Português

Vinte e dois milhões caíram na pobreza na América Latina em 2020, segundo a ONU

Em seu relatório Panorama Social 2020 divulgado no dia 4 de março, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) registra a devastação social “sem precedentes” durante a pandemia de COVID-19, que desencadeou a pior crise econômica da história da região.

Após anos de crescimento econômico insignificante desde o fim do boom das commodities em 2014, a região viu seu PIB cair 7,7% no ano passado. Isso é muito pior do que a queda de 5% em 1930, no auge da Grande Depressão, ou a queda de 4,9% em 1914, no início da Primeira Guerra Mundial.

Um pesquisador do laboratório de virologia do Instituto de Medicina Tropical da USP trabalha para desenvolver um teste que detectará a variante P.1 do novo coronavírus, em São Paulo, quinta-feira, 4 de março de 2021. (Foto: Andre Penner/AP)

Com 8,4% da população mundial, a região é responsável por 27,8% das mortes confirmadas de COVID-19 no mundo. Brasil e México têm o segundo e o terceiro maiores índices de mortalidade do mundo, enquanto Colômbia, Argentina e Peru estão entre os 15 primeiros.

O vírus devastou sociedades moldadas pela opressão imperialista e os níveis mais altos de desigualdade social – seus sistemas de saúde estavam sobrecarregados mesmo antes do início da pandemia. A maioria dos trabalhadores da região sobrevive no setor informal, enquanto os tesouros públicos são saqueados há décadas em cortes de gastos sociais e pagamentos a abutres de Wall Street. Com a disseminação da COVID-19, as corporações transnacionais se opuseram duramente a qualquer paralisação prolongada que afetasse suas fábricas, plantações, bancos e redes de lojas.

A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) relatou em seu último relatório, referente a 2019, que 47,7 milhões de pessoas estavam passando fome na América Latina e no Caribe, 9 milhões a mais do que em 2015. Concluiu que, considerando a tendência daquele momento, esse número aumentaria em mais 20 milhões na década seguinte. A agência alertou, no entanto, que a pandemia faria com que o pico ultrapassasse suas projeções e pediu “medidas extraordinárias” contra uma catástrofe social iminente.

Evidentemente, nenhuma dessas medidas foi tomada. Segundo a CEPAL, 22 milhões ficaram abaixo da linha da pobreza em 2020, atingindo um total de 209 milhões, ou mais de um terço da população da região. Setenta e oito milhões ou 12,5% foram classificados como em extrema pobreza, o maior índice em duas décadas.

Quem no início do ano já era mais pobre teve maior queda na renda. No entanto, toda a classe trabalhadora e os pobres rurais viram suas rendas caírem a níveis desesperadores. O relatório constatou que a renda da quinta parcela mais pobre da população caiu em média 42%, enquanto a da quinta parcela mais rica caiu 7%.

Oito em cada dez latino-americanos se enquadram na categoria do que a CEPAL chama de “vulnerabilidade econômica”, ganhando menos de três salários mínimos.

O desemprego aumentou de 8,1% para 10,7%. Isso não inclui o grande número de pessoas em idade produtiva que pararam de procurar emprego, que chegaram a 10,3% da força de trabalho na Argentina, 10,8% no Chile, 12,8% no México e 26,7% no Peru.

Embora tenham variado significativamente entre os países, as políticas para reduzir o impacto social da crise foram terríveis em toda a América Latina.

A CEPAL constatou que, em 2020, a assistência social na forma de transferência de renda ou alimentos básicos beneficiou 326 milhões de pessoas ou quase a metade da população. Entre março e dezembro, no entanto, nenhum governo forneceu uma transferência mensal média maior do que a linha da pobreza. E apenas no Brasil, Chile, Panamá e República Dominicana essa assistência estava acima da linha de extrema pobreza.

A conclusão inevitável é que essas medidas foram planejadas para deixar os trabalhadores e suas famílias famintos, para que aceitassem a suspensão dos já limitados bloqueios implementados em meados de 2020 e um imprudente retorno ao trabalho.

Embora os dados apresentados sejam uma acusação criminal contra as classes dominantes nativas e o imperialismo, a CEPAL limita-se a apelos morais e uma submissão ao imperativo capitalista de reabrir empresas e escolas.

A secretária executiva da CEPAL, Alicia Bárcena, pediu às elites dominantes da região que construíssem um novo estado de bem-estar baseado na “igualdade e sustentabilidade”, começando com uma renda básica universal emergencial. Na apresentação do relatório, um representante da UNICEF apontou as enormes disparidades no acesso aos recursos online, mas em vez de exigir um investimento maciço em computadores, acesso à Internet, formação e contratação de professores e especialistas, apelou à reabertura das escolas.

O que realmente emerge do relatório é a necessidade urgente de um ataque frontal às fortunas maciças e à exploração brutal das corporações em toda a região, para conter a pandemia e atender às necessidades básicas.

Isso fica claro em São Paulo, cujos 33 bilionários em dólares e 106.333 milionários fazem dela a região metropolitana mais desigual da região, e também a mais atingida pela COVID-19. Ao mesmo tempo, viu o despejo de milhares de famílias em meio à pandemia devastadora. Uma mulher incapaz de pagar seu aluguel de US$ 120 disse à AP depois de ser ameaçada de despejo pela polícia: “Para o governo, pessoas como nós são apenas pó”. Agora, as autoridades e os sindicatos estão prosseguindo com a reabertura de escolas para que os pais dos alunos possam gerar lucros em locais de trabalho não essenciais e inseguros.

Na América Latina e no Caribe, de acordo com a empresa Wealth X, havia 8.260 indivíduos com mais de US$ 30 milhões em ativos, com um patrimônio total de US$ 1,13 trilhão. Essa quantia enorme provavelmente é uma subestimação, dado o uso crescente de paraísos fiscais pela elite local. Na última década, por exemplo, os investimentos colombianos na Suíça aumentaram 697%.

Os atuais níveis de desigualdade e o domínio de Wall Street sobre a vida econômica são resultado de uma virada profunda à direita de toda a burguesia latino-americana em resposta à globalização, à dissolução da URSS e ao aprofundamento da crise do capitalismo global. Esse processo se reflete em todas as partes do mundo.

Essa mudança se refletiu na própria CEPAL, que manteve sua sede em Santiago, Chile, após o golpe apoiado pelos Estados Unidos em 1973, adaptando-se à ditadura militar-fascista de Pinochet mesmo após a morte de quatro de seus associados. Depois de ter promovido tradicionalmente reformas sociais dirigidas pelo Estado e a industrialização por substituição de importações em economias atrasadas, o então chefe da CEPAL, Enrique Iglesias, aplaudiria as “conquistas inegáveis” das privatizações de “terapia de choque” de Pinochet, alegando que esses supostos avanços foram consolidados pelos governos subsequentes.

Nas últimas duas décadas, as forças nacionalistas burguesas da chamada “maré rosa” lideradas por Hugo Chávez na Venezuela implementaram nacionalizações parciais e aumentos limitados nos gastos sociais, para logo voltar a adotar políticas baseadas na austeridade social, uma vez que os preços das commodities caíram.

Nos últimos anos, milhões em toda a região tomaram as ruas e realizaram greves em massa para derrubar os níveis alarmantes de desigualdade social.

Manifestações lideradas por estudantes na Nicarágua, desencadeadas por um corte de aposentadoria ditado pelo FMI, foram esmagadas pela polícia e forças paramilitares, que usaram munição real contra manifestações massivas e perseguiram supostos líderes, matando pelo menos 325, deixando milhares de feridos e desalojando mais de 70.000. A crescente revolta foi canalizada por organizações camponesas e estudantis ligadas ao Departamento de Estado dos EUA, bem como à Câmara de Comércio Americana, por trás de um Diálogo Nacional abortado com o governo Daniel Ortega.

Em Honduras, manifestações de professores, estudantes e profissionais de saúde foram reprimidas de forma brutal, com quatro manifestantes mortos a tiros e outros 20 estudantes baleados por tropas que invadiram a Universidade Nacional Autônoma de Honduras (UNAH). As manifestações foram desmobilizadas por sindicatos de “oposição” e políticos que pediam um “diálogo nacional” supervisionado por “mediadores estrangeiros”, ou seja, representantes do imperialismo oferecendo posições e aquisições.

Em outubro de 2019, houve revoltas massivas no Equador e no Chile, envolvendo greves gerais e marchas com milhões de pessoas. Os militares foram empregados em ambos os países, deixando pelo menos oito mortos no Equador e 36 no Chile.

As organizações sindicais e indígenas do Equador cancelaram os protestos após negociações com o governo Lenín Moreno. No Chile, uma coalizão envolvendo os sindicatos, a Frente Ampla e o Partido Comunista, apoiada por organizações da pseudoesquerda, canalizou o descontentamento por meio de um referendo sobre a reformulação da Constituição em um processo regulado pelo governo de extrema direita de Sebastián Piñera.

Os protestos contra a queda do presidente boliviano Evo Morales, apoiada pelos EUA, em novembro de 2019, foram esmagados por forças de segurança que deixaram 33 mortos e envolveram disparos de helicópteros contra manifestantes. Com Morales, seu partido MAS e seus aliados ostensivos nos sindicatos desempenhando um papel de liderança, as manifestações foram canalizadas para eleições supervisionadas pelo regime golpista de tendência fascista.

Na Colômbia, uma série de greves e manifestações de massa começaram em 21 de novembro de 2019, contra a desigualdade social e medidas de austeridade. Em setembro do ano passado, os protestos foram reacendidos por um assassinato policial. Enquanto os militares e a polícia massacravam pelo menos 17 manifestantes, os sindicatos, trabalhando com a principal figura da oposição Gustavo Petro e a pseudoesquerda, direcionaram essas manifestações para as negociações com o governo assassino de Iván Duque, com apelos inúteis pela renúncia do ministro da Defesa, que já morreu de COVID-19, e uma reforma superficial da Polícia.

Nessas experiências recentes, trabalhadores e jovens que se recusam a aceitar mais ataques em seus padrões de vida e nos serviços públicos têm saído às ruas fora do controle das instituições estabelecidas. Até agora, as classes dominantes têm contado com uma estratégia de incentivo e castigo para ganhar tempo: medidas de repressão assassina enquanto se preparam para a ditadura, combinadas com promessas de reforma democrática promovidas pela “esquerda” oficial e os sindicatos.

Todas as forças políticas e sindicatos que atuam incansavelmente para subordinar as erupções massivas à política burguesa pavimentaram o caminho para as políticas assassinas de “imunidade de rebanho” e o empobrecimento histórico do último ano, lançando as bases para o surgimento de uma nova onda de ditaduras militares fascistas.

A crise pandêmica está inevitavelmente intensificando a luta de classes, com greves de professores em São Paulo e de trabalhadores da saúde chilenos e os protestos em massa no Haiti como sinais iniciais. A tarefa crucial dos trabalhadores e jovens é construir novas organizações de luta de classe e uma nova direção socialista, internacionalista e revolucionária. Isso significa estabelecer em todos os países seções do Comitê Internacional da Quarta Internacional.

Loading