristocracia operária sob a forma da burocracia sindical, que se vinculou estreitamente ao Estado burguês.

A crise econômica atual não permite a nenhum partido burguês dar continuidade a essa política na Argentina. Não existem diferenças programáticas fundamentais entre o Partido Radical de Alfonsín e os peronistas. Além de suas débeis tentativas de reavivar a demagogia populista do peronismo, o candidato presidencial peronista Carlos Menem não tem nenhuma relação com as políticas nacionalistas anteriores possibilitadas por dias mais lucrativos do capitalismo argentino.

Menem já deixou claro que, se eleito, manterá fielmente a subordinação da Argentina ao imperialismo americano e mundial. Ele declarou que pretende pagar integralmente a dívida externa e impor a política econômica mais abertamente pró-capitalista. Em sua província, Riojo, ele já implementou incentivos fiscais, "zonas de livre comércio" e outras concessões para atrair exploradores capitalistas pela mão-de-obra mais barata do interior. Ele se propõe essencialmente a seguir esse mesmo programa reacionário em escala nacional, enquanto busca um "pacto social" entre o capital e a burocracia trabalhista.

A capacidade de um partido político burguês com origem nos militares de exercer uma influência tão prolongada sobre os sindicatos e amplas massas de trabalhadores deveu-se em grande medida à traição vergonhosa da luta contra o imperialismo levada a cabo pelos stalinistas. O Partido Comunista Argentino aliou-se abertamente ao embaixador americano Spruille Braden e aos setores mais direitistas da oligarquia contra Perón, alegando que este último era um nazista por não ter apoiado os EUA na guerra. Os stalinistas pintaram o imperialismo ianque como o aliado natural da Argentina e até mesmo seu "irmão mais velho". Mas o famoso slogan dos peronistas exigindo que as massas escolhessem entre "Braden ou Peron" recebeu um apoio popular muito mais amplo.

Nos anos seguintes do governo peronista, os salários reais dos trabalhadores argentinos aumentaram substancialmente, cerca de 80% entre 1943 e 1949 para várias categorias de trabalhadores. Os gastos com assistência social, moradia, educação e assistência médica também aumentaram acentuadamente. Mas, quando os lucros que a Argentina obteve com as exportações durante a guerra se esvaíram, a crise do peronismo agravou-se profundamente. Em 1949, a Argentina já estava inadimplente com os pagamentos estrangeiros e os níveis salariais começavam a cair mais uma vez.

O próprio Perón orientou-se cada vez mais a uma acomodação com o imperialismo americano, enquanto iniciava uma política de abertura para os investimentos multinacionais. Ao mesmo tempo, seu regime lançou uma série de ataques contra a classe trabalhadora, quebrando greves e exigindo um aumento na produtividade.

Entretanto, esse giro à direita provou-se insuficiente e o imperialismo americano e a burguesia nacional forçaram a derrubada de Perón através do golpe de 1955, uma ação que não enfrentou resistência nem de Perón nem da burocracia sindical. Ambos reconheceram que o capitalismo argentino demandava uma nova política. O golpe foi seguido de uma ofensiva contra a classe trabalhadora. Oficiais militares foram enviados para assumir o controle dos sindicatos e os níveis salariais e as condições sociais foram afundados.

A partir de 1955, a classe dominante argentina enfrentou uma crise política contínua. Nem um único governo subsequente completaria seu mandato. O capitalismo argentino foi confrontado por uma vigorosa classe trabalhadora jovem, fortalecida pelo crescimento das indústrias automobilística, siderúrgica e petroquímica recentemente desenvolvidas, e determinada a resistir firmemente às exigências impostas pelo mercado capitalista mundial de aumento da produtividade e redução drástica dos níveis de vida. O resultado foi uma escalada da luta de classes e da violência estatal.

Essas crescentes tensões de classe provocaram também uma crise crescente do peronismo. Um movimento de rompimento com essa direção burguesa estourou nos sindicatos com a luta contra a ditadura militar do general Ongania, que chegou ao poder com o golpe de 1966. Uma grande parte da burocracia sindical peronista havia apoiado a ditadura porque lhe foi prometido um papel nos planos corporativistas para o desenvolvimento econômico nacional. Esses mesmos planos, no entanto, baseavam-se no impulso para reduzir os custos trabalhistas a fim de estimular o investimento capitalista. Augusto Vandor, o burocrata chefe da CGT que disputou com Perón pela direção do movimento peronista nos anos 1960, foi ele mesmo cúmplice dos militares no golpe de 1966.

A junta desencadeou uma repressão brutal contra a classe trabalhadora. Isto se reflete nas estatísticas de greve daquele período. O número de dias parados caiu de 1.003.710, em 1966, para apenas 2.702, em 1967. A luta por salários inevitavelmente se combinou à luta contra a ditadura e a rígida dominação da burocracia sindical peronista.

Uma corrente conhecida como clasismo, ou sindicalismo de luta de classes, começou a tomar conta dos centros de maior concentração proletária, como a indústria automobilística sediada em Córdoba, que era dominada por enormes complexos industriais de propriedade de multinacionais como Fiat, Ford, Kaiser, IKA e outras. Em 1969, a indústria automobilística empregava mais de 11% dos trabalhadores industriais argentinos.

Nesse mesmo ano, ocorreu a revolta de massas conhecida como Cordobazo, que mudou a cara da história do país. Os trabalhadores da indústria automobilística lideraram a rebelião generalizada de trabalhadores e estudantes.

Quando a direção peronista da CGT convocou uma greve geral, os sindicatos de Córdoba saíram na frente. Trabalhadores e estudantes tomaram as ruas e expulsaram a polícia da cidade em batalhas colossais. Mesmo depois da chegada do exército, os combates continuaram por dias nos bairros da classe trabalhadora onde comitês independentes haviam sido estabelecidos no decorrer da luta.

O Cordobazo foi um golpe fulminante na ditadura do general Ongania. Mas esse movimento dos trabalhadores de Córdoba e da Argentina como um todo não foi apenas uma revolta contra as políticas de fome do regime militar, mas também contra as tentativas dos peronistas de subordinar o movimento operário aos interesses da classe dominante capitalista. A burguesia argentina voltou-se mais uma vez para Perón.

Por quase 18 anos, a vida política do movimento peronista havia girado em torno da demanda pelo retorno do Perón, que fora exilado após o golpe de 1955. Perón foi finalmente trazido de volta em junho de 1973 a mando da burguesia argentina, do exército e da burocracia sindical. Sob condições de intensa crise e lutas massivas da classe trabalhadora, todos eles viram o ex-general de 77 anos como sua última esperança para desviar a classe trabalhadora do caminho da revolução socialista.

A chegada do Perón desencadeou uma guerra civil sangrenta entre a burocracia sindical reacionária, de um lado, e as forças do nacionalismo e radicalismo pequeno-burguês, de outro, que haviam coexistido sob o guarda-chuva populista do peronismo. Mesmo enquanto os seguidores de Perón aguardavam seu desembarque no aeroporto de Ezeiza, os capangas da burocracia sindical massacravam os peronistas de esquerda, matando dezenas de pessoas.

Notavelmente, a candidatura presidencial de Carlos Menem no partido peronista uniu esses dois velhos inimigos. Os antigos guerrilheiros montoneros uniram forças com seus pretensos assassinos, os homens de Lorenzo Miguel, o líder corporativista do Sindicato dos Metalúrgicos que desempenhou um papel dirigente nos esquadrões da morte anticomunistas que circulavam pelo país nos anos que antecederam o golpe de 1976. Nada poderia expressar de forma mais clara a falência do chamado peronismo revolucionário e do radicalismo e nacionalismo pequeno-burguês em geral.

Após retornar em 1973, Perón abandonou a velha retórica de "justiça social" e luta do "povo" contra a "oligarquia". Em vez disso, ele se apresentou como o salvador de todas as classes e, de fato, do "sistema". Explicando o propósito de seu regime, em novembro de 1973, Perón declarou: "O que buscamos despertar é o desejo de que sejamos todos amigos e sentemos juntos para discutir os problemas, e que, em meio a esses problemas, tenhamos consciência que nos defendermos é defender o sistema".

Para salvar o "sistema", Perón propôs fortalecer o domínio da burocracia sindical, que assumiu o controle sobre o Ministério do Trabalho e foi diretamente integrada ao aparato estatal.

José Lopez Rega, ministro da previdência social e secretário particular de Perón, veio a ocupar o cargo mais importante do regime peronista. Um ex-policial de baixa patente, ele vinculou-se a Isabel Martinez, a terceira esposa de Perón, e rapidamente entrou no círculo próximo de Perón. Tendo cumprido um papel fundamental na organização do massacre no aeroporto de Ezeiza e na direção dos esquadrões de morte do Triplo A (Aliança Anticomunista Argentina), foi apontado por diversas fontes como um agente da CIA americana. Foi reportado que ele, após consultar astrólogos, disse ter tido uma visão futura do mundo sendo dominado por um eixo Buenos Aires–Brasília–Lima. Lopez Rega ganhou ainda mais destaque após a morte de Perón, em julho de 1974, quando a esposa de Perón, Isabel, assumiu como presidente de fachada.

Embora amplas camadas da classe trabalhadora argentina tivessem alimentado a esperança de que o retorno de Perón significaria o fim da repressão e da miséria que vieram após seu último governo, estas ilusões logo se desmancharam. Os trabalhadores entraram em lutas colossais que os levaram não apenas a um confronto direto com o governo, mas na prática a uma guerra civil com a burocracia sindical peronista.

Apoiada pelo governo e desfrutando da plena assistência da frente trabalhista da CIA, o Instituto Americano para o Desenvolvimento Livre do Trabalho (AIFLD), a burocracia peronista defendeu seu domínio sobre os sindicatos e seu apoio corporativista ao governo com o método das armas e do porrete. Em nenhum outro episódio isso foi tão claro como na repressão selvagem da oposição sindical na cidade industrial de Villa Constitucion em 1974.

Os burocratas sindicais peronistas de direita e seus bate-paus contratados tornaram-se o pilar dos esquadrões da morte do Triplo A, que ceifou a vida de milhares de trabalhadores combativos e de esquerda no período que precedeu o golpe militar de 1976.

No entanto, em diversas ocasiões, a classe trabalhadora foi capaz de superar a repressão do governo e da burocracia. Entre junho e julho de 1975, realizou um grande movimento de greve geral contra o governo controlado por Lopez Rega e o plano de austeridade do novo ministro da Economia, Celestino Rodrigo. Esse plano foi um precursor dos pacotes de austeridade no estilo do FMI dos dias de hoje, impondo aumentos dramáticos dos preços e congelamento salarial, e abrindo a economia para as multinacionais. As greves forçaram o governo a cancelar o plano, demitir Rodrigo e mandar Lopez Rega ao exílio. Isso, a primeira greve geral dos trabalhadores argentinos contra um governo peronista, teve profundas implicações revolucionárias.

No início de 1976, o novo ministro da economia, Mondelli, apresentou um novo plano de austeridade que provocou uma onda de greves e manifestações que mais uma vez atropelou a burocracia sindical peronista. Começaram a ser formados conselhos operários independentes, que conectavam comitês de fábrica de diferentes zonas industriais.

Esses eventos significavam que a classe trabalhadora rompia com o peronismo após ter passado pela experiência do retorno de Perón e o rumo direitista de seu regime. Essa era a essência política da crise revolucionária na Argentina. As velhas formas do controle político da burguesia sobre a classe trabalhadora, o peronismo, estavam se rompendo. Foi isso, e não a corrupção do regime peronista ou a suposta ameaça da guerrilha, que levou os militares à ação. O Estado-maior das forças armadas, mais uma vez, tornou-se o último recurso da burguesia argentina. Tragicamente, a classe trabalhadora não possuía o seu próprio Estado-maior revolucionário.

Justamente nesse momento, as forças radicais pequeno-burguesas que afirmavam representar o socialismo e até mesmo o "trotskismo" na Argentina se dividiram em duas facções, ambas trabalhando para paralisar a luta revolucionária da classe trabalhadora. Uma havia abandonado a luta pela construção de um partido proletário independente a fim de se engajar no guerrilheirismo pequeno-burguês. O aventureirismo de classe média desta tendência serviu apenas para desorientar a classe trabalhadora, ao mesmo tempo que deu ao regime o pretexto para reprimir os trabalhadores. A outra facção defendia o Estado burguês, apoiando a "institucionalização" e declarando sua lealdade ao regime "democrático" corrupto e moribundo de Isabel Martinez e Lopez Rega.

Juntas, elas deram aos políticos peronistas e aos burocratas sindicais a oportunidade de sabotar a luta revolucionária e entregar a classe trabalhadora aos fascistas carniceiros do exército argentino.

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