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Cientista francês tenta silenciar denunciante por afirmações desacreditadas sobre hidroxicloroquina

Publicado originalmente em 4 de junho de 2021

O microbiologista francês, Dr. Didier Raoult, que publicou em março de 2020 um artigo hoje desacreditado afirmando que a hidroxicloroquina era eficaz no tratamento da COVID-19, ameaçou com uma ação legal cientistas que criticaram suas pesquisas. Entre os cientistas estão Elizabeth Bik, a denunciante que primeiro expôs inconsistências metodológicas na pesquisa de Raoult, e Boris Barbour, que dirige o site sem fins lucrativos, Pubpeer, permitindo que os cientistas revisem o trabalho um do outro.

Dr. Didier Raoult (AP Photo/Christophe Ena)

Em 18 de maio, uma carta aberta foi publicada apoiando Bik contra o ataque de Raoult com o título "Cientistas se levantam para proteger os denunciantes acadêmicos e a revisão por pares pós-publicação". Desde então, ela foi assinada por mais de mil cientistas em todo o mundo de diversas áreas do conhecimento.

Elizabeth Bik é uma microbiologista e especialista em integridade de pesquisa, e seu trabalho de investigação de má conduta acadêmica levou a mais de 170 retrações de artigos e expôs mais de 4 mil casos de duplicação, manipulação de dados, plágio e violações éticas. Em 24 de março de 2020, Bik publicou uma postagem no blog expondo uma série de inconsistências no artigo de Raoult de 17 de março, que afirmava que o tratamento com hidroxicloroquina, um medicamento utilizado no tratamento de malária, aumentava significativamente a chance de sobrevivência de pacientes com casos graves de COVID-19.

Bik levantou uma série de preocupações com a metodologia do estudo de Raoult. Elas incluíam a remoção do seu estudo de uma pessoa que havia morrido e de outras duas que haviam ficado doentes demais para receber tratamento, levantando suspeitas de que Raoult removeu dados para apoiar a conclusão de que o medicamento era eficaz contra a COVID-19. Bik também descobriu que o estudo começou em 5 de março, um dia antes de receber autorização oficial do Comitê de Ética francês em 6 de março, e que o trabalho de Raoult passou pela revisão por pares em apenas 24 horas, um processo que normalmente leva semanas. Bik também descobriu um conflito de interesses não-declarado: um dos co-autores do artigo, J. M. Rolain, era editor-chefe do períodico, que aceitou rapidamente a sua publicação.

Bik começou então a rever os outros trabalhos de Raoult e, por fim, sinalizou preocupações com mais 62 artigos de Raoult. Isso levou a uma resposta irritada de Raoult e de seus colegas.

Raoult denunciou Bik no Twitter como uma "caçadora de bruxas", "maluca" e "pesquisadora fracassada", enquanto seu colega, Eric Chabrière, chamou Bik de “fezes de inseto”. Raoult mais tarde acusou Bik de tentar chantageá-lo sem qualquer prova e a atacou na televisão em rede nacional. Ele também tomou a decisão suja de publicar o endereço residencial de Bik para seus seguidores no Twitter.

No dia 29 de abril, os advogados de Raoult enviaram uma carta à Nature declarando ter processado Bik, acusando-a de "assédio moral, crime de chantagem e tentativa de extorsão". Porém, Bik ainda não recebeu qualquer notificação sobre uma ação legal. Não está claro se Raoult e seus advogados pretendem continuar o caso, ou se a carta foi apenas uma tentativa de intimidar Bik para que ela fique em silêncio diante da ameaça de uma ação legal.

Bik reafirmou sua inocência e se recusou a retirar suas críticas apesar dos ataques. Ela respondeu à ação de Raoult questionando: "Por que ele não me mostra provas de que eu estou errada? Eu ficaria feliz em receber provas", acrescentando: "A ciência deveria ser discutida na arena científica, não na legal".

Didier Raoult é uma figura controversa na comunidade científica. Embora sua pesquisa inovadora tenha levado à descoberta de centenas de novos tipos de vírus, ele reclamou da "ditadura dos metodologistas" e descartou a importância dos ensaios aleatórios para a realização de experimentos objetivos. Ele está atualmente sob investigação após uma queixa apresentada em novembro passado por um grupo representando 500 especialistas da sociedade de de Doenças Infecciosas francesa, acusando-o de quebrar nove regras do código de ética dos médicos.

Na França, ele conquistou a simpatia popular no início da pandemia, insistindo para que as pessoas fossem tratadas, fornecendo testes gratuitos em seu instituto para qualquer pessoa. Naquela época, ele rejeitou a política de "imunidade do rebanho" de deixar o coronavírus se espalhar sem controle e disse ao governo que uma estratégia firme de testagem e rastreamento era essencial para eliminar o vírus. O Presidente Emmanuel Macron respondeu à influência e atenção crescentes de Raoult na mídia chamando-o para ser consultor científico.

Infelizmente, Raoult adaptou cada vez mais suas declarações ao que era politicamente aceitável para Macron. Em maio de 2020, ele declarou que o vírus estava naturalmente chegando ao fim e que "em nenhum lugar vemos uma segunda onda". Apesar das crescentes evidências de que as escolas impulsionavam a pandemia, Raoult disse a Macron que as crianças não são propagadores significativos do vírus, abrindo caminho para a reabertura prematura das escolas em 11 de maio de 2020.

Em dezembro de 2020, Raoult descartou as vacinas contra COVID-19, que haviam se mostrado altamente eficazes em ensaios clínicos, como "ficção científica e, sobretudo, como publicidade". Ele fez um comentário de direita contra a vacinação obrigatória, dizendo: "Se ponderássemos fazer as vacinas serem obrigatórias, haveria uma revolução. Felizmente, não fizemos isso". Na realidade, a vacinação universal contra o vírus é um componente decisivo de uma política internacional de saúde pública para deter a pandemia.

O assédio de Raoult foi denunciado por cientistas de todo o mundo. Uma carta aberta defendendo Bik afirma que a "estratégia de assédio e ameaças de Raoult está criando um efeito sinistro para os denunciantes e para as críticas acadêmicas em geral".

Lonni Besançon, co-autor da carta aberta e cientista da computação na Austrália, disse à Nature: "Investigar a pesquisa de alguém definitivamente não é assédio. Essa é uma questão científica, isso não deve cair no sistema legal para ser resolvido". Um porta-voz da Pubpeer, o outro alvo da ameaça de ação judicial de Raoult, declarou: "Uma ação legal bem sucedida poderia ter um efeito sinistro na revisão por pares pós-publicação".

A exposição de Raoult por Bik e a resposta intimidatória de Raoult levantam importantes questões científicas e políticas relativas à integridade científica.

No início da pandemia, Bik foi acompanhado por uma série de outros cientistas expressando preocupação com a pesquisa que defendia o uso da hidroxicloroquina para tratar a COVID-19. Isso incluiu Paul Garner, editor do grupo Cochrane de doenças infecciosas, que disse ao período médico britânico BMJ que, "eles [hidroxicloroquina e cloroquina] poderiam fazer mal" e "não há absolutamente nenhuma evidência de que a cloroquina seja eficaz em pessoas infectadas com o coronavírus".

Entretanto, após os primeiros lockdowns na metade de 2020, a pesquisa de Raoult foi endossada por políticos capitalistas que procuravam promover toda e qualquer "cura", independentemente de sua eficácia, a fim de impor um rápido fim aos lockdowns e levar adiante o retorno ao trabalho para aumentar os lucros das corporações. O então presidente dos EUA, Donald Trump, saudou o trabalho de Raoult como "muito bom" e o tratamento da COVID-19 com hidroxicloroquina como "a maior reviravolta da história da medicina". A medicação também foi promovida pelo presidente fascista do Brasil, Jair Bolsonaro.

A adoção de políticas de "imunidade de rebanho", que levaram à morte de milhões de pessoas, contou em grande parte com ofensivas constantes de autoridades do governo para enganar o público sobre dados científicos. Isso ressalta a decisiva importância da livre discussão científica desimpedida de qualquer ameaça de ação legal ou violência na busca pela verdade.

Na França, que ultrapassará 110 mil mortes até o final da semana, Macron declarou guerra aos cientistas, ignorando repetidamente seus apelos pelo confinamento e denunciando sua "incessante busca por erros". O assessor de Macron, Stéphane Séjourné, chegou ao ponto de denunciar as "intervenções descontroladas e sufocantes dos cientistas" em janeiro deste ano. O ataque a cientistas como Bik por realizar investigações científicas das pesquisas existentes só piora essa atmosfera tóxica e dificulta a luta para informar o público sobre o coronavírus.

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