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Em meio a protestos e ameaças de golpe, Peru entra na quarta semana sem oficializar vencedor das eleições presidenciais

No último sábado, Lima voltou a ser arena para o duelo entre manifestações dos apoiadores de Pedro Castillo, ex-líder grevista de professores que venceu o segundo turno das eleições no Peru em 6 de junho, e dos apoiadores de sua rival de direita Keiko Fujimori, que tenta anular os resultados com alegações infundadas de fraude no que foi descrito como um golpe em câmera lenta.

No comício de Fujimori, apoiadores direitistas gritavam: “Os peruanos querem uma nova eleição”. Castillo usou sua manifestação para emitir promessas de lealdade à ordem capitalista existente no Peru, inclusive um apelo para que o chefe do banco central do país permaneça na posição que ocupou nos últimos 15 anos. Lá, a multidão gritava “o povo unido jamais será vencido”.

Já se passaram três semanas desde que os peruanos foram às urnas e as autoridades eleitorais ainda não declararam oficialmente o vencedor. Isso apesar de todas as cédulas terem sido contadas, deixando Castillo com 50,125% contra 49,875% de Keiko Fujimori, uma pequena margem de 44.058 votos.

Pedro Castillo discursa durante manifestação em Lima, em 26 de junho. (Crédito: Andina)

A demora prolongada no reconhecimento da vitória de Castillo provocou protestos no corredor de mineração do Peru, onde ele venceu de forma esmagadora entre a população empobrecida. Trabalhadores ergueram barricadas nas estradas, interrompendo o tráfego de caminhões e ameaçando paralisar as operações de mineração, o setor mais importante da economia peruana.

Fujimori é filha do ex-ditador Alberto Fujimori, atualmente preso por ter cometido crimes contra a humanidade e corrupção durante seu governo de uma década que terminou em 2000. Se ela não conseguir assegurar a presidência, ela própria enfrentará a perspectiva de ser presa por acusações de corrupção relacionadas ao enorme escândalo de suborno e propina em torno das atividades da gigante brasileira da construção civil Odebrecht, no qual todos os ex-presidentes peruanos vivos e praticamente todos os partidos políticos estão implicados.

A facção Fujimori, apoiada por poderosos setores da classe dominante peruana e pela maior parte da imprensa, promoveu a mentira de que a vitória eleitoral de Castillo foi resultado de fraude. Com o objetivo de anular 200.000 votos, mobilizou um exército de advogados para entrar com uma série de denúncias de irregularidades em distritos eleitorais na empobrecida região andina e sul do Peru, onde Castillo venceu de forma esmagadora.

Embora o Júri Nacional de Eleições (JNE) tenha rejeitado as contestações apresentadas pelos advogados de Fujimori considerando-as infundadas, eles estão entrando com recursos. Em outra tentativa de paralisar a deliberação do órgão, Luis Arce Córdova, um apoiador de Fujimori, renunciou ao júri na quarta-feira passada, alegando que não queria “validar falsas deliberações constitucionais”.

Essa tentativa de negar o quórum no JNE foi resolvida no final da semana passada com a substituição de Arce por Víctor Raúl Rodríguez Monteza, um outro promotor que, como Arce, está envolvido em um escândalo de corrupção envolvendo o suborno de juízes na cidade portuária de Callao.

Entre as últimas tentativas de reverter o pleito está o apelo dos fujimoristas à Organização dos Estados Americanos (OEA) para intervir por meio de uma auditoria dos resultados. Eles citaram especificamente as eleições bolivianas de 2019, nas quais a OEA interveio com alegações infundadas de fraude. Isso abriu caminho para um golpe contra o presidente Evo Morales, que foi forçado pelos militares a renunciar e foi substituído por um regime de direita.

Em meio a tudo isso, há o elemento de ganhar tempo que interessa à facção Fujimori para organizar forças suficientes dentro do aparato estatal para executar um golpe extraconstitucional.

Essa ameaça foi explicitada em uma carta de 14 de junho ao alto comando das Forças Armadas peruanas, assinada por comandantes aposentados, incluindo 23 generais do Exército, 22 almirantes da Marinha e 18 tenentes-generais da Força Aérea (a lista foi discretamente preenchida com “assinaturas” de oficiais mortos). O comunicado exortou os militares a “agirem com rigor” para “remediar” as “irregularidades demonstradas” no tratamento dos resultados eleitorais, a fim de evitar a subida ao poder de um comandante-chefe “ilegal e ilegítimo”.

Entre os episódios mais reveladores da trama do golpe eleitoral está a revelação de que Vladimiro Montesinos, o poderoso chefe de inteligência e conselheiro-chefe de Alberto Fujimori e “trunfo” de longa data da CIA (EUA), desempenhou um papel ativo na tentativa de reverter os resultados eleitorais, inclusive subornando membros do JNE.

Montesinos está preso no presídio de segurança máxima da Marinha em Callao, cumprindo penas por suborno, peculato e tráfico ilegal de armas, e enfrentando julgamento por outras acusações relacionadas a massacres, execuções extrajudiciais e torturas realizadas sob suas ordens. No entanto, descobriu-se que ele foi capaz de fazer 17 ligações no mês passado, aparentemente do escritório do diretor da prisão, para um veterano ex-comandante de direita e agente fujimorista.

O conteúdo dessas conversas veio a público com a divulgação das gravações de Fernando Olivera, político de centro-direita que ganhou destaque em 2000 com a divulgação dos chamados “Vladi-videos”, gravações de vídeo que mostravam Montesinos entregando milhões em subornos para figuras políticas e da imprensa. O próprio chefe da inteligência havia feito as gravações para chantagear qualquer um que não apoiasse suficientemente o regime de Fujimori. A divulgação dessas gravações teve um papel significativo na queda da ditadura de Fujimori, que durou uma década, com o ex-ditador fugindo para o Japão e Montesinos para a Venezuela.

Nas gravações de áudio divulgadas na semana passada, Montesinos é ouvido dizendo ao coronel aposentado Pedro Rejas Tataje para entrar em contato com Guillermo Sendón, um agente político simpatizante de Fujimori, indicando que ele poderia facilitar o suborno de três membros do tribunal eleitoral. Em outra gravação, Sendón disse a Rejas Tataje que os três membros do JNE votariam a favor de Fujimori em troca de “três palos” (três varas) significando um milhão de dólares cada. Sendón disse que já havia mantido contato com Luis Arce Córdova, o promotor que renunciou ao tribunal de forma repentina.

A capacidade de Montesinos de desempenhar um papel ativo na tentativa de derrubar a eleição é uma evidência incontestável do apoio de elementos militares na trama do golpe.

Também foi revelador o conselho dado por Montesino ao agente fujimoristade que ele poderia pedir ajuda à embaixada dos Estados Unidos. O Departamento de Estado dos EUA emitiu na semana passada um comunicado elogiando a eleição do Peru como um “modelo de democracia na região”, mas nunca citando Castillo como seu vencedor, deixando as opções de Washington claramente em aberto. Por sua vez, Montesinos, uma das figuras mais sinistras da história recente da América Latina, manteve uma relação íntima com a embaixada e a CIA desde a década de 1970, quando forneceu informações confidenciais a Washington sobre o regime militar nacionalista burguês do general Juan Velasco Alvarado.

Diante das ameaças de golpe e de uma campanha cada vez mais histérica que o denuncia como comunista, Pedro Castillo se move cada vez mais à direita na tentativa de ganhar a confiança da classe dominante peruana.

Essa mudança foi o cerne do discurso que ele proferiu no comício em seu apoio no sábado. Ele fez um alarde ao afirmar que pretendia manter Julio Velarde como presidente do Banco Central de Reserva do Peru (BCRP). Velarde, um dos favoritos do Fundo Monetário Internacional, é filiado ao Partido do Povo Cristão, de direita, cujo ex-presidente Lourdes Flores está entre os mais proeminentes apoiadores da tentativa de Fujimori de derrubar a eleição.

“Não somos comunistas, somos democratas, respeitamos a governabilidade e o institucionalismo peruanos”, disse Castillo à multidão. “Respeitamos esta Constituição e, nesse contexto, peço ao doutor Julio Velarde que seu trabalho no Banco Central seja permanente. Isso é necessário não só para a tranquilidade econômica, mas para abrir as portas aos grandes investimentos que precisam ser feitos democraticamente, com regras”. Em seguida, declarou-se “respeitoso” com a “dignidade” e “lealdade à pátria” dos militares peruanos.

Porta-voz oficial das grandes empresas, o Bloomberg declarou que o anúncio de Castillo sobre o banco central é “o movimento mais favorável aos mercados” feito por Castillo desde sua eleição.

O capital financeiro internacional está avaliando Castillo e determinando que, assim como outro ex-líder sindical que se tornou presidente, o brasileiro Lula, ele é um homem com quem eles podem fazer negócios.

A campanha anticomunista histérica e cada vez mais perigosa dentro da classe dominante peruana para derrubar a eleição e reviver a ditadura de Fujimori é movida não pelo medo de Castillo, mas das camadas empobrecidas da classe trabalhadora, dos camponeses e pobres urbanos que votaram nele. Os altos níveis de desigualdade social do Peru foram exacerbados pela pandemia de COVID-19, com o país registrando o pior número de mortes per capita do mundo e lançando milhões ao desemprego e à pobreza. Essas condições, combinadas aos infindáveis escândalos de corrupção que desacreditaram todos os partidos políticos e instituições estatais, ameaçam deflagrar uma explosão revolucionária.

Para derrotar a ameaça de um golpe, a classe trabalhadora peruana não pode confiar em Castillo e na camarilha de dirigentes sindicais corporativos, políticos e assessores de direita que o cerca. Os trabalhadores devem mobilizar sua força política de forma independente e com base em uma perspectiva socialista e internacionalista da luta revolucionária. Isso requer a construção de uma nova direção revolucionária, uma seção peruana do Comitê Internacional da Quarta Internacional.

(Publicado originalmente em inglês em 28 de junho de 2021)

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