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Prefácio: A Revolução Russa e o Inacabado Século XX

Estamos publicando o prefácio de David North de seu livro A Revolução Russa e o Inacabado Século XX, publicado em 2014.

Mais de cem anos após o início da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa, nenhum dos problemas do século XX - guerras devastadoras, crises econômicas, desigualdade social e a ameaça de ditadura - foi resolvido. Na verdade, hoje, esses problemas foram intensificados.

Contestando a visão do pós-modernismo de que toda a história é uma mera “narrativa” subjetiva, North insiste que um profundo conhecimento materialista da história é vital para a sobrevivência da humanidade no século XXI.

O livro em inglês está disponível para compra na Mehring Books.

Capa do livro A Revolução Russa e o Inacabado Século XX

Há um amplo consenso entre historiadores que o século XX - como uma época distinta política e culturalmente - começou em agosto de 1914 com o início da Primeira Guerra Mundial. Mas a questão de quando o século terminou - ou mesmo se terminou - é objeto de intensa controvérsia. A disputa não é sobre a datação formal de um dado período de cem anos. Claramente, o século XX terminou e vivemos no século XXI. Mesmo assim, apesar de estarmos chegando na metade da segunda década do novo século, nosso mundo permanece bastante preso ao campo gravitacional do século XX. Se os historiadores ainda olham com raiva para o último século, é porque a humanidade ainda está lutando - nas esferas política, econômica, filosófica e até mesmo artística - batalhas não decididas.

Até recentemente, historiadores estavam razoavelmente seguros de que o século XX finalmente jazia em paz. O colapso dos regimes stalinistas na Europa Oriental em 1989 e a dissolução da União Soviética em 1991 colocaram em movimento uma onda de triunfalismo capitalista, que engoliu, com pouca resistência, instituições acadêmicas ao redor de todo o mundo. Professores universitários rapidamente começaram a elaborar suas teorias da história alinhadas com as últimas manchetes e editoriais dos jornais.

Antes dos eventos de 1989 e 1991, a grande maioria dos especialistas acadêmicos assumiu que a União Soviética, que eles praticamente equiparavam ao socialismo, duraria para sempre. Até mesmo aqueles que estavam familiarizados com a crítica de Leon Trotsky ao stalinismo viram a sua previsão de que o regime da burocracia do Kremlin levaria, se não fosse derrubado pela classe trabalhadora soviética, à dissolução do Estado operário e à restauração do capitalismo como uma lamentação irrealista e autojustificadora do inimigo derrotado de Stalin.

À medida que os regimes stalinistas se dissolviam, no entanto, os professores e analistas de think tanks apressaram-se a proclamar não apenas que os Estados Unidos haviam alcançado uma vitória irreversível sobre o seu adversário da Guerra Fria, mas que o capitalismo havia expurgado o seu inimigo socialista do domínio das possibilidades históricas. O espírito do momento encontrou sua expressão máxima em um ensaio do analista da Rand, Francis Fukuyama, intitulado “O Fim da História?”, publicado no periódico The National Interest. Ele escreveu:

O que podemos estar testemunhando não é apenas o fim da Guerra Fria, ou o fim do período particular da história do pós-guerra, mas o fim da história como tal, isto é, o ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal como a forma final de governo humano. [1]

Para ser justo com Fukuyama, ele não defendeu que o futuro seria livre de problemas. No entanto, ele afirmou que não poderia mais haver nenhuma dúvida de que a democracia capitalista liberal, com todas as imperfeições com que é praticada nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, representava, em termos da evolução política e econômica da humanidade, um ideal insuperável. A história havia “terminado” no sentido de que não havia alternativa intelectual e política possível à democracia liberal baseada na economia de mercado capitalista. Em um livro publicado em 1992 em que desenvolveu as suas ideias, Fukuyama escreveu:

No tempo de nossos avôs, muitas pessoas razoáveis poderiam vislumbrar um futuro socialista radiante, no qual a propriedade privada e o capitalismo haviam sido abolidos, e no qual a política em si mesmo havia sido de alguma forma superada. Hoje, ao contrário, é difícil imaginar um mundo que seja radicalmente melhor do que o nosso próprio, ou um futuro que não seja essencialmente democrático e capitalista. Nesse marco, é claro, muitas coisas poderiam ser melhoradas. Poderíamos abrigar os sem-teto, garantir oportunidade para minorias e mulheres, melhorar a competitividade e criar novos empregos. Nós podemos inclusive imaginar mundos futuros que sejam significativamente piores do que aquele que agora conhecemos, nos quais a intolerância nacional, racial ou religiosa estará de novo presente, ou nos quais sejamos assolados por guerras ou desastres ambientais. Mas nós não podemos vislumbrar para nós mesmos um mundo que seja essencialmente diferente do presente, e, ao mesmo tempo, melhor. Outras épocas menos reflexivas também imaginaram serem as melhores, mas nós chegamos a essa conclusão exaustos depois de buscarmos alternativas que sentimos que deveriam ser melhores do que a democracia liberal. [2]

A análise de Fukuyama combinou o triunfalismo político burguês com o extremo do pessimismo filosófico. Poderia ter sido apropriado ao editor inserir em cada cópia do livro de Fukuyama uma receita de Prozac. Se a realidade capitalista atual fosse, para todos as intenções e propósitos, o melhor que poderia existir, o futuro da humanidade seria muito sombrio. Mas quão realista era a hipótese de Fukuyama? Apesar de afirmar inspirar-se em Hegel, o entendimento de Fukuyama da dialética era extremamente limitado. A ideia de que a história havia terminado poderia fazer sentido apenas se fosse demonstrado que o capitalismo havia de algum modo resolvido e superado as contradições internas e sistêmicas que geravam conflitos e crises. Mas até mesmo Fukuyama evitava uma conclusão tão categórica. Ele reconhecia que o capitalismo seria atormentado pela desigualdade social e seus consequentes descontentamentos. Ele chegou ao ponto de admitir a possibilidade de que a insatisfação com a “reciprocidade de reconhecimento imperfeita [isto é, a desigualdade social] será a fonte de tentativas futuras de encontrar alternativas à democracia liberal e ao capitalismo por parte da esquerda”. [3] Mas o que, então, teria sobrado da afirmação de Fukuyama de que a história havia terminado?

O historiador americano Martin Malia (1924-2004) entendeu que a teoria de Fukuyama era insustentável. Ele alertou contra os “discursos triunfalistas de que a História, depois de ter superado as ilusões tanto do fascismo quanto do comunismo, havia finalmente chegado a um porto seguro na democracia de mercado”. Malia expressou dúvidas sobre a viabilidade de “uma visão pós-marxista do fim da história ...”. [4] O capitalismo, ele temia, não se libertaria do espectro de seu antagonista histórico. “A ideia socialista estará certamente conosco enquanto a desigualdade existir, o que de fato continuará acontecendo por muito tempo”. [5] Assim, argumentou Malia, a única maneira de combater a persistência das ideias socialistas era insistir, a partir da experiência soviética, que o socialismo não poderia funcionar. Essa era a tese de The Soviet Tragedy (A Tragédia Soviética). A dissolução da União Soviética em 1991 foi o produto inevitável da Revolução de Outubro de 1917. O Partido Bolchevique havia tentado o impossível: a criação de um sistema não capitalista. Esse havia sido o erro histórico fatal de Lenin e Trotsky.

O fracasso do socialismo integral não aconteceu por causa da tentativa de aplicá-lo primeiramente no lugar errado, a Rússia, mas da ideia socialista em si. E a razão desse fracasso é que o socialismo como a negação completa do capitalismo é intrinsecamente impossível. [6]

Esse argumento foi apresentado sem nenhuma evidência, e Malia terminou o seu livro com um apontamento estranhamente ambivalente e inquietante. Ele vislumbrou a possibilidade do ressurgimento de um movimento revolucionário de massas pelo socialismo.

O sem precedentes fenômeno leninista surgiu por causa da sem precedentes crise mundial de 1914-1918. Qualquer crise global análoga poderia levar programas socialistas dormentes novamente ao maximalismo, e, consequentemente, à tentação de procurar poder absoluto para atingir fins absolutos. [7]

Enquanto Fukuyama havia argumentado que o “Fim da História” significava o fim do socialismo, Malia reconheceu decepcionado que o socialismo continuaria a atrair simpatizantes mesmo que o objetivo de uma sociedade não capitalista fosse impossível de ser realizado. O historiador britânico Eric Hobsbawm (1917-2012), que havia sido um dedicado membro do stalinista Partido Comunista Britânico por mais de meio século, tomou emprestado e modificou os argumentos tanto de Fukuyama quanto de Malia na formulação de uma teoria da história do século XX que ressoou em uma ampla camada de acadêmicos da esquerda moderada ou que haviam sido de esquerda. Hobsbawm foi um historiador com um grande conhecimento, e preso demais à metodologia empirista, para aceitar as especulações metafísicas de Fukuyama. Ele aparou a concepção de Fukuyama de modo a dar-lhe proporções mais administráveis. A dissolução da União Soviética havia significado, senão o fim da história, o fim do século XX. Em Era dos Extremos, Hobsbawm argumentou que os anos entre o início da Primeira Guerra Mundial em 1914 e a dissolução da URSS em 1991 constituíram o “Breve Século XX”, que,

Como agora podemos ver retrospectivamente, formam um período histórico coerente já encerrado... não há como duvidar seriamente de que de fins da década de 1980 e início da década de 1990 uma era se encerrou e outra nova começou. Esta é a informação essencial para os historiadores do século... [8]

A periodização do século XX feita por Hobsbawm como um “breve” período de 77 anos entre 1914 e 1991 reformulou de maneira menos estridente a rejeição de Malia do projeto revolucionário dos bolcheviques. Ao fechar as cortinas do dramático século XX com a dissolução da União Soviética em 1991, Hobsbawm proclamou o fim da época revolucionária que havia começado com o início da Primeira Guerra Mundial. Entre 1914 e 1991, o socialismo - de uma maneira ou de outra - havia sido considerado uma alternativa ao capitalismo. Esse período havia terminado, para sempre, em 1991. Hobsbawm deixou pouca dúvida de que o projeto socialista revolucionário tal como concebido por Lenin e Trotsky havia sido provavelmente uma ilusão desde o início. À luz de 1991, a tomada do poder pelos bolcheviques, três quartos de século antes, poderia ser vista como um trágico erro. Mesmo que fosse possível encontrar, nas circunstâncias que existiam em 1917, justificativa política para as decisões dos líderes bolcheviques, Hobsbawm insistiu que a Revolução de Outubro havia sido um evento absolutamente único e nunca mais capaz de ser repetido - o resultado de circunstâncias tão peculiares a ponto de não ter qualquer relevância política contemporânea.

Fukuyama e Hobsbawm colocaram o destino da União Soviética no centro de suas periodizações do processo histórico. Para Fukuyama, a dissolução significou o “Fim da História”. Para Hobsbawm, ela havia marcado o fim do “Breve Século XX”. A enorme relevância histórica que eles atribuíram à dissolução da União Soviética era, de alguma maneira, um reconhecimento atrasado de que a Revolução de Outubro havia sido o acontecimento político central do século XX. No entanto, ambas as teses do “Fim da História” e do “Breve Século XX” basearam-se em uma concepção essencialmente falsa dos fundamentos históricos da Revolução de Outubro e da natureza do Estado soviético da forma como evoluíra nas décadas seguintes à tomada do poder do Estado pelos bolcheviques em 1917. Enquanto Fukuyama havia se dedicado à teorização abstrata que prestava pouca atenção aos problemas específicos de causalidade histórica, Hobsbawm havia aceitado a visão convencional e superficial de que a revolução socialista na Rússia nunca teria acontecido se não fosse pelo enorme desastre da Primeira Guerra Mundial. “Sem o colapso da sociedade burguesa do século XIX na Era da Catástrofe”, ele escreveu, “não teria havido Revolução de Outubro nem URSS.” [9]

Isso é uma tautologia, não uma explicação. O verdadeiro desafio intelectual evitado por Hobsbawm foi identificar as contradições profundamente enraizadas de caráter global que finalmente haviam estourado em guerra mundial e revolução social. Afinal, a Primeira guerra Mundial foi precedida por anos de intensificação de conflitos entre as Grandes Potências. E, nas décadas que precederam a Revolução de Outubro, o socialismo havia emergido como um movimento internacional de massas da classe trabalhadora. Antes de 1914, os socialistas não haviam apenas esperado o colapso da sociedade burguesa, mas haviam também alertado que esse colapso poderia assumir a forma de uma guerra em toda a Europa e, até mesmo, mundial. Longe de saudarem a guerra como uma pré-condição essencial para a revolução socialista, os grandes marxistas da era pré-1914 colocaram a luta contra o militarismo imperialista no centro de seu trabalho político.

Apenas quando começou a se tornar cada vez mais claro que uma grande guerra imperialista era iminente, os socialistas começaram a considerar as implicações estratégicas, do ponto de vista da luta revolucionária, de tal evento. O ponto crucial é que mesmo antes de 1914, socialistas marxianos haviam reconhecido a origem comum da guerra e da revolução na crise histórica do sistema capitalista. Ignorando os debates pré-1914 no interior do movimento socialista, o tratamento superficial do problema de causalidade histórica dado por Hobsbawm retratou a Revolução de Outubro como o resultado meramente contingente e acidental da guerra.

Uma falha bastante séria nos argumentos de Fukuyama, Hobsbawm e, devemos acrescentar, Malia é o fato de terem identificado de maneira acrítica a URSS, em todas as etapas de sua história, com o socialismo. O regime stalinista foi aceito como o desenvolvimento inevitável do pecado original da Revolução de Outubro. Essa visão fatalista e ultradeterminista da história soviética recusava-se a considerar a possibilidade de um desenvolvimento não stalinista. Hobsbawm expressou uma completa indiferença em relação à luta das tendências opositoras dentro do Partido Comunista Soviético - especialmente aquela liderada por Leon Trotsky - à ditadura burocrática emergente encabeçada por Stalin. Ele descartou a discussão sobre alternativas ao regime de Stalin como um exercício ilegítimo de história contrafactual. Por mais intenso que fosse o conflito dentro do partido comunista, a fração de Stalin eventualmente prevaleceu; e, daquele ponto em diante, o stalinismo tinha sido - para citar a frase cínica do historiador - “a única alternativa”. O que Trotsky e a Oposição de Esquerda haviam dito e escrito na luta interna do Partido Comunista entre 1923 e 1927 era irrelevante. Para Hobsbawm, a questão era bastante direta: Stalin vencera, Trotsky havia sido derrotado. Isso era tudo. Historiadores não deveriam se preocupar com o que poderia ter sido.

O desprezo peremptório de Hobsbawm por alternativas ao stalinismo era muito menos a expressão de uma objetividade histórica intransigente do que um exercício de justificação política. Ele estava longe de ser um comentador imparcial e distanciado. Durante o longo período em que participou do movimento stalinista britânico, Hobsbawm nunca havia questionado a falsificação da história da Revolução Russa e do papel de Leon Trotsky realizada pela burocracia soviética. Hobsbawm foi enterrado em 2012 aos 95 anos de idade sem nunca reconhecer categoricamente que ele havia sustentado por décadas a história oficial stalinista da União Soviética que se baseava em mentiras.

A dissolução da União Soviética, segundo Hobsbawm, havia levado a “Era dos Extremos” ao fim. O capitalismo era novamente, como havia sido antes de 1917, “a única alternativa”. E, mesmo que não fosse improvável que a sociedade experimentasse agitações violentas em algum momento no futuro, não havia perspectiva de que um movimento socialista revolucionário de massas ressurgisse.

A narrativa de Hobsbawm levava o leitor a concluir que a humanidade havia chegado a um impasse, e que não havia esperança para a sua situação. “Nós não sabemos aonde estamos indo”, ele escreveu ao final de Era dos Extremos. Hobsbawm não enxergava nada na experiência do passado que pudesse servir como um guia positivo para o futuro. Ele tinha certeza de apenas uma coisa: a revolução socialista de Outubro de 1917 não poderia, nem deveria servir como exemplo ou guia para as lutas do futuro. “Se tentarmos construir o terceiro milênio sobre aquela base”, ele escreveu, “fracassaremos”, e “o preço do fracasso”, Hobsbawm entoou na última frase de seu longo livro, “é a escuridão”. [10]

As palestras e ensaios publicados neste volume foram, em sua maior parte, desenvolvidas em oposição à afirmação de que a dissolução da União Soviética havia levado a um fim conclusivo a época da revolução socialista mundial. Em oposição ao “Fim da História” de Fukuyama e ao “Breve século XX” de Hobsbawm, eu argumentei que a dissolução da União Soviética, enquanto certamente um evento de grande importância, não marcava o fim traumático do socialismo. A história continuaria. E, na medida em que o século XX é definido como uma época de crise capitalista intensa, dando origem a guerras e revoluções, é mais apropriado caracterizá-lo como “inacabado”. Ou seja, as contradições econômicas, sociais e políticas centrais que confrontam a humanidade no início do século XXI são, no que há de mais importante, as mesmas que a confrontaram no início do século XX. Apesar de todos os avanços científicos e inovações tecnológicas, levantes políticos e transformações sociais, o século XX terminou com um tom estranhamente inconclusivo. Nenhuma das grandes questões sociais, econômicas e políticas que estavam na base das lutas do século havia sido resolvida conclusivamente. A Primeira Guerra Mundial foi precedida, e, na realidade, iniciada por conflitos em relação às fronteiras dos Balcãs. Cerca de oitenta anos depois, a dissolução da Iugoslávia - instigada pelos EUA e pela Alemanha - iniciou uma década de conflito sangrento em relação à soberania dos Estados e à localização das fronteiras. A Primeira Guerra Mundial iniciou-se com a decisão do Império Austro-Húngaro de punir o regime nacionalista na Sérvia por dificultar a implementação de seus interesses imperiais. Oitenta e cinco anos depois, no crepúsculo do século XX, os EUA bombardearam a Sérvia sem misericórdia para obrigá-la a aceitar o rearranjo imperialista das fronteiras dos Balcãs.

Esse não é um mero caso de plus ça change, plus c’est la même chose (quanto mais as coisas mudam, mais elas permanecem as mesmas). É, na realidade, um exemplo da persistência duradoura de questões fundamentais socioeconômicas e políticas que conectam o mundo de 2014 com aquele de 1914 e dão ao século XX o seu caráter “inacabado”.

Como comparação, consideremos como um mundo do início do século XIX pareceria para aqueles que celebravam a véspera de ano novo do início do século XX. À medida que o século XIX chegava ao fim, as guerras napoleônicas haviam claramente passado para o domínio da história. A Revolução Francesa e as batalhas de Austerlitz e Waterloo pareciam para aqueles vivendo no século XX como as lutas épicas de uma era muito diferente. As personalidades de Robespierre, Danton e Napoleão continuavam a fascinar. No entanto, eles eram figuras de outro tempo e lugar histórico, distantes do mundo de 1900. É claro, seu impacto na história mundial permanecia. Mas o mundo político em que eles viveram havia sido fundamental e dramaticamente transformado no curso do século XIX. Na Europa Central e na América do Norte, os processos democrático-burgueses e a consolidação dos Estados nacionais iniciados pelas Revoluções Americana e Francesa no final do século XVIII estavam em sua maior parte completos. A Revolução Industrial havia mudado as estruturas econômicas e sociais dos países avançados. O antigo conflito entre as aristocracias feudais e a burguesia emergente havia sido ultrapassado pela nova forma da luta de classes surgida do rápido desenvolvimento do capitalismo industrial e do aparecimento do proletariado. A inadequação das ideias gerais democráticas que haviam guiado as grandes lutas do fim do século XVIII foi duramente demonstrada pelas revoluções de 1848. A Declaração dos Direitos foi escrita na linguagem das velhas revoluções democrático-burguesas. O Manifesto Comunista foi escrito na linguagem da nova revolução socialista proletária.

Na virada do século, a política havia adquirido um caráter verdadeiramente global, baseado no desenvolvimento de uma economia mundial altamente interconectada. O sistema de Estados nacionais, consolidado no curso do século XIX, passou a sofrer enormes tensões que assumiram a forma de uma luta cada vez mais dura entre os Estados capitalistas mais poderosos pela dominação mundial. Durante a primeira década do século XX, o termo “imperialismo” entrou no vocabulário geral. Nos anos que levaram à eclosão da Primeira Guerra Mundial, os fundamentos econômicos desse novo fenômeno e as suas consequências sociais e políticas foram cuidadosamente analisadas. Em 1902, o economista britânico J.A. Hobson escreveu um livro intitulado Imperialismo, em que argumentava: “A raiz econômica do Imperialismo é o desejo de fortes interesses industriais e financeiros organizados para assegurar e desenvolver em detrimento público e pela força pública mercados privados para seus bens excedentes e seu capital excedente”. [11] Em 1910, o teórico socialdemocrata austríaco Rudolf Hilferding, em seu trabalho Capital Financeiro, chamou a atenção não apenas para o caráter inerentemente antidemocrático e violento do imperialismo, mas também para suas implicações revolucionárias:

A ação da própria classe capitalista, como revelada na política do imperialismo, necessariamente leva o proletariado ao caminho da política de classe independente, que pode apenas terminar com a derrubada final do capitalismo. Enquanto os princípios do laissez-faire eram dominantes e a intervenção estatal nas questões econômicas, assim como o caráter do Estado como uma organização de dominação de classe, estava encoberta, era necessário um nível comparativamente maduro de entendimento para apreciar a necessidade da luta política, e, acima de tudo, a necessidade do objetivo político último: a conquista do poder do Estado. Não é por acaso, então, que, na Inglaterra, o país clássico da não-intervenção, a emergência da ação política independente da classe trabalhadora foi tão difícil. Mas isso agora está mudando. A classe capitalista se apodera do aparato estatal de uma maneira direta, aberta e palpável e faz dele um instrumento de seus interesses exploradores de modo aparente a todo o trabalhador, que precisa agora reconhecer que a conquista do poder político pelo proletariado é o seu interesse próprio imediato pessoal. A flagrante tomada do Estado pela classe capitalista compele diretamente todo o proletário a lutar pela conquista do poder político como único meio de pôr um fim à sua própria exploração. [12]

Em 1916, com a guerra mundial entrando em seu terceiro ano, Lenin forneceu uma caracterização sucinta do imperialismo:

A substituição da livre concorrência pelo monopólio é o aspecto econômico fundamental, a quintessência do imperialismo.

... O imperialismo como a etapa superior do capitalismo nos EUA e na Europa, e, mais tarde, na Ásia, tomou sua forma final no período entre 1898 e 1914. A Guerra Hispano-Americana (1898), a Guerra Anglo-Böer (1899-1902), a Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) e a crise econômica na Europa (1900) são os grandes marcos históricos da nova era da história mundial.

... a decadência do capitalismo é manifestada na criação de um enorme extrato de rentistas, capitalistas que vivem do “corte de cupões”. ... a exportação de capital é parasitismo elevado a um tom alto… A reação política em toda a linha é um aspecto característico do imperialismo. Corrupção, suborno em enorme escala e todo o tipo de fraude… a exploração das nações oprimidas… por um punhado de “Grandes” Potências… [13]

Em A Guerra e a Internacional, escrito em 1915, Trotsky identificou o conflito como

Uma revolta das forças produtivas contra a forma política da nação e do Estado. Ela significa o colapso do Estado nacional como uma unidade econômica independente.

… A guerra proclama a queda do Estado nacional. Ao mesmo tempo, ela proclama a queda do sistema capitalista de economia. Por meio do Estado nacional o capitalismo revolucionou todo o sistema econômico do mundo. Ele dividiu a terra toda entre as oligarquias existentes em torno dos quais estavam agrupados satélites, as pequenas nações, que se sustentavam da rivalidade entre as nações. O desenvolvimento futuro da economia mundial sobre a base capitalista significa uma ininterrupta luta por novos, e sempre novos, campos de exploração capitalistas que precisam ser obtidos de uma e mesma fonte: a Terra. A rivalidade econômica sobre a bandeira do militarismo é acompanhada por roubo e destruição que violam os princípios elementares da economia humana. A produção se revolta não apenas contra a confusão produzida por divisões nacionais e estatais, mas também contra as divisões da economia capitalista, que agora se transformaram em desorganização e caos bárbaros. [14]

Nesses escritos, nós encontramos o vocabulário da geopolítica internacional contemporânea. O mundo descrito neles é um que ainda podemos reconhecer como o nosso. É o mundo do capitalismo, das elites oligárquicas de conglomerados massivos que perseguem seus interesses globais, e de regimes autoritários. Esses trabalhos foram escritos no alvorecer de uma época - de guerras e revoluções - na qual ainda vivemos. As concepções conflitantes do século XX tem implicações profundas para o nosso entendimento do presente, e as nossas expectativas para o futuro. As teses do “Fim da História” legitimam a resignação e a complacência. O “Breve Século XX”, com sua narrativa de derrota inevitável e futilidade última da luta revolucionária pelo socialismo, promove um clima de desesperança existencial no mundo capitalista o qual - mesmo enquanto se move inexoravelmente na direção de uma catástrofe que ameaça a extinção da civilização - possuirá sempre poder suficiente para esmagar qualquer oposição de massas que venha a surgir.

A concepção do “Inacabado Século XX” rejeita o pessimismo ahistórico da intelligentsia pequeno-burguesa. O “Inacabado Século XX” localiza a humanidade em meio a um conflito contínuo e não resolvido. O resultado da crise global que começou em agosto de 1914 ainda será decidido. As alternativas históricas que confrontam a humanidade são aquelas identificadas por Rosa Luxemburgo em meio à Primeira Guerra Mundial quase um século atrás: “Ou o triunfo do imperialismo e a destruição de toda a cultura, e, como na Roma Antiga, diminuição da população, degeneração, um vasto cemitério, ou a vitória do socialismo, isto é, a luta consciente do proletariado contra o imperialismo”. [15] Para os marxistas, a categoria existencial de desesperança não tem lugar numa avaliação científica das possibilidades históricas. Nós entendemos as condições de existência em toda a sua complexidade como um processo de contradições socioeconômicas governadas por leis que podem (e devem) ser compreendidas e enfrentadas. O entendimento do caráter “inacabado” do século XX coloca enorme importância sobre o estudo de sua história. Os levantes e as lutas do passado são vistos como experiências estratégicas vitais, cujas lições precisam ser assimiladas exaustivamente pelo movimento socialista internacional.

Mais de vinte anos se passaram desde a formulação dessas interpretações conflitantes sobre o significado da dissolução da União Soviética. Qual delas resistiu ao teste do tempo? Ao contrário da expectativa de Fukuyama, a história, no período posterior à dissolução da URSS, não mostra sinais de estar chegando ao fim. Uma de suas afirmações centrais era de que o “Fim da História” seria caracterizado por um declínio na frequência das guerras. Com referências eruditas a Hume, Kant e Schumpeter, Hobsbawm defendeu que a democracia liberal seria pacífica. “A discussão então”, ele profetizou, “não é tanto que a democracia liberal restringe os instintos naturais de agressão e violência do homem, mas que ela transformou fundamentalmente os instintos mesmos e eliminou as razões para o imperialismo”. [16]

O senhor Fukuyama estava olhando para uma bola de cristal defeituosa. No momento em que o acadêmico da Rand imaginava um mundo pós-soviético de paz universal, os EUA proclamavam que não permitiriam o surgimento de um novo competidor para a sua posição de potência hegemônica mundial. Essa nova doutrina estratégica requeria uma virtual institucionalização da guerra como instrumento essencial da geopolítica americana. Apropriadamente, os anos 1990 testemunharam uma constante escalada das operações militares dos Estados Unidos. A década começou com a primeira invasão do Iraque, e terminou com a campanha selvagem de bombardeio contra a Sérvia.

A tragédia do 11 de setembro, cujas origens obscuras e execução nunca foram adequadamente explicadas, foi aproveitada pela administração Bush para declarar uma “Guerra ao Terror” sem fim e em constante expansão. Sob Obama, a caçada ensandecida por “terroristas” fundiu-se com apetites geopolíticos sem controle que tornaram o planeta inteiro - e o espaço também - cenários em potencial para operações militares dos EUA. O terrível custo humano do caos gerado pela erupção pós-soviética de militarismo imperialista é evidenciado pelo fato de que o número de refugiados no mundo, em julho de 2014, excede 50 milhões, o número mais alto desde o fim da Segunda Guerra Mundial. [17] Afeganistão e Paquistão - os alvos principais do avanço assassino de Washington pela Ásia Central - contribuem com mais de quatro milhões no número total de refugiados.

Desde que Fukuyama declarou o triunfo da democracia liberal, tornou-se mais e mais claro que ela está em crise por toda a parte, particularmente nos Estados Unidos. O Estado americano assume, de forma cada vez mais impiedosa, o caráter de um Leviatã incontrolável. A Declaração dos Direitos está sendo massacrada. O governo americano impõe sua autoridade sobre os cidadãos - não apenas para espioná-los e coletar dados referentes aos aspectos mais privados de suas vidas, mas também para assassiná-los sem o devido processo legal - que seria virtualmente inconcebível há menos de uma geração. Com relação ao “Breve Século XX” de Hobsbawm, sua vida útil e intelectual provou-se mais curta do que seu autor jamais poderia imaginar. O novo século XXI mal havia começado antes de se tornar claro que estaria preocupado com os problemas históricos do século XX. Longe de se confinar a um passado cada vez mais distante, o século XX adquiriu o caráter de uma imensa dívida que ninguém sabe como pagar.

***

Os juros dessa dívida não paga estão vencendo sob a forma de repetidas exigências de revisão da história de acordo com as agendas políticas do presente. A prática da história - ou, para chamar as coisas pelo seu nome, “pseudo-história” - está sendo cada vez mais grosseiramente subordinada aos interesses financeiros e políticos das elites dominantes. A distinção entre história e propaganda está sendo sistematicamente destruída.

O resultado da degradação da história em propaganda foi a criação de mais uma abordagem para o século XX. O “Fim da História” e o “Breve Século XX” estão dando lugar ao “Inventado Século XX”. O estabelecimento dessa escola envolve a supressão, distorção e falsificação aberta do registro histórico. O objetivo desse projeto é mitigar e legitimar os piores crimes do imperialismo capitalista do século XX e, complementarmente, criminalizar e tornar moralmente ilegítima toda a luta do movimento socialista internacional.

Nesse exercício de revisionismo histórico de direita, a revolução socialista de Outubro de 1917 é retratada como o crime seminal do século XX do qual todos os horrores subsequentes - incluindo, em particular, o regime nazista de Hitler e o Holocausto - inevitavelmente, e até legitimamente, se seguiram. Antes da dissolução da União Soviética, uma perversão tão grotesca da história do século XX teria sido considerada, especialmente na Alemanha, intelectualmente ilegítima e merecedora de desprezo.

Em meados dos anos 1980 e início dos anos 1990, a Alemanha foi palco de uma famosa Historikerstreit - um “Conflito de Historiadores” - que foi provocado pela publicação de um ensaio pelo historiador Ernst Nolte. Ele argumentou que os crimes do regime nazista deveriam ser vistos como uma resposta compreensível à Revolução de Outubro, à Guerra Civil Russa de 1918-1921 e à barbárie do bolchevismo soviético. Defendendo uma reavaliação simpática do Terceiro Reich, Nolte escreveu que as ações nazistas haviam sido “a reação nascida do medo às ações de aniquilação que tiveram lugar durante a Revolução Russa”. Nolte continuou: “A demonização do Terceiro Reich é inaceitável. Pode-se falar de demonização quando o Terceiro Reich é negado a toda a humanidade, uma palavra que simplesmente significa que tudo que é humano é finito e, portanto, não pode nem ser completamente bom, nem completamente mal. Nem completamente luz, nem completamente escuridão.” [18]

Os escritos de Nolte representaram a tentativa mais explícita de um membro do establishment acadêmico alemão, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, para organizar uma defesa de Hitler e do Terceiro Reich. Ele até mesmo justificou o brutal tratamento contra os judeus europeus baseando-se no fato de que Chaim Weizmann, o líder do Congresso Sionista Mundial, havia declarado em 1939 que os judeus deveriam lutar ao lado do Reino Unido contra a Alemanha. [19] Em uma biografia grosseiramente tendenciosa de Martin Heidegger de 1992, Nolte defendeu o antissemitismo do filósofo e o seu apoio ao nazismo. “Em comparação [com o comunismo], a revolução alemã do nacional-socialismo foi modesta, e até mesmo comedida em seus... objetivos - a restauração da honra e igualdade de direito da Alemanha - e moderada em seus métodos”. [20]

Os escritos de Nolte encontraram uma oposição de princípios na comunidade acadêmica alemã e americana. Ele foi acusado de fazer apologia histórica em nome do nazismo, e sua reputação como especialista foi abalada. Hoje, no entanto, a estrela de Nolte está em ascensão. Agora, aos 91 anos de idade, ele está sendo saudado como um profeta, cujo tempo finalmente chegou. Em sua edição de 14 de fevereiro de 2014, a Der Spiegel, a revista de notícias de maior circulação na Alemanha, apresentou uma matéria de capa na qual se afirmou que as visões de Nolte foram confirmadas. A Der Spiegel afirmou que, quando comparada aos crimes de Stalin, a escala dos crimes de Hitler era pequena. Entre os historiadores entrevistados pela Der Spiegel estava o professor Jörg Baberowski, que é o chefe do Departamento de Estudos da Europa Oriental da prestigiosa Universidade Humboldt em Berlim. Defendendo Nolte, com quem sempre concordou, Baberowski declarou: “Hitler não era nenhum psicopata, e não era perverso. Ele não queria que as pessoas falassem sobre o extermínio dos judeus à mesa”. [21] Justificando os esforços de Nolte para minimizar a escala e o caráter único dos crimes do Terceiro Reich, Baberowski afirmou: “Em termos históricos, ele estava correto”. [22]

Sobre o que Nolte estava certo? Entrevistado pela Der Spiegel, Nolte afirmou que Hitler foi forçado à guerra pela intransigência do Reino Unido e da Polônia. Mas isso não é tudo. A Der Spiegel registrou que Nolte “insistiu em atribuir aos judeus ‘a sua parcela do gulag’”, porque alguns bolcheviques eram judeus. Com base nessa lógica, os judeus foram, ao menos, parcialmente responsáveis por Auschwitz. Um pouco surpreendido com a franqueza de Nolte, a Der Spiegel reconheceu que a sua posição “há muito tempo tem sido um argumento de antissemitas”. [23] Mas esse foi o limite da crítica da Der Spiegel, e as declarações de Nolte e Baberowski não encontraram virtualmente nenhum questionamento público. O fato de que os argumentos de Nolte e Baberowski foram, em grande medida, tolerados é uma expressão de um processo não apenas intelectual, mas político. Durante o último ano houve uma campanha política determinada para construir o apoio popular para um ressurgimento do militarismo alemão. Liderado por Joaquim Gauck, o presidente do país, os principais jornais exigiram que o povo alemão supere seu pacifismo pós-Segunda Guerra Mundial e aceite que a Alemanha tenha interesses legítimos de uma grande potência que requerem operações militares para além de suas fronteiras.

É significativo que o ressurgimento dos chamados para que a Alemanha procure novamente seu “lugar ao Sol” tenha sido acompanhado por esforços para deslegitimar o consenso histórico há muito estabelecido - desde a publicação em 1961 do estudo magistral e pioneiro do historiador Fritz Fischer Os objetivos da Alemanha na Primeira Guerra Mundial (Griff nach der weltmacht) - de que o regime imperial do Kaiser Guilherme II teve enorme responsabilidade pela eclosão da guerra em 1914. Fischer, falecido em 1999, é agora alvo de incessantes ataques com o objetivo de destruir sua reputação póstuma como acadêmico.

A atual crise na Ucrânia exemplifica a subordinação da história a agendas geopolíticas contemporâneas. A propaganda política por parte dos Estados Unidos e da Alemanha do golpe direitista de fevereiro de 2014 como uma revolução democrática, no qual organizações fascistas tiveram enorme papel, foi facilitada pela falsificação flagrante do registro histórico. Esse processo é objeto do penúltimo ensaio deste volume.

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Este volume compõe uma parte do registro da luta empreendida pelo Comitê Internacional da Quarta Internacional para defender a verdade histórica ao longo dos últimos vinte anos contra as distorções e falsificações que se seguiram à dissolução da União Soviética. Essa era uma luta para a qual o movimento trotskista estava bem-preparado. Desde a formação da Oposição de Esquerda em 1923, os trotskistas foram forçados a defender o registro histórico e o legado da Revolução de Outubro das mentiras da burocracia stalinista. A reação burocrática contra o programa e os princípios da Revolução de Outubro começou no início dos anos 1920 com a distorção das lutas entre frações pré-1917 no interior do movimento socialdemocrata russo com o objetivo de apresentar Trotsky como o opositor inveterado de Lenin. Desde então, as posições políticas de Trotsky foram deturpadas para retratá-lo como um inimigo brutal do campesinato russo. Após a expulsão de Trotsky do Partido Comunista Russo em 1927 e de seu exílio da URSS em 1929, todos os eventos da história soviética foram falsificados de acordo com os interesses do regime stalinista. Até Sergei Eisenstein teve que reeditar sua obra-prima cinematográfica de 1927, Dez dias que abalaram o mundo, de modo que não houvesse imagens de Trotsky, o homem que havia de fato liderado e organizado a insurreição de Outubro de 1917 em Petrogrado.

As mentiras e falsificações dos anos 1920 - que foram empregadas para remover Trotsky do poder e para repudiar o programa do internacionalismo socialista sobre o qual se baseou a Revolução de Outubro - se transformaram nos anos 1930 nas armações dos Processos de Moscou, que foram encenados por Stalin como uma cortina de fumaça pseudolegal para exterminação em massa da geração de marxistas que havia liderado a classe trabalhadora ao poder, formado a Internacional Comunista e criado a União Soviética. As mentiras sobre história, como explicou Trotsky, tem um papel vital como cimento ideológico da reação política. Seja na forma de armações jurídicas, propaganda estatal e midiática, ou distorção do registro histórico por acadêmicos pequeno-burgueses inescrupulosos, seu propósito é legitimar os crimes das elites dominantes, desorientar a opinião pública e privar a grande massa do povo da informação e conhecimento que necessitam para organizar uma luta efetiva e revolucionária contra o sistema capitalista. Deste modo, a luta contra a falsificação da história não é um componente secundário, muito menos opcional do trabalho político. A defesa da verdade histórica - especialmente aquela relativa à Revolução de Outubro e às experiências estratégicas do movimento socialista internacional no século XX - é necessária para um renascimento da consciência socialista na classe trabalhadora.

Nos anos finais da União Soviética, houve um grande aumento do interesse popular por todo o país pela história da Revolução Russa. Depois de décadas de supressão, artigos sobre Trotsky e, de maneira mais importante, trabalhos de Trotsky tornaram-se amplamente disponíveis. Isso deixou a liderança soviética ansiosa. Em oposição à orientação pró-capitalista persistente da burocracia stalinista, que procurava convencer o público que uma reversão à economia de mercado era o único caminho adiante, os escritos históricos e a história da luta internacional contra o stalinismo tornaram claro que uma alternativa ao regime burocrático era possível.

Entre os objetivos centrais do Kremlin em levar adiante a dissolução da URSS estava o de impedir o desenvolvimento de uma perspectiva socialista na classe trabalhadora. Assim, a dissolução foi acompanhada por uma nova campanha de falsificação histórica de que a União Soviética era, desde o início, um projeto condenado. O surgimento dessa nova “Escola Soviética de Falsificação Histórica” moveu-se pela mesma trajetória que os escritos de Fukuyama, Malia e Hobsbawm. Todos esses trabalhos traziam a mensagem básica de que a dissolução da União Soviética era a consequência inevitável da Revolução de Outubro, e que nenhum outro resultado seria possível. O stalinismo não era uma perversão da Revolução de Outubro, mas, na verdade, sua consequência necessária. Não havia alternativa.

No desenvolvimento da concepção do “Inacabado Século XX”, as palestras e ensaios deste livro reafirmam que o registro histórico provou de modo conclusivo que de fato houve uma alternativa ao stalinismo. Eu desafiei a afirmação de Hobsbawm de que qualquer consideração de alternativas ao stalinismo seria um exercício inútil e ilegítimo intelectualmente de história contrafactual. “A história deve partir do que aconteceu”, ele escreveu. “O resto é especulação”. [24]

Chamo a atenção a essa passagem em particular porque ela tipifica uma abordagem para a história da União Soviética que é generalizada e enganosa. Hobsbawm não recorre à falsificação aberta do material histórico, mas ele peca contra a verdade histórica ao omitir fatos importantes e apresentar um registro incompleto. As omissões de Hobsbawm contribuem para a falsificação da história.

Infelizmente, em muitas palestras e ensaios, eu fui compelido a lidar não apenas com omissões, como também com distorções flagrantes dos fatos históricos. Houve vezes em que foi inevitável me impressionar com o atrevimento com o qual alguns indivíduos que se denominam historiadores puderam colocar no papel declarações que são comprovadamente falsas e assim deixar para a posteridade evidências de sua desonestidade intelectual.

A prática da falsificação foi auxiliada pela influência de diversas escolas do pós-modernismo, cujo impacto acumulativo no estudo e na escrita da história tem sido nada menos que catastrófico. A conexão entre essa regressão da filosofia e a falsificação da história não pode ser superestimada. Façamos novamente referência ao trabalho do professor Baberowski, um discípulo de Foucault, que descreveu em seu Der Sinn der Geschichte (O Significado da História) a metodologia que guia seu trabalho:

Na realidade, o historiador não tem nada a ver com o passado, mas apenas com sua interpretação. Ele não pode separar o que chama de realidade das declarações das pessoas que viveram no passado. Porque não existe realidade separada da consciência que a produz. Precisamos nos libertar da concepção de que podemos entender através da reconstrução dos eventos transmitidos a nós por documentos o que a Revolução Russa realmente foi. Não há realidade sem sua representação. Ser um historiador significa, para usar as palavras de Roger Chartier, examinar o domínio das representações. [25] (ênfase nossa)

Baberowski evoca a proposição mais extrema do solipsismo idealista - não existe realidade fora e separada do pensamento - para legitimar o repúdio da historiografia como reconstrução fiel de um passado que existiu objetivamente. A história, diz, existe apenas como uma construção subjetiva. Não há verdade histórico-objetiva que retrate de modo preciso condições sociais, econômicas e políticas como elas um dia realmente existiram. Esse tipo de realidade histórica não é do interesse de Baberowski. “Uma história é verdadeira”, Baberowski diz, “se ela serve às premissas colocadas pelo historiador”. [26] Esse rebaixamento da história torna aceitável a escrita de narrativas fraudulentas que servem a objetivos planejados subjetivamente - por exemplo a reabilitação do regime criminoso de Hitler. Não é por acaso que o professor Baberowski tenha se juntado a pessoas como Ernst Nolte.

Gerações futuras terão dificuldades para entender como reacionários na filosofia, como Jean François Lyotard, Richard Rorty e Foucault, trabalhando com conceitos desenterrados de dentro do “porão do pensamento burguês” [27], vieram a exercer uma influência tão perigosa e ampla nas últimas décadas do século XX e na primeira década do XXI. Seria uma grande satisfação se os ensaios e palestras deste volume que lidam com questões filosóficas pudessem ajudar estudiosos do futuro a entender a patologia política e social da pandemia pós-moderna.

A abordagem de polêmica deste livro é, acredito, adequada tanto em relação ao conteúdo de que trata quanto para a época em que vivemos. A história se tornou um campo de batalha. “A tradição de todas as gerações mortas coloca-se como um pesadelo no cérebro daqueles que vivem”, escreveu Marx. Passados quase quinze anos do novo século, nem políticos, nem historiadores podem se libertar dos pesadelos do século passado. Os conflitos e crises cada vez maiores do século XXI estão invariavelmente ligados à disputa sobre a história do século XX. À medida que lutas políticas contemporâneas remetem a questões históricas, o tratamento dessas questões é cada vez mais abertamente determinado por considerações políticas. O passado é falsificado segundo o interesse da reação política do tempo presente. Ao expor ao menos as mais gritantes falsificações da história do século XX, o autor espera que este livro possa se tornar uma arma na luta revolucionária do futuro.

***

O material contido nesse livro é apresentado, com algumas poucas exceções, de forma cronológica. Isso permite que o leitor acompanhe o trabalho do Comitê Internacional da Quarta Internacional em questões históricas ao longo de duas décadas. Como parte do processo normal de edição, eu fiz mudanças em relação ao estilo onde necessário para facilitar a transposição frequentemente difícil de palestras em auditórios de onde são ouvidas para as páginas impressas onde são lidas.

As palestras e ensaios refletem os frutos da colaboração intensa com camaradas e pensadores no movimento trotskista nos EUA e internacionalmente. Tenho discutido e trabalhado sobre a história trágica e tortuosa do movimento de trabalhadores alemão com Ulrich Rippert, secretário-nacional do Partei für Soziale Gleichheit, há cerca de quarenta anos. Sou muito agradecido a ajuda que recebi de Frederick S. Choate, cujo conhecimento da história Russa e Soviética é uma fonte intelectual há anos. Agradeço à incansável equipe editorial da Mehring Books, Jeannie Cooper e Heather Jowsey, que conseguiram organizar, a partir de distintas obras, um volume coerente e com as devidas referências. Também gostaria de agradecer a Linda Tenenbaum, do Partido Socialista pela Igualdade na Austrália, pelo cuidado com que revisou muitos dos ensaios e palestras deste volume à medida que se transformavam de rascunho até a forma final.

Finalmente, é necessário chamar a atenção para o papel que teve o falecido historiador e sociólogo russo-soviético Vadim Rogovin no desenvolvimento do trabalho histórico do CIQI. Em fevereiro de 1993, nos encontramos pela primeira vez em Kiev. Ele havia completado um estudo intitulado Havia uma alternativa? sobre a luta empreendida pela Oposição de Esquerda contra o regime stalinista entre 1923 e 1927. Como resultado de nossas discussões lá e em Moscou, Vadim resolveu trabalhar com o Comitê Internacional no desenvolvimento de uma “Contraofensiva Internacional Contra a Escola Pós-Soviética de Falsificação Histórica”. Apesar de ter sido acometido por um câncer terminal em 1994, ele realizou palestras e encontros organizados pelo Comitê internacional por todo o mundo. O estudo realizado por Vadin da luta de Leon Trotsky contra o stalinismo tornou-se um trabalho de sete volumes. Até o presente, não há nenhum outro trabalho sobre a União Soviética escrito depois de 1991 que seja remotamente igual - em estilo e conteúdo - a essa obra-prima da literatura histórica.

Em janeiro de 1998, dividi uma mesa com Vadin pela última vez. Ele viajou com sua esposa Galya para Sydney, na Austrália, para falar em uma escola organizada pelo Partido Socialista pela Igualdade. Ao concluir a sua palestra, Vadim anunciou que dedicaria o último volume do seu trabalho histórico ao Comitê internacional. Oito meses depois, em dezembro de 1998, Vadim morreu em Moscou aos 68 anos de idade. É à memória desse lutador pela verdade histórica que eu dedico este volume.

Referências

1. The National Interest 19 (Verão de 1989), p. 3.

2. Francis Fukuyama, The End of History and the Last Man (Nova York: The Free Press, 1992), p. 46.

3. Ibid., p. 299.

4. Martin Malia, The Soviet Tragedy (Nova York: The Free Press, 1994), p. 514.

5. Ibid.

6. Ibid., p. 225.

7. Ibid., p. 520.

8. Eric Hobsbawm, The Age of Extremes (Nova York: Pantheon Books, 1994), p. 5.

9. Ibid., p. 8.

10. Ibid., p. 585.

11. J.A. Hobson, Imperialism: A Study (Cambridge: Cambridge University Press, 2010), p. 113.

12. Rudolf Hilferding, Finance Capital (Londres: Routledge & Kegan Paul, 1981), p. 368.

13 V.I. Lenin, Collected Works, Volume 23 (Moscou: Progress Publishers, 1964), pp. 105–106.

14. Leon Trotsky, The War and the International (Colombo: A Young Socialist Publication, Junho de 1971), pp. vii-viii.

15. Rosa Luxemburg, The Junius Pamphlet (Colombo: Young Socialist Pamphlet, undated), p. 17.

16. The End of History and the Last Man, p. 263.

17. Disponível em: http://www.bbc.com/news/world-27921938

18. Ernst Nolte. “Between Historical Legend and Revisionism? The Third Reich in the Perspective of 1980”. In: Forever In the Shadow of Hitler? (Amherst, NY: Humanity Books, 1993), pp. 14–15

19. Citado por Geoffrey Eley. “Nazism, Politics and the Image of the Past: Thoughts on the West German Historikerstreit 1986–1987”, In: Past and Present, N. 121, Novembro de 1988, p. 175.

20. Ernst Nolte. Martin Heidegger. Politik und Geschichte im Leben und Denken. Citado por Richard Wolin. In: The American Historical Review. Volume 98, N. 4, Outubro de 1993, p. 1278.

21 Disponível em: http://www.spiegel.de/international/world/questions-of-culpability-in-wwi-still-divide-german-historians-a-953173.html

22. Ibid.

23. Ibid.

24. Eric Hobsbawm. On History (Londres: Weidenfeld & Nicolson, 1997), p. 249.

25 Jörg Baberowski. Der Sinn der Geschichte: Geschichtstheorien von Hegel bis Foucault (Monique: C.H. Beck, 2005), p. 22. Tradução de D. North.

26. Ibid., p. 9.

27. A frase foi cunhada por G.V. Plekhanov.

28. Karl Marx e Frederick Engels. Collected Works, Volume 11 (Nova York: International Publishers, 1979), p. 103.

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