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Militares tomam o poder em Mianmar

Publicado originalmente em 1º de fevereiro de 2021

Os militares de Mianmar, também conhecidos como Tatmadaw, tomaram o controle do país em um golpe no dia 31 de janeiro e prenderam os principais líderes da Liga Nacional para a Democracia (LND) que estavam no poder, incluindo Aung San Suu Kyi. Foi declarado estado de emergência por um ano, atribuindo amplos poderes às forças armadas. O general Min Aung Hlaing, comandante das Forças Armadas, assumiu o poder.

Os militares assumiram o controle da imprensa e das telecomunicações. Notícias do centro comercial de Yangon e de outras cidades indicam que foram cortados os serviços de quatro empresas de telecomunicações do país, assim como alguns serviços de internet. As transmissões de TV ficaram restritas ao canal militar Myawaddy. Tropas e veículos blindados já estavam nas ruas.

A líder de Mianmar, Aung San Suu Kyi, discursa no Tribunal Internacional de Justiça em Haia, Holanda, em 11 de dezembro de 2019. (Foto: Peter Dejong/AP)

O pretexto para o golpe foram supostas irregularidades nas eleições nacionais de 8 de novembro, nas quais a LND obteve 83% dos votos e 396 do total de 476 assentos na câmara dos deputados e no senado do parlamento. O Partido da Solidariedade e Desenvolvimento da União, apoiado pelos militares, ganhou apenas 33 cadeiras. A posse do novo parlamento teria sido realizada no dia 31.

Os militares se recusavam a reconhecer o resultado da eleição e, em meados de janeiro, alegaram que houve mais de 90.000 casos de fraude eleitoral. Nenhuma prova foi apresentada publicamente. Na semana passada, o porta-voz militar, general Zaw Min Tun, ameaçou um golpe caso as alegações de fraude não fossem atendidas. No dia 28 de janeiro, a comissão eleitoral rejeitou alegações de irregularidades, que também foram amplamente rejeitadas por observadores internacionais.

No dia 29 de janeiro, os EUA e seus aliados, incluindo a Grã-Bretanha, Austrália e Nova Zelândia, emitiram uma declaração que advertia os militares de Mianmar contra o golpe de Estado. Ao responder no sábado, o comandante Min Aung Hlaing não negou que o Exército estava planejando um golpe, mas declarou que cumpriria com a constituição.

Um porta-voz militar insistiu, no dia 31, que havia “enormes discrepâncias” e uma “fraude terrível” nos resultados eleitorais, que a comissão eleitoral do país “não conseguiu resolver”. Os militares invocaram o artigo 417 da Constituição, que permite o decreto de estado de emergência em condições que ameacem “desintegrar a união ou desintegrar a solidariedade nacional”. Declarou que novas eleições seriam realizadas, mas sem apresentar qualquer cronograma.

A junta militar anterior havia redigido a constituição de 2008 de maneira que continuasse exercendo um significativo controle do poder. Um quarto dos assentos em ambas as câmaras parlamentares é reservado para candidatos nomeados pelos militares, garantindo a eles a possibilidade de bloquear qualquer emenda constitucional. Os militares também permanecem no controle de ministérios poderosos, incluindo Defesa e assuntos internos, sendo assim dispensados de qualquer supervisão civil.

Suu Kyi, libertada da prisão domiciliar em 2010, e sua LND concordaram com essa farsa democrática, que foi parte de um afastamento dos militares em relação à China e uma aproximação com os EUA. A LND representa setores da classe dominante do país que consideram o domínio militar uma barreira aos seus interesses comerciais. Eles se orientaram para o Ocidente em busca de apoio. Para o governo Obama, a virada de Mianmar em direção a Washington foi considerada um dos sucessos de seu agressivo “pivô para a Ásia” contra a China. Washington pôs fim ao status de pária de Mianmar, retirou as sanções econômicas e proclamou que Mianmar era uma “democracia em desenvolvimento”.

A LND ganhou as eleições de 2016 e formou um governo. Suu Kyi, o suposto “ícone da democracia”, tornou-se embaixadora itinerante daquilo que, na verdade, era um regime apoiado pelos militares, buscando investimentos estrangeiros e defendendo os militares contra as graves acusações de violação aos direitos humanos enquanto conduzia operações assassinas contra a minoria muçulmana rohingya, que levaram centenas de milhares de pessoas a fugir do país.

A decisão dos militares de retomar o controle total do país é, sem dúvida, condicionada em parte pelo giro para formas de governo autoritárias e fascistas que ocorre internacionalmente em meio ao aprofundamento da crise do capitalismo desencadeado pela pandemia de COVID-19 – especialmente nos Estados Unidos. É significativo que os militares de Mianmar tenham seguido o manual de Trump, que tentou dar um golpe fascista invadindo o Capitólio em 6 de janeiro com base em mentiras sobre “eleição roubada” e fraude eleitoral.

Mianmar enfrenta um agravamento da crise econômica e social como consequência de um aumento nos casos de COVID-19 desde meados de agosto. Entre o final de março e o início de agosto, Mianmar registrou apenas 360 casos e seis mortes. No entanto, esses números aumentaram drasticamente para o patamar atual de 140.000 casos e mais de 3.000 mortes, colocando uma enorme pressão sobre o limitado sistema de saúde do país. O crescimento econômico do ano fiscal de 2019-20 (começando em 1º de outubro) foi projetado em 3,2%, uma queda acentuada em relação aos 6,8% no ano anterior. O crescimento para 2020–21 deve ser de apenas 0,5%.

Os lockdowns contribuíram para uma grande perda de empregos e um aumento dramático da pobreza. Uma pesquisa do Instituto Internacional de Pesquisa sobre Políticas Alimentares, de setembro do ano passado, constatou que 59% das 1.000 famílias pesquisadas na zona urbana de Yangon e 66% das 1.000 famílias pesquisadas na zona rural seca do país ganhavam menos de US$ 1,90 por dia – valor que é correntemente usado como referência de pobreza extrema. Numa pesquisa semelhante realizada em janeiro de 2020, apenas 16% dos entrevistados estavam em extrema pobreza.

“Esse nível de pobreza implica enormes riscos de insegurança alimentar e desnutrição”, comentou Derek Headey, principal autor do estudo. “Embora necessários para o controle do vírus, os períodos de lockdown provocaram impactos desastrosos na pobreza e precisam ser acompanhados por maiores e mais bem direcionadas transferências de renda, para que Mianmar consiga conter a destruição econômica da segunda onda da COVID-19.” Desde aquela pesquisa de setembro, a situação dos pobres urbanos e rurais sem dúvida piorou, alimentando fortes tensões sociais.

Em comentários à imprensa sobre o golpe, o historiador de Mianmar Thant Myint-U alertou: “As portas se abriram para um futuro diferente, quase certamente mais sombrio. Mianmar é um país que já está em guerra consigo mesmo, inundado de armas, com milhões que mal conseguem se alimentar, profundamente dividido entre religiões e etnias... Não tenho certeza se alguém será capaz de controlar o que vem a seguir”.

O novo governo Biden já havia sinalizado uma linha dura em relação a Mianmar. Durante sua audiência de confirmação no Congresso, o novo secretário de Estado, Antony Blinken, disse que supervisionaria uma revisão entre as agências para determinar se as atrocidades de Mianmar contra os rohingya constituíam genocídio. Já estão sendo realizadas audiências na Corte Internacional de Justiça em Haia, iniciadas no ano passado, contra os principais generais de Mianmar, incluindo Min Aung Hlaing, por suas violações aos direitos humanos.

Em resposta ao golpe de ontem, Biden ameaçou reimpor sanções a Mianmar. “Os Estados Unidos retiraram as sanções à Birmânia na última década com base no progresso rumo à democracia”, disse ele, invocando o antigo nome de Mianmar. “A reversão desse progresso exigirá uma revisão imediata de nossas leis e órgãos de sanção, seguida da ação apropriada.”

Assim como Obama, Biden não é motivado por nenhum interesse genuíno na defesa dos direitos humanos. Muito pelo contrário, os EUA são movidos por uma renovada preocupação com o crescimento da influência chinesa. O fracasso de Mianmar na atração de investimentos estrangeiros significativos, somado às crescentes críticas internacionais pelo tratamento dado aos rohingya, obrigaram Suu Kyi, seu governo e os militares a recorrerem cada vez mais a Pequim, para obter auxílio financeiro e diplomático.

A dependência de Mianmar em relação a Pequim se aprofundou com o início da pandemia de COVID-19, inclusive com o fornecimento gratuito de vacinas desenvolvidas na China. O ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, visitou Mianmar no mês passado para discutir uma colaboração mais estreita em sua nova Rota da Seda (Belt and Road Iniciative), que inclui rotas estratégicas de transporte e oleodutos através de Mianmar até o sul da China. Para Pequim, é vital ter uma alternativa às vias marítimas que são controladas pelos Estados Unidos no Estreito de Malaca, e assim garantir o fornecimento de energia e matérias-primas, visto que as tensões com Washington continuam a aumentar.

A resposta da China ao golpe foi decididamente discreta. O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Wang Wenbin, disse apenas: “Esperamos que todos os lados em Mianmar possam lidar adequadamente com suas diferenças sob a constituição e a estrutura legal e salvaguardar a estabilidade política e social.”

A perspectiva de uma nova ofensiva dos “direitos humanos” e de sanções econômicas do imperialismo americano e seus aliados pode ter sido um fator significativo para a tomada do poder pelos militares de Mianmar, que preferiam não contar com o apoio potencialmente não confiável de Suu Kyi e da LND. Suu Kyi agora está realizando um chamado para que haja protestos contra o golpe. Apesar de sua imagem como símbolo da democracia ser muito manchada, ela sem dúvida recorrerá a Washington para obter apoio.

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