Português
Perspectivas

O general Milley e o "momento Reichstag" nos Estados Unidos

Publicado originalmente em 15 de julho de 2021

'Este é um momento Reichstag, o evangelho do Führer', disse o general Mark Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto, o mais alto comandante militar da ativa dos EUA, aos seus assistentes no período que antecedeu o assalto fascista de 6 de janeiro ao edifício do Capitólio dos EUA.

Donald Trump, entre o Procurador Geral William Barr, o Secretário de Defesa Mark Esper e o General Mark Milley, Presidente do Estado-Maior Conjunto, após a repressão dos protestos na Praça Lafayette em 1º de junho de 2020. (AP Photo/Patrick Semansky, Arquivo)

A referência do general foi ao Incêndio do Reichstag de 1933, um suposto ataque terrorista ao edifício do parlamento alemão que foi imputado a um trabalhador comunista. Ele serviu como pretexto para Hitler assumir poderes ditatoriais, suspendendo ritos parlamentares e direitos democráticos e desencadeando um reinado de terror contra a classe trabalhadora. Posteriormente, foi provado que o incêndio foi armado pela Gestapo nazista.

A comparação entre as ações de Trump após as eleições de 2020 e a ascensão de Hitler é apresentada em um novo livro, I Alone Can Fix It: Donald J. Trump's Catastrophic Final Year [em português, “Somente eu posso resolvê-lo: o final de ano catastrófico de Donald J. Trump”], escrito pelos repórteres do Washington Post, Carol Leonnig e Philip Rucker. Esse não foi um comentário isolado, e o general não estava exagerando.

Milley se reunia regularmente com outros membros do Estado-Maior Conjunto representando o Exército, Força Aérea, Marinha e Fuzileiros Navais para avaliar a ameaça de um golpe e elaborar planos de emergência. Sem dúvida, essas reuniões também tinham como objetivo medir a temperatura política do corpo de oficiais dos EUA para determinar o grau de apoio que uma tomada de poder ditatorial teria nos diferentes setores das forças armadas.

Segundo o livro, Milley 'tinha um constante sentimento de embrulhar o estômago, de que alguns dos estágios iniciais preocupantes do desenvolvimento do fascismo na Alemanha no século XX estavam sendo reproduzidos nos Estados Unidos do século XXI. Ele via paralelos entre o discurso de fraude eleitoral de Trump e a insistência de Adolf Hitler para com seus seguidores nos comícios de Nuremberg de que ele era ao mesmo tempo uma vítima e o salvador do povo'.

O general ainda descreveu os apoiadores fanáticos de Trump das milícias fascistas como o Proud Boys, Oath Keepers e Three Percenters como 'camisas marrom'. Ele declarou aos agentes militares e de segurança que se preparavam para a posse de Joe Biden, feita sob condições de estado de sítio, que 'essas são as mesmas pessoas que combatemos na Segunda Guerra Mundial'.

Trump respondeu às revelações de forma enfurecida por meio do seu comitê de ação política 'Save America', descrevendo o general como um 'cachorro engasgado' e afirmando: 'Apesar das fraudes e irregularidades eleitorais maciças durante o golpe das Eleições Presidenciais de 2020, que agora vemos se desenrolar em Estados muito grandes e importantes, eu nunca ameacei, ou falei, a ninguém, de um golpe do nosso governo. Que ridículo! Lamento informá-los, mas uma Eleição é a minha forma de 'golpe', e se eu fosse dar um golpe, uma das últimas pessoas com quem eu gostaria de fazê-lo é o General Mark Milley'.

Seria impossível exagerar o significado político do fato de o oficial militar mais graduado dos Estados Unidos ter advertido seus colegas generais de que o presidente americano, seu comandante-chefe, estava copiando Adolf Hitler em um complô para fomentar a violência e o caos, invocar a Lei da Insurreição e tomar o poder como um ditador.

A admiração de Trump pelo Führer era aparentemente um “segredo público” em Washington. Durante uma viagem à Europa em novembro de 2018, o ex-presidente surpreendeu seu chefe de gabinete, o general dos Fuzileiros Navais, John Kelly, ao dizer que 'Hitler fez muitas coisas boas'. Essa conversa é relatada em outro livro recém-publicado, Frankly, We Did Win This Election [em português, “Francamente, nós vencemos essa eleição”], escrito pelo principal repórter de assuntos da Casa Branca do Wall Street Journal, Michael Bender. Ele relata que Trump rebateu os protestos de Kelly contra sua observação, insistindo que Hitler revitalizou a economia alemã.

A resposta da mídia americana às revelações sobre Milley foi, em grande parte, glorificar o general como um defensor da democracia americana. Um típico comentário foi a bajulação do New York Times ao descrever o novo livro como uma 'brilhante introdução a um novo herói americano, um homem que até agora não tinha recebido muita atenção: o general Mark A. Milley, o presidente do Estado-Maior Conjunto. Um título melhor para este livro poderia ter sido ‘O sr. Milley vai a Washington’'.

O próprio livro cita Milley dizendo a seus colegas oficiais: 'Eles podem tentar, mas nem f**endo que eles vão conseguir. Não tem como fazer isso sem os militares... Nós somos os caras com as armas'.

A mensagem do general é claríssima: sem os militares, fracasso; com eles, sucesso.

A verdade é que, o lado com o qual os 'caras com as armas' se alinhariam não era de forma alguma algo certo. O próprio Milley não mostrou nenhum atrito com Trump até depois do infame incidente de 1º de junho de 2020, no qual ele marchou com o presidente pela Praça Lafayette para uma sessão de fotos, possibilitada pela dispersão violenta de manifestantes pacíficos. Posteriormente, ele se sentiu obrigado a definir sua ação como um 'erro', pois ficou claro que Trump queria invocar a Lei da Insurreição e convocar os militares às ruas para esmagar os protestos por George Floyd em todo o país. Milley e outros comandantes do alto escalão temiam que tal destacamento de militares pudesse provocar uma resistência de massas e levar a fissuras profundas dentro dos próprios militares.

Imediatamente após sua derrota eleitoral, em novembro do ano passado, Trump promoveu uma perseguição generalizada das principais autoridades civis do Pentágono, substituindo-as por um grupo de aliados incondicionais e de ideólogos fascistas, a começar pelo novo secretário de defesa, o coronel aposentado das Forças Especiais, Chris Miller, em diante.

Miller, por sua vez, instituiu uma substituição sem precedentes no comando militar, elevando o Comando de Operações Especiais, composto por esquadrões de assassinos de elite como os Boinas Verdes do Exército e os Seals da Marinha, ao status de ramo separado das forças armadas. A mudança, de acordo com Miller, faria essas unidades reportarem-se diretamente a ele, eliminando 'canais burocráticos'. Trump havia repetidamente concedido favores a esta seção das forças armadas, inclusive perdoando os criminosos de guerra de dentro de suas fileiras.

Além disso, de acordo com o novo livro, a intervenção do General Milley em 6 de janeiro foi insuficiente para abreviar os 199 minutos levados entre o pedido desesperado da Polícia do Capitólio por auxílio militar e o deslocamento efetivo das tropas da Guarda Nacional às escadas do Capitólio. A decisão de enviar tropas só foi executada depois que ficou claro que a insurreição havia falhado.

O fato de tal figura militar ser agora aclamada como o baluarte da democracia americana, o 'herói' que separa os Estados Unidos do fascismo, é um forte testemunho da decomposição avançada das formas democráticas de governo no coração do imperialismo mundial.

As revelações sobre Milley também explodiram as afirmações feitas por praticamente toda a pseudoesquerda e por jornalistas 'esquerdistas' proeminentes de que era um “exagero” falar em insurreição ou golpe em relação ao ataque de 6 de janeiro ao Capitólio. Expressando sua fé complacente na estabilidade do capitalismo americano, eles adotaram uma atitude quase simpática ao ataque fascista, enquanto insistiam que uma ameaça muito maior aos direitos democráticos estava sendo colocada pelo banimento de Trump no Twitter e no Facebook.

Esses elementos apenas forneceram uma face 'esquerda' para o encobrimento generalizado impulsionado pelo Partido Democrata, que não fez nenhuma tentativa de alertar o público americano sobre a ameaça de um golpe liderado pelo adorador de Hitler na Casa Branca, com um medo muito maior de um levante de resistência vindo de baixo. Eles seguem determinados a esconder os graves e persistentes perigos mortais enfrentados pela classe trabalhadora no interesse da manutenção da 'unidade bipartidária' com os republicanos criminosos que ajudaram a orquestrar a tentativa de golpe de 6 de janeiro.

Essas ameaças não são um produto apenas do cérebro sociopata de um Donald Trump. A sua elevação à presidência dos EUA foi apenas a expressão mais grotesca do prolongado apodrecimento da democracia americana. Perigos semelhantes surgiram em todo o planeta, desde o renascimento do fascismo na Alemanha até as ameaças de golpe do presidente fascistoide brasileiro Jair Bolsonaro. Eles estão enraizados na profunda crise do capitalismo americano e mundial que se aprofundou em meio a uma pandemia global que custou a vida de mais de 4 milhões de pessoas. Enquanto mergulhou centenas de milhões de pessoas a mais na pobreza, a pandemia acelerou um crescimento espantoso da desigualdade social que é incompatível até com a mera aparência de democracia.

A única saída progressista para esta crise e a única resposta à ameaça do fascismo e da ditadura está na construção de um poderoso movimento de massas da classe trabalhadora, aliado aos trabalhadores de todo o mundo, em uma luta comum pelo socialismo. Todos aqueles que reconhecem a urgência de construir este movimento devem filiar-se ao Partido Socialista pela Igualdade.

Loading