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Perspectivas

O 11 de setembro, a “Guerra ao Terror” e a criminalização da política americana

Publicado originalmente em 12 de setembro de 2021

No dia 11, o ex-presidente americano, George W. Bush, deu o principal discurso da comemoração de 20 anos dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 em um memorial em Shanksville, no estado da Pensilvânia. Acompanhado pelo ex-vice-presidente, Dick Cheney, e pela atual vice-presidente, Kamala Harris, Bush declarou: 'Nas semanas e meses após os ataques de 11 de setembro, eu tive o orgulho de liderar um povo incrível, resiliente e unido'.

O discurso de Bush foi precedido por um editorial de opinião da ex-Conselheira de Segurança Nacional, Condoleezza Rice, no Wall Street Journal, intitulado 'Estamos mais seguros hoje do que em 11/9', defendendo a política da administração Bush em resposta ao 11 de setembro. Rice esteve em todos os programas de televisão de domingo promovendo as invasões do Iraque e do Afeganistão e opinando sobre a política externa americana.

Bush, Rice e Cheney foram os arquitetos de uma série de enormes violações da constituição dos Estados Unidos e do direito internacional, bem como de crimes contra as populações do Iraque, do Afeganistão e dos próprios Estados Unidos. Eles foram pioneiros na institucionalização da tortura, sequestros, espionagem governamental sem mandato e ilegal e no lançamento de guerras de agressão que mataram mais de um milhão de pessoas.

Da esquerda para a direita, ex-presidente Bill Clinton, Hillary Clinton, ex-presidente Barack Obama, Michelle Obama, president Joe Biden, Jill Biden, ex-prefeito da cidade de Nova York Michael Bloomberg, Diana Taylor, presidente da Câmara dos Deputados Nancy Pelosi, e líder democrata no senado Charles Schumer durante hino nacional na Cerimônia de Comemoração do 11/9 no Memorial e Museu Nacional do 11/9 em Nova York. (Chip Somodevilla/Pool Photo via AP)

Aproveitando-se do choque e do medo criados pelos ataques do 11 de setembro, Bush e seus co-conspiradores implementaram, em um período de dias, um conjunto de planos desenvolvidos por anos. O comportamento criminoso que passou a dominar a Casa Branca foi expresso por Cheney, que declarou em uma entrevista em televisão nacional poucos dias após os ataques: 'Temos que desenvolver o lado negro... Vamos passar um período nas sombras'.

Assim o fizeram. Em segredo, Bush, Cheney e seus aliados construíram masmorras onde, repetidamente, soldados e agentes da inteligência dos EUA sufocaram, eletrocutaram, esfaquearam, bateram, forçaram em pequenas caixas, cobriram com excremento, sodomizaram e obrigaram os presos a se masturbar diante de câmeras.

Em segredo, eles criaram o programa de vigilância Stellarwind, que permitiu ao governo lançar a versão eletrônica de uma batida policial sem mandato na casa de todas as pessoas do planeta, fossem elas cidadãs americanas ou não. Em segredo, eles inventaram provas de que o governo iraquiano possuía armas de destruição em massa, bombardeando o público americano com mentiras para lançar uma criminosa guerra de agressão.

No entanto, nas palavras de Harris, que discursou depois de Bush e repetiu os mesmos pontos quase palavra por palavra, o legado da resposta americana ao 11 de setembro foi fundamentalmente positivo.

'Nos dias após o 11 de setembro de 2001, todos nós fomos lembrados que a união é possível nos EUA. Fomos lembrados também que a união é indispensável nos EUA. Ela é essencial para a nossa prosperidade compartilhada, para a nossa segurança nacional e para a nossa posição no mundo... Quando estamos juntos, lembramos olhando para trás que a grande maioria dos americanos estava unida com um propósito'.

Biden reafirmou as declarações de Harris em um vídeo gravado, dizendo: 'A união é nossa maior força'.

A 'união' elogiada por Bush, Harris e Biden é um mito. As ações ditatoriais e as guerras criminosas do governo Bush provocaram enorme oposição, com os primeiros protestos contra a guerra do Afeganistão ocorrendo menos de duas semanas após o 11 de setembro. Depois, houve a marcha de milhões de pessoas nos Estados Unidos e no mundo inteiro contra a guerra do Iraque ‒ os maiores protestos globais contra a guerra na história até aquele momento.

Porém, o verdadeiro conteúdo desse mito de 'união' é a união dentro do governo para levar a guerra adiante e realizar um ataque massivo contra os direitos democráticos. Isso levou à aprovação quase unânime da Lei Patriota, que viola seções decisivas da Constituição, tendo sido aprovada no senado americano por 98 a 1, e a Autorização para o Uso da Força Militar de 2001, aprovada por 98 a 0.

As referências ao mito da 'união nacional' são há muito tempo uma marca das comemorações do 11 de setembro, mas nunca foram tão vazias quanto hoje. Os tributos de Bush, Biden e Harris à 'união' foram feitos oito meses após a tentativa de golpe de Estado de Trump em 6 de janeiro de 2021, quando uma fração significativa da classe dominante procurou incitar uma insurreição fascista para impedir a transferência de poder, ameaçando no processo matar membros do Congresso e até mesmo o ex-vice-presidente, Mike Pence.

Trump, por sua vez, saudou o aniversário do 11 de setembro entrando sorrateiramente na cidade de Nova York, discursando diante de policiais fardados, e repetindo a sua alegação de que a eleição de 2020 foi roubada. Ironicamente, o ex-prefeito de Nova York, Rudy Giuliani, retratado na mídia como o 'prefeito dos EUA' e a personificação da 'união' após os ataques de 11 de setembro, respondeu ao aniversário com um sinistro discurso fascista, atacando seus oponentes dentro do aparato de Estado.

Mais fundamentalmente, em seus chamados por união, os representantes da classe dominante olham com nervosismo para o descontentamento social que se instala dentro dos Estados Unidos. Eles esperam, de alguma forma, improvisar juntos uma estrutura política para continuar o projeto do imperialismo americano de dominação mundial e suprimir a oposição interna.

Com esse objetivo, todas as frações da mídia nos EUA se uniram para defender o legado da 'Guerra ao Terror'. 'As narrativas que retratam os últimos 20 anos de combates como uma série interminável de erros carecem de equilíbrio e perspectiva', declarou em um editorial o Washington Post, alinhado aos democratas. Defendendo Bush e seus co-conspiradores, o Post declarou: 'Muitas falhas que são hoje atribuídas à arrogância e desonestidade dos líderes americanos podem ser explicadas pelo menos em parte pela natureza dos próprios confrontos'.

O Post não está defendendo somente a administração Bush, mas o próprio establishment midiático. Afinal, os mesmos jornais, emissoras de televisão e colunistas que defenderam e justificaram os crimes da administração Bush e as suas mentiras sobre 'armas de destruição em massa' continuam trabalhando até hoje. Algumas figuras, como o ex-repórter do New York Times, Michael R. Gordon, transitaram diretamente entre as mentiras sobre armas iraquianas de destruição em massa e a teoria de conspiração de que a pandemia de COVID-19 foi iniciada por um laboratório em Wuhan, na China.

Os Estados Unidos podem estar pondo fim à guerra do Afeganistão, mas as mudanças que ocorreram durante a 'Guerra ao Terror' entraram permanentemente na corrente sanguínea da política americana. A defesa dos crimes da administração Bush pelo establishment midiático americano não se referem somente ao passado, mas também ao futuro.

Como de costume, o Wall Street Journal foi mais explícito: 'Aquilo que salvou o 11 de setembro foi a demonstração de coragem e de resiliência americanas... Mas, por um período, o país também se uniu por um propósito político... Se outro ataque vier, talvez com armas biológicas que matam como a COVID-19, nós teremos a mesma determinação e resiliência? A história sugere que vamos descobrir'.

Em outras palavras, virá o momento em que outro incidente obscuro e inexplicável poderá ser usado para alterar radicalmente a estrutura da política americana. As ferramentas da guerra de agressão e das violações ditatoriais dos direitos constitucionais implementadas como parte da 'Guerra ao Terror' serão úteis ao capitalismo americano no futuro.

A discussão interminável sobre 'união' ocorre à medida que os Estados Unidos estão mais divididos por classes do que em qualquer momento na história pós-Segunda Guerra Mundial. A oligarquia financeira tem usado a pandemia da COVID-19 para se enriquecer enormemente, enquanto os trabalhadores são forçados a trabalhar em condições inseguras, sujeitos à morte em larga escala e às privações econômicas. Vendo-se cercada pela oposição política, a classe dominante americana busca a 'união', banindo as críticas ou a investigação, por menor que seja, de seus crimes passados.

Porém, não importa como a mídia americana e o establishment político tentem contornar essas questões, os crimes cometidos em nome da 'Guerra ao Terror' terão enormes conseqüências. Esses crimes tiraram a máscara da democracia americana e do capitalismo americano, expondo-os como uma ditadura implacável da oligarquia financeira.

Na medida em que a classe trabalhadora começa a entrar em lutas sociais, cada vez mais os trabalhadores verão elas não apenas como lutas contra os indivíduos que os empregam, mas contra a ordem social que criou os horrores de Guantánamo, Abu Ghraib e Faluja.

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