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Estados sul-americanos militarizam fronteiras contra refugiados

Publicado originalmente em 24 de fevereiro de 2021

“O mundo capitalista decadente está superpovoado. (...) Em uma era de aviação, telégrafo, telefone, rádio e televisão, passaportes e vistos paralisam os deslocamentos de um país a outro. (...) Em meio a vastas extensões de terra e maravilhas da tecnologia, que além da terra conquistou os céus para o homem, a burguesia conseguiu converter nosso planeta em uma prisão suja.” (“Manifesto da Quarta Internacional sobre a guerra imperialista e a revolução proletária mundial”, adotado por sua Conferência de Emergência, realizada de 19 a 26 de maio de 1940).

A conferência de emergência da Quarta Internacional, realizada no meio da Segunda Guerra Mundial, apresentou uma denúncia profunda da principal causa da guerra – a propriedade privada dos meios de produção, assim como o sistema capitalista de Estado-nação que se sustenta sobre essa base.

Essa denúncia se aplica com força ainda maior hoje na América Latina, em que uma nação após a outra busca alinhar-se cada vez mais estreitamente com o imperialismo dos EUA enquanto Washington prepara sua próxima agressão militar contra a Venezuela em sua tentativa de suprimir a influência russa e chinesa no hemisfério.

À medida que aumentam os antagonismos interimperialistas, a burguesia historicamente vendida e reacionária da América Latina fecha suas fronteiras a milhões de venezuelanos que estão fugindo de desastres econômicos, sociais e de saúde causados por décadas de desestabilização ininterrupta, tentativas de golpe e pilhagem.

Refugiados haitianos expulsos à força do Peru, na fronteira com o Brasil. (Crédito: imagem de divulgação)

Os regimes pró-imperialistas de direita no Brasil, Chile, Colômbia, Equador e Peru estão usando a explosão da migração regional como justificativa para militarizar suas fronteiras e estimulando, no processo, um sentimento xenófobo anti-imigrante.

Milhares de soldados, apoiados por tanques e veículos blindados, foram enviados para reforçar o efetivo de segurança em travessias irregulares da fronteira. Promessas anteriores feitas aos venezuelanos desalojados provaram ser uma farsa cruel. A verdade é que os governos ultradireitistas só se preocuparam em usar a profunda crise enfrentada pelos migrantes carentes para obter vantagens políticas.

Hoje, forças militares monitoram as travessias entre Brasil e Venezuela, de um lado, e Colômbia, do outro. A Colômbia enviou 600 policiais nacionais e militares para monitorar a fronteira. O governo de direita do presidente Iván Duque lançou a “Operação Muralha” no ano passado para controlar sua fronteira com a Venezuela.

Mais forças foram enviadas para as fronteiras Colômbia-Equador, Equador-Peru, assim como as fronteiras Peru-Brasil e Chile-Bolívia.

Como resultado, mais de 500 pessoas em deslocamento, principalmente do Haiti, permaneceram presas na fronteira amazônica entre o Peru e o Brasil nas últimas duas semanas. Os refugiados, que tentam sair do Brasil pela “Ponte Internacional da Amizade” que liga os dois países, são impedidos de entrar pelas Forças Armadas do Peru, mobilizadas para reforçar a polícia. Na última terça-feira, as forças de segurança atacaram os homens, mulheres e crianças indefesos com gás lacrimogêneo e repressão. Na quinta-feira, o Brasil respondeu enviando forças militares para assumir o controle da fronteira por 60 dias.

Isso acontece na sequência de um incidente ocorrido no final de janeiro, quando tropas peruanas abriram fogo contra venezuelanos refugiados que saíam do Equador e entravam na região de Tumbes. Cerca de 500 cidadãos, em sua maioria venezuelanos, foram presos em diferentes pontos da região de Tumbes. Em meados de janeiro, o governo peruano mobilizou 1.200 soldados, tanques e veículos blindados, além da Polícia Nacional, para controlar as mais de 30 travessias irregulares entre Equador e Peru. O governo equatoriano retribuiu. Em 27 de janeiro, as Forças Armadas do Equador mobilizaram 200 soldados e 20 veículos táticos Hummer na fronteira com o Peru, no distrito de El Oro.

“Quem entra no país com passe irregular está sendo colocado no mesmo nível de quem comete um crime. Cruzar a fronteira com um passe irregular não é considerado crime na lei de migração do Peru”, disse Marta Castro, coordenadora de pesquisas de direitos humanos no Peru.

Mas é exatamente esse o objetivo. Isso tem sido facilitado pelos grandes meios de comunicação locais com relatos inflados e falaciosos de supostas ondas de crimes de migrantes que fomentaram ataques e pogroms mais frequentes contra venezuelanos e outros refugiados. Eles estão cultivando os sentimentos mais baixos do chauvinismo nacional e da xenofobia, desumanizando os setores mais pobres e vulneráveis da classe trabalhadora e das massas oprimidas.

O ministro do Interior do Chile, Rodrigo Delgado, expôs melhor o conceito ao revelar que o decreto que estende o uso dos militares também dá às autoridades “ferramentas em termos de expulsão imediata” de refugiados. Ele continuou: “Hoje, cruzar a fronteira não é caracterizado como um crime, mas com a nova lei é caracterizado como um crime”. Esta resposta não é apenas para o seu país, mas para toda a região sul-americana.

A morte do boliviano Jaime Veizaga Sánchez, de 23 anos, pelas mãos dos Carabineros, polícia paramilitar chilena, em 9 de fevereiro, deve ser vista neste contexto. Os policiais, com um veículo, abandonaram o homem quase inconsciente ao lado do Serviço Médico Legal (necrotério legal) na cidade mineradora de Calama. Ele havia chegado ao país apenas sete dias antes.

Na semana passada, cerca de 100 migrantes foram expulsos de Iquique, no norte do Chile. Embora um Tribunal de Apelações tenha anulado a ordem de expulsão, argumentando que os refugiados não tiveram o devido processo legal, a maioria já está na Venezuela.

“A ordem de expulsão foi emitida enquanto eles estavam na residência sanitária, foram avisados às duas da manhã e a expulsão foi feita 24 horas depois, mas nunca saíram deste local onde não tinham possibilidade de organizar uma defesa”, explicou o advogado que representa os refugiados.

O êxodo venezuelano

Cerca de 4,6 milhões dos 5,4 milhões de venezuelanos que fugiram das devastações de um ataque imperialista sem fim e do fracasso abjeto da nacionalista burguesa “Revolução Bolivariana” buscaram refúgio nos países vizinhos, apenas para sofrer mais dificuldades.

Em 2018, o bilionário e ultradireitista Sebastián Piñera, presidente do Chile, e o fascistoide Jair Bolsonaro, presidente brasileiro, redigiram projetos de lei que limitavam a entrada de refugiados, tornando obrigatória a apresentação de documentação certificada. Todos os outros governos seguiram o exemplo. O relator especial das Nações Unidas para os direitos dos migrantes, Felipe González, criticou as medidas cada vez mais restritivas.

“A experiência comparativa, mesmo na América Latina, mostra que o uso das Forças Armadas em questões migratórias produz graves violações dos direitos humanos das pessoas em deslocamento e de nenhuma maneira resolve o problema, mas sim o aumenta”, tuitou González.

“Diante dessa mudança radical nas medidas de política migratória, as organizações internacionais alertaram que haveria um aumento significativo das entradas irregulares e do tráfico de pessoas, com o consequente risco para as pessoas em deslocamento”, acrescentou.

Um ponto de inflexão na migração em massa de venezuelanos foi atingido em 2019 quando Washington e Bruxelas começaram a escalar drasticamente seus ataques ao governo do presidente Nicolás Maduro com sanções e embargos, apoiados pelo chamado Grupo de Lima (formado por Canadá e 13 países latino-americanos que seguem as ordens dos EUA contra a Venezuela).

As condições para refugiados que residem em países latino-americanos só pioraram durante a pandemia, pois milhões foram despedidos, despejados e desabrigados. Um estudo divulgado na semana passada revelou que dois em cada cinco venezuelanos que residem em países latino-americanos foram despejados durante a pandemia. A pesquisa da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e agências da ONU mostrou que 11% de todos os despejos de locatários resultaram em desabrigados, enquanto três em cada quatro venezuelanos não tiveram para onde ir depois de ser despejados.

Com muita arrogância, o governo colombiano anunciou um Status de Proteção Temporária para migrantes venezuelanos, que identificará, registrará e documentará formalmente 1,7 milhão de refugiados e migrantes na Colômbia, aparentemente para garantir proteção aos estrangeiros. A medida não fará nada para protegê-los da exploração, mas vai reabastecer os cofres do governo com mais ajuda externa.

Em outro relatório, a Agência da ONU para Refugiados, ACNUR, alertou na semana passada que apenas 2% dos 1,7 milhão de migrantes venezuelanos na Colômbia podem cobrir suas necessidades básicas. Oitenta e quatro por cento não conseguem obter comida, alojamento ou roupas. Três quartos desses são considerados refugiados “irregulares” ou sem documentos.

Embora os governos do Grupo de Lima afirmem que o objetivo da militarização das fronteiras é mitigar a propagação do coronavírus, a realidade é que o reforço da segurança antecedeu 2020 e tem mais a ver com uma demonstração de fidelidade aos planos dos EUA. Isso se concretiza com as Forças Armadas recebendo milhões de dólares e empregando dezenas de milhares de seus soldados em operações de controle de fronteira que aparentemente servem como uma extensão da “guerra às drogas” dos Estados Unidos em todo o continente. Nos últimos dois anos, as forças armadas latino-americanas implantaram um arsenal cada vez mais sofisticado para interceptar o “crime organizado transnacional” nas áreas de fronteira.

A pandemia do coronavírus devastou as nações sul-americanas não por causa da migração, mas precisamente porque todo governo de direita impôs políticas criminosamente imprudentes de “imunidade de rebanho” que priorizam o lucro em detrimento da saúde e da vida das massas. Os setores não essenciais orientados para a exportação, essenciais para os interesses do lucro, permaneceram em operação ao longo de 2020.

Agora, cada governo está ampliando o uso de suas forças armadas para controlar o chamado “contrabando ilegal de migrantes e tráfico de pessoas”. Entre as medidas aprovadas, há um plano que permite às forças policiais colombianas, peruanas, bolivianas, equatorianas e chilenas coordenar as operações transnacionais. Os perigos de medidas como essa estão gravados na história do século XX da América Latina, onde os serviços de inteligência das ditaduras militares das décadas de 1970 e 1980 se uniram para caçar e assassinar seus oponentes políticos durante a Operação Condor, apoiada pela CIA.

O destino das massas venezuelanas evidencia o anacronismo e a falência do sistema capitalista dos atuais Estados nacionais na América Latina. Em sua conferência de 1940, a Quarta Internacional apontou o caminho para sair deste beco sem saída, defendendo a palavra de ordem dos Estados Unidos Soviéticos da América do Sul e Central e apelando para que o proletariado dirigisse a luta para libertar as massas do jugo do imperialismo mundial como parte da luta pela revolução socialista mundial.

“Não é a atrasada burguesia sul-americana, agência absolutamente vendida do imperialismo estrangeiro, que será chamada a resolver esta tarefa, mas sim o jovem proletariado sul-americano, o líder eleito das massas oprimidas”, declarava.

Hoje, após 80 anos de dominação do continente por uma sucessão de regimes nacionalistas burgueses, militar-fascistas e da burguesia compradora pró-imperialista, essa afirmação é mais verdadeira do que nunca. A classe trabalhadora latino-americana deve tirar as conclusões necessárias, unindo-se aos trabalhadores de todo o continente, dos Estados Unidos e de todo o mundo em uma luta comum para pôr fim ao capitalismo. Essa é a perspectiva da revolução permanente, defendida hoje apenas pelo Comitê Internacional da Quarta Internacional.

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