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Copa América planejada no Brasil durante surto de COVID-19

Publicado originalmente em 11 de junho de 2021

Em 13 de junho, o torneio de futebol da Copa América deverá começar no Brasil diante de uma terceira onda da pandemia de COVID-19, que já está se tornando um surto. Esse pode ser o seu estágio mais mortífero, com cerca de 2.500 pessoas morrendo diariamente.

Estádio do Maracanã no Rio de Janeiro [crédito: Pedro Lopez]

Para o governo do fascista presidente brasileiro Jair Bolsonaro, sediar o campeonato é um meio de reafirmar às elites dirigentes nacionais e mundiais que nenhum número de mortes impedirá sua política de "imunidade de rebanho" pró-corporativa baseada na reabertura completa de toda a atividade econômica.

Com o número oficial de mortes no Brasil prestes a superar a marca de 500 mil no decorrer dos jogos, Bolsonaro disse à mídia: "Desde o início eu disse sobre a pandemia: eu lamento as mortes, mas temos que viver".

Os dois países que haviam sido selecionados originalmente para sediar o torneio de futebol, entre 10 times sul-americanos, desistiram em maio: a Colômbia diante de protestos em massa; e a Argentina em resposta a um surto descontrolado de infecções pela COVID-19. Bolsonaro se voluntariou para receber os jogos, com a aprovação de todos os países participantes.

O anúncio, em 1º de junho, de que o Brasil sediaria os jogos veio poucos dias após os protestos contra a gestão da pandemia pelo governo Bolsonaro terem dezenas de milhares de estudantes e jovens nas ruas das principais capitais do país, e em meio a uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado sobre a resposta dos governos federal e estadual à COVID-19. A decisão provocou inicialmente reações preocupantes de seções proeminentes do establishment que, tomada em meio a níveis persistentemente altos de infecções e relatos de UTIs lotadas, poderia desencadear um novo aumento de oposição ao governo.

O governador do estado de São Paulo, João Doria, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), respondeu positivamente ao anúncio de Bolsonaro, revertendo sua posição algumas horas depois. O evento havia inicialmente incluído jogos na capital amazonense de Manaus, que se tornou duas vezes epicentro mundial da pandemia do coronavírus. A cidade foi retirada do calendário do torneio um dia após a coletiva de imprensa de Bolsonaro.

A inquietação dentro de setores da classe dominante encontrou expressão na extraordinária crise política que rapidamente tomou conta da corrupta Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Na semana passada, depois de informar que a seleção brasileira de futebol planejava fazer uma declaração de oposição à Copa América sobre a pandemia, e considerando até mesmo um boicote ao torneio, o conselho de ética da CBF assumiu uma acusação interna de abuso sexual contra o presidente da confederação, Rogério Caboclo, decidindo pela sua suspensão por 30 dias. A medida foi tomada menos de 48 horas após a acusação, com grandes corporações e bancos, incluindo o maior banco brasileiro, Itaú, e o maior fabricante de equipamentos esportivos, Nike, fazendo declarações públicas exigindo ação.

Enquanto esses setores da classe dominante buscavam retratar todo o caso em torno das acusações de abuso sexual, o senador Flávio Bolsonaro, o filho mais velho do presidente, chamou a atenção para as questões políticas mais amplas em torno da rápida remoção de Caboclo. Em resposta aos relatos de um possível boicote da seleção nacional, ele postou um vídeo acusando o treinador da seleção, conhecido como Tite, de manipular os jogadores, implicando que ele estava criando deliberadamente uma crise para beneficiar o Partido dos Trabalhadores (PT). A base política de extrema-direita de Bolsonaro respondeu rapidamente com uma campanha online em torno da hashtag #CommunistTiteOut.

A manobra para afastar Caboclo sinalizou o distanciamento da CBF do governo Bolsonaro, do qual Caboclo é um aliado próximo, com a esperança de convencer os jogadores a aceitar os jogos no Brasil, como parte dos esforços de todos os governos da região para trazer suas próprias equipes nacionais para lá.

O jornal brasileiro Folha de S. Paulo expôs a motivação por trás da rápida acusação de abuso sexual: "Desde a semana passada, os atletas tentam definir o que dizer sobre o descontentamento geral com a realização da Copa América no país e o relacionamento com o presidente da CBF, Rogério Caboclo. O afastamento dele, no domingo (6), tornou tudo mais fácil".

Os conflitos em curso sobre o torneio foram expostos por uma série de grandes empresas transnacionais, que removeram suas marcas dos espaços promocionais nos jogos, com a gigante de bebidas, AB InBev, agora acompanhando a saída da Mastercard.

Entretanto, para a classe dominante como um todo, os interesses financeiros em jogo no torneio vão muito além de recuperar os US$ 30 milhões em investimentos já feitos ou lidar com os milhões em perdas potenciais decorrentes do boicote de certas marcas.

O impulso do establishment político para permitir que o evento avance é sinalizar que o Brasil, e a América do Sul como um todo, é um lugar seguro para investimentos estrangeiros, a ser assegurado através da exploração ininterrupta da classe trabalhadora diante das mortes em larga escala. Em um discurso televisionado um dia após o anúncio da vinda da Copa América ao Brasil, Bolsonaro comemorou: "Ontem, a Bolsa de Valores bateu recorde histórico, a moeda brasileira se fortalece e estamos avançando no difícil processo de privatizações".

Na quinta-feira, poucos dias antes dos primeiros jogos, Bolsonaro disse que seu ministro da Saúde emitiria uma decisão permitindo que as pessoas já vacinadas e aquelas que já foram infectadas não usem máscaras. Ele disse que o seu ministro faria tal autorização "para tirar este símbolo que, obviamente, tem a sua utilidade para quem está infectado".

Essa tentativa de remover qualquer "símbolo" da busca por diminuir a propagação das infecções está sendo feita desafiando as advertências de que a Copa América terá enormes implicações para a pandemia no Brasil, com o cientista médico Miguel Nicolelis dizendo que os jogos poderiam ser a "gota d’água" para uma iminente terceira onda de coronavírus.

A partir de terça-feira, dez estados e o Distrito Federal registraram mais de 90% de ocupação de leitos de UTI, enquanto o número de casos atingiu o patamar estratosférico de abril. O número de mortes está voltando ao nível atingido naquele mês, quando mais de 3 mil mortes diárias foram registradas por semanas, atingindo um pico de 4.249 em um único dia. Em 2 de junho, houve 95.601 novos casos, um nível que só foi atingido algumas semanas antes do número de mortes sem precedentes em abril. Enquanto isso, o número de mortes diárias ultrapassou 2.500 nos últimos quatro dias consecutivos.

Em entrevistas com a BBC Brasil, especialistas brasileiros em saúde expressaram indignação com a decisão de realizar o torneio no país. O professor Antônio Augusto Moura da Silva, professor do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), alertou sobre o perigo de permitir um evento envolvendo alto trânsito local e internacional de pessoas durante a pandemia: "Estamos enfrentando uma segunda onda que não arrefeceu ainda. A taxa de transmissão também está muito elevada, e estamos numa situação de descontrole. Além disso, a taxa de imunização está muito baixa, com apenas 10,4% da população vacinada com a segunda dose da vacina contra a COVID-19".

O professor Moura da Silva acrescentou: "Antes, a população se chocava com 500 mortes por dia. Depois com 4 mil. Hoje, não se choca com 2 mil pessoas morrendo, e eventos como esse são aceitos com mais facilidade. Mas trata-se de uma decisão que não tem nenhum fundamento sanitário. Se tivesse, era para não aceitar, como fez a Argentina e a Colômbia. Essa foi uma decisão política e econômica". Ele acrescentou: "Mas nossos políticos não se importam com a morte das pessoas".

O epidemiologista e professor do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Lucio Botelho, afirmou: "Isso é uma loucura". É inconsequente em todos os aspectos. Talvez a minha análise tenha que ser política. É de novo algo novo para fazer a história do pão e circo. Não faz sentido dois países recusarem um evento desses e o Brasil chamar para cá. A vacina não anda, e estamos trazendo mais riscos ao país".

A recepção de Bolsonaro da Copa América é apenas a expressão mais grotesca de um processo universal que subordina a proteção da vida humana ao lucro privado e ao enriquecimento das oligarquias financeiras em todo o planeta.

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