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47 anos da Revolução dos Cravos

Parte 1

Publicado originalmente em 15 de julho de 2004

Esta é a primeira parte de uma série de três artigos publicados no WSWS quando, em 2004, a Revolução dos Cravos completou 30 anos. Paul Mitchell é membro do Partido Socialista pela Igualdade (SEP) do Reino Unido.

Este ano completaram-se 30 anos da Revolução dos Cravos em Portugal. Após um golpe militar realizado em 25 de abril de 1974, um movimento de massas da classe operária ameaçou provocar uma revolução. A elite dominante conseguiu impedi-la utilizando os serviços do Partido Socialista Português (PSP), do Partido Comunista Português (PCP) e de grupos radicais de esquerda.

Portugueses começaram a dar cravos aos soldados, que os colocavam na ponta dos seus fuzis, o que dá nome à revolução (Foto: Wikicommons)

Um papel fundamental nesses eventos foi desempenhado por Mário Soares, líder do PSP durante a revolução e presidente de Portugal de 1986 a 1996. Falando no início deste ano, Soares alertou que Portugal era hoje um país que exibe “um sistema fortemente desigual de distribuição de riqueza” e enfrenta “uma atmosfera de protesto aberto e até mesmo de tensão social e política”.

Portugal ainda é um dos países mais pobres da Europa.

Soares continuou: “Mais uma vez, Portugal se encontra em uma profunda crise na qual certas elites não conseguem entender qual é o caminho certo a seguir. A esmagadora maioria dos portugueses sente visceralmente a desigualdade e a tragédia do desemprego cada vez maior em uma sociedade em que o horizonte está sendo encoberto”.

Diante do apelo de José Manuel Durão Barroso, o primeiro-ministro do Partido Social Democrata (PSD), para que o povo português esqueça a revolução e celebre a “evolução” de Portugal, Soares está preocupado que a elite dominante deve se lembrar das lições de 1974. Ele está alertando que as privatizações agressivas, as reformas trabalhistas e os cortes na assistência social (iniciadas sob sua própria presidência) e a reafirmação do passado imperial de Portugal e sua influência pelo apoio à guerra no Iraque poderiam provocar outra explosão social.

As raízes da revolução

A revolução de 1974 foi, no limite, moldada pelo desenvolvimento histórico atrasado de Portugal.

A partir do século XV, Portugal construiu um império colonial, resultando em uma elite privilegiada que tinha pouca atividade produtiva. Com o desenvolvimento de seus rivais imperialistas, particularmente o Reino Unido, as possessões coloniais de Portugal foram ameaçadas. A Guerra Peninsular (1807-1814), que se iniciou quando Napoleão atacou Portugal e a Espanha e fez Portugal se endividar com o Reino Unido, tinham enfraquecido ainda mais o colonialismo português. O Brasil tornou-se independente em 1822 e foram necessárias tropas para proteger as colônias remanescentes de Portugal de seus rivais.

Através da “Aliança Luso-Britânica”, o Reino Unido passou a dominar o comércio português. Setores da pequena burguesia foram arruinados, e a industrialização continuou a passos lentos. Seu descontentamento desencadeou as grandes lutas liberais de 1810-1836, mas o principal resultado foi a desintegração de alguns grandes latifúndios. A monarquia portuguesa foi finalmente deposta pela revolução de 1910.

O período após a Primeira Guerra Mundial de 1914-1918 foi de enorme crise para o capitalismo global. Essa instabilidade se refletiu em Portugal, que teve oito presidentes e 45 governos entre 1910 e 1926 – o período da Primeira República.

No final da guerra, apenas 130 mil dos 6 milhões de habitantes de Portugal trabalhavam na indústria, principalmente em pequenas oficinas. Como na Rússia, a classe operária era extremamente radicalizada, levando a cabo uma greve geral em 1917 e provocando dois estados de sítio. Em 1921, foi formado o Partido Comunista Português.

A instabilidade e a ameaça de um movimento revolucionário da classe operária levaram ao golpe de direita de 28 de maio de 1926. Dois anos mais tarde, António de Oliveira Salazar, professor de economia, foi nomeado ministro das finanças e depois primeiro-ministro. Como resposta direta às contínuas lutas da classe operária que culminaram numa insurreição de cinco dias em 1934, Salazar declarou seu “Estado Novo” corporativo.

Somente o partido fascista oficial era permitido – a União Nacional (UN), que mais tarde passou a se chamar Ação Nacional Popular (ANP).

Os sindicatos independentes e as greves foram proibidos, e os trabalhadores foram forçados a ingressar em sindicatos corporativos e estatais. Salazar estabeleceu uma censura rigorosa e criou uma polícia secreta, a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), que prenderia ou mataria os opositores do regime.

A função mais importante do regime de Salazar para a elite dominante de Portugal era impedir qualquer luta da classe operária que ocorresse em casa e que a oposição se desenvolvesse nas colônias. Entretanto, a natureza nacional restrita da proscrição de Salazar não podia isolar o país da economia mundial. Grande parte de sua produção dependia da demanda mundial e o país tinha que importar muitos de seus produtos manufaturados. Durante os anos 1960, o investimento estrangeiro em Portugal triplicou, principalmente dos Estados Unidos, mas resultou em uma extrema concentração de riqueza.

Em 1973, existiam cerca de 42 mil empresas em Portugal – um terço delas empregando menos de 10 trabalhadores –, mas cerca de 150 empresas dominavam toda a economia. A maioria estava ligada ao capital estrangeiro, mas liderada por algumas famílias portuguesas muito ricas (Espírito Santo, Mello, Brito, Champalimaud). A empresa monopolista da família Mello, a Companhia União Fabril (CUF), por exemplo, possuía grande parte da Guiné-Bissau e produzia 10% do produto interno bruto.

Apesar dessa grande quantidade de empresas, um terço da população ainda trabalhava como mão de obra agrícola, muitos em grandes propriedades ou em latifúndios. Estima-se que 150 mil pessoas viviam em favelas concentradas em torno da capital, Lisboa. A escassez de alimentos e as dificuldades econômicas – os salários em Portugal eram os mais baixos da Europa nos anos 1960, de US$10 por semana – levaram à emigração em massa de quase 1 milhão de pessoas para outros países europeus, o Brasil e as colônias.

Os anos 1960 também assistiram ao surgimento de movimentos de libertação nacional nas colônias portuguesas na África – Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. O combate a três movimentos guerrilheiros durante mais de uma década esgotou a economia e a força de trabalho portuguesa. Quase metade do orçamento foi gasto para manter mais de 150 mil soldados na África. O serviço militar obrigatório de quatro anos, combinado com salários e condições militares precários, lançou as bases para as queixas e o desenvolvimento de movimentos oposicionistas entre as tropas. Esses recrutas se tornaram a base para o surgimento de um movimento clandestino conhecido como o “Movimento dos Capitães”.

O alto custo das campanhas militares na África foi exacerbado pela crise econômica mundial que se desenvolveu no final dos anos 1960.

Através do Acordo de Bretton Woods de 1944, o imperialismo americano foi forçado a resgatar seus rivais europeus e japoneses do colapso, temendo que isso produzisse uma revolução social.

Sob a tutela dos americanos e com o apoio do poder econômico e militar dos EUA, foram criadas várias agências, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), por meio das quais as economias eram impulsionadas com injeções maciças de capital através de empréstimos.

A base do sistema monetário dessa ordem internacional era o valor fixo do dólar em relação ao ouro – US$35 a onça de ouro. No entanto, a longo prazo, os EUA não poderiam sustentar o papel de financiar a economia mundial. O déficit da balança de pagamentos dos EUA aumentou, exacerbado pela guerra no Vietnã, enquanto as reservas de ouro diminuíram. Incapaz de manter a convertibilidade em ouro, o presidente Richard Nixon retirou o dólar do padrão ouro em 15 de agosto de 1971. A quebra do Acordo de Bretton Woods produziu, entre 1973 e 1975, uma inflação cada vez maior seguida da mais severa recessão que o mundo tinha visto desde os anos 1930, bem como um enorme desenvolvimento da luta de classes em um país após o outro.

A revolução em Portugal deveria ter se desenvolvido como parte de uma luta geral europeia e mundial pelo socialismo por parte da classe operária. Mas, ao invés disso, a sobrevivência do capitalismo foi assegurada pelas traições da socialdemocracia e do stalinismo, ajudados e incentivados pelo radicalismo pequeno burguês.

Os preparativos para o golpe

Diante das revoltas nas colônias e de uma onda de greves em Portugal, os chefes militares se mobilizaram para proteger o capitalismo e deter a ofensiva da classe operária e dos camponeses.

Em fevereiro de 1974, o General António de Spínola, o segundo no comando do exército e diretor de dois dos principais monopólios de Portugal, incluindo a CUF, publicou Portugal e o Futuro. O livro criticava a política africana do sucessor de Salazar, Marcello Caetano, e fazia um chamado para que se cultivasse uma elite negra moderada que poderia se dissociar dos nacionalistas. Caetano proibiu o livro e demitiu Spínola e o comandante do exército, General Costa Gomes, que havia autorizado sua publicação.

Nesse mesmo mês, ocorreu uma revolta frustrada em Caldas da Rainha, no norte do país. Um manifesto do Movimento dos Capitães de 18 de março parabenizou Spínola e Gomes e expressou total apoio às tropas em Caldas da Rainha, dizendo: “A causa deles é a nossa causa”.

Os líderes do Movimento dos Capitães discutiram o manifesto com Spínola e Gomes e planejaram um golpe para 25 de abril de 1974.

Nesse dia, o Movimento das Forças Armadas (MFA), como o Movimento dos Capitães passou a ser conhecido, anunciou que tinha decidido “interpretar os desejos do povo” e derrubar Caetano. Na verdade, o próprio Caetano pediu a Spínola para evitar que o país “caísse nas mãos da gentalha”. O resultado foi a formação da Junta de Salvação Nacional (JSN), composta inteiramente por oficiais militares de alto escalão, tendo Spínola como presidente.

Spínola pretendia limitar o golpe a uma simples “renovação”, mas o golpe imediatamente levou as massas para as ruas exigindo mais mudanças. Multidões furiosas exigiam o acerto de contas com oficiais e apoiadores do antigo regime, e vários membros da PIDE foram mortos

Os partidos anteriormente proibidos surgiram da clandestinidade ou do exílio, incluindo o PCP liderado por Álvaro Cunhal e o PSP liderado por Mário Soares. Os membros mais perspicazes da elite dominante sabiam o papel vital que estes partidos seriam obrigados a desempenhar para impedir o desenvolvimento de uma revolução.

Uma das questões mais importantes da revolução dizia respeito à natureza do MFA e sua unidade de “intervenção armada”, o Comando Operacional do Continente (COPCON), composto por 5.000 tropas de elite, tendo Otelo Saraiva de Carvalho como comandante.

O MFA cultivou o conceito da “Aliança Povo-MFA”. O PSP, o PCP e os grupos radicais nunca contestaram essa grande mentira. Ao invés disso, o PCP declarou que o MFA era um “garantidor da democracia” e desenvolveu relações estreitas com Carvalho, General Vasco Gonçalves e outros membros da Junta.

Somente o Comitê Internacional da Quarta Internacional e seus apoiadores portugueses, a Liga para a Construção do Partido Revolucionário (LCRP), fez um chamado para que o PCP e o PSP rompessem com os partidos burgueses, a máquina estatal e o MFA. Exigiu a dissolução do exército e a criação de sovietes de operários, camponeses e soldados em oposição ao MFA e suas propostas para uma Assembleia Constituinte.

Continua.

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