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Pandora Papers revelam que Ministro da Economia Paulo Guedes lucrou com conta em paraíso fiscal enquanto a miséria assola o Brasil

Publicado originalmente em 9 de outubro de 2021

Ministro da Economia Paulo Guedes (à direita) com o presidente Jair Bolsonaro (Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

O recente vazamento dos chamados Pandora Papers pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) revelou que o Ministro da Economia do Brasil, Paulo Guedes, mantém desde 2014 uma soma de US$ 9,5 milhões investidos em uma empresa chamada Dreadnoughts International, sediada nas Ilhas Virgens Britânicas. Estes ativos foram protegidos da enorme desvalorização de 40% do real desde que Guedes assumiu o cargo no início do governo Bolsonaro, em janeiro de 2019.

No mesmo período, houve uma enorme crise econômica que afundou 112 milhões de brasileiros - mais da metade da população - na insegurança alimentar, enquanto 19 milhões enfrentam a miséria e a fome. O número de desempregados atinge 14% da força de trabalho, ou 14 milhões de trabalhadores, enquanto outros 20 milhões estão subempregados.

O vazamento também revelou que, de 2004 a 2019, uma conta offshore foi mantida pelo presidente do Banco Central do Brasil, Roberto Campos Neto. Ela foi fechada 14 meses depois de ele assumir o cargo.

Estas revelações são um testemunho da desigualdade social avassaladora que é o traço definidor do capitalismo brasileiro. Sendo apenas a 12ª maior economia do mundo, o Brasil ostenta o segundo maior número de bilionários detentores de ativos offshore identificados nos Pandora Papers. Cerca de 60.000 brasileiros mantêm US$ 192,6 bilhões (mais de um trilhão de reais) isentos de impostos no exterior.

As revelações dos Pandora Papers provocaram um profundo nervosismo nos círculos dominantes brasileiros. Os principais veículos da imprensa corporativa - Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, O Globo e Valor – inicialmente ignoraram o escândalo ou se concentraram inteiramente em autoridades estrangeiras e celebridades internacionais do esporte e da música pop. De modo infame, o diário financeiro Valor entrevistou Campos Neto na segunda-feira e não lhe fez uma única pergunta sobre as revelações. Nenhum desses grandes veículos corporativos faz parte do ICIJ, que é representado no Brasil pelos sites Metrópoles e Poder360 e pela revista piauí.

Os principais críticos do governo na imprensa corporativa, como Miriam Leitão, do Globo, apressaram-se em isentar Guedes de qualquer delito, enfatizando que ele havia declarado devidamente seus bens no exterior à Receita Federal e ao Comitê de Ética Pública da Presidência da República. Esta última é responsável por avaliar possíveis “conflitos de interesse” envolvendo os altos funcionários do estado e membros do ministério, que estão proibidos por lei de manter interesses financeiros diretamente afetados por suas decisões políticas - como a taxa de câmbio do real, no caso do Ministro da Economia e do presidente do Banco Central. Em todo caso, o comitê é conhecido por avalizar qualquer “ausência de conflito de interesses” que seja declarada pelos membros do ministério.

As principais autoridades do país também tentaram minimizar a questão. Falando pelo Congresso, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, declarou que “aspectos pessoais” relativos a Guedes “não interferem na pauta do país”. A coletiva de imprensa na qual ele deu a declaração havia sido convocada para anunciar um grande avanço nas negociações entre estados, municípios e o governo federal em uma reforma tributária que se arrasta desde que Bolsonaro tomou posse, apesar do fato de Guedes a ter definido repetidamente como uma prioridade do governo.

A imprensa corporativa e as principais autoridades blindaram Guedes por uma preocupação de que sua queda geraria mais instabilidade financeira. A oposição burguesa e a grande imprensa têm feito oposição ao governo Bolsonaro principalmente por sua incapacidade de consolidar as “reformas de livre mercado” patrocinadas por Guedes.

A principal força política da oposição, o Partido dos Trabalhadores (PT), se alinhou totalmente a esta oposição de direita ao governo Bolsonaro, apesar de sua crítica nominal à “insensibilidade social” de Guedes. Há quase três anos o partido tem centrado suas críticas a Bolsonaro na acusação de que ele é incapaz de impedir a enorme fuga de ativos financeiros do país e da bolsa de valores de São Paulo, que tem feito baixar o valor do real, e que ele tem prejudicado o comércio com a China e a Europa devido a sua retórica reacionária anti-chinesa e sua demagogia anti-ambiental.

Em um nível mais fundamental, porém, todas estas forças estão preocupadas com o efeito explosivo do fato de Guedes ter protegido seu patrimônio privado no exterior enquanto sustentava no país uma austeridade brutal, a alta inflação e a política de imunidade de rebanho de Bolsonaro - e que esta é uma prática comum de toda a elite dominante do país. Isso inclui os proprietários dos principais veículos de comunicação, tais como os proprietários do grupo Globo, a família Marinho, os proprietários da CNN Brasil, a família Menin, e da rádio de extrema direita Jovem Pan.

De modo ainda mais significativo, isso inclui também vários empresários investigados pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado sobre a política assassina de imunidade de rebanho de Bolsonaro em relação à pandemia da COVID-19. Alguns dos nomes de destaque nos Pandora Papers são grandes apoiadores do governo, como Otávio Fakhoury e Luciano Hang, que são acusados de financiar os atos de extrema-direita do presidente, e os irmãos Parrillo, proprietários da operadora de planos privados de saúde Prevent Senior. Todos eles depuseram recentemente perante a CPI. Os irmãos Parrillo são acusados de organizar experimentos bárbaros com falsas curas para a COVID-19 e de esconder as mortes resultantes em seus hospitais.

O próprio Guedes foi recentemente levado ao centro da CPI, com a advogada que representa um grupo de médicos que trabalhava para a Prevent Senior declarando em seu testemunho que os experimentos criminosos em seus hospitais foram coordenados com o ministério de Guedes para dar garantias à opinião pública de que a economia poderia ser aberta sem provocar mortes em massa, pois “curas” para a COVID-19 estariam amplamente disponíveis.

Estes escândalos cada vez maiores estão surgindo contra o pano de fundo não apenas das mortes em massa e da destruição de famílias inteiras por causa da pandemia da COVID-19, mas também da miséria em massa dos trabalhadores. Na semana passada, circularam pelo mundo todo imagens horríveis de trabalhadores no Rio de Janeiro procurando por restos de ossos e carcaças dentro de um caminhão de entrega de carne, enquanto programas de culinária na TV mostravam como usar pés de frango em receitas de sopa para contornar os preços impraticáveis da carne.

Também na semana passada, no estado de Santa Catarina, no sul do país, um dos principais produtores de proteína animal e um dos estados mais ricos do Brasil, tornou-se viral uma imagem de um açougue que havia colocado uma placa avisando aos clientes que os ossos eram “vendidos e não doados”, o que levou o Ministério Público do estado a intervir para proibir a cobrança pelas sobras. No estado do Pará, no norte, onde a indústria pesqueira domina o mercado de proteínas, carcaças de peixe estão sendo vendidas.

Os preços da carne subiram 30% no Brasil em uma base anual. Isso está muito acima da inflação recorde de 10,42% registrada para setembro em relação a setembro de 2020, o maior valor anualizado desde fevereiro de 2016, meses antes da presidente do PT, Dilma Rousseff, ter seu impeachment inciado pela Câmara sob acusações falsas de violação das regras orçamentárias.

Considerando apenas o mês de setembro, a taxa de inflação foi de 1,16%, o valor mais alto desde que o real foi estabelecido em 1994, acabando com a hiperinflação no Brasil. Ao mesmo tempo, a taxa de inflação anual para a carne é inferior à inflação de 40% para a gasolina, e de 37% para o óleo diesel, o principal combustível utilizado no transporte interno de mercadorias no país, que é altamente dependente do uso de caminhões. Alimentos básicos como arroz e feijão subiram mais de 30%, o gás de cozinha 32%, e a eletricidade doméstica 21%. A pior seca dos últimos 90 anos no Cone Sul, causada pelo aquecimento global, secou represas hidrelétricas e rios, afetando a produção de energia, a agricultura e a navegação fluvial entre as principais regiões agrícolas do Brasil, Paraguai e Argentina.

Na terça-feira, apesar das tentativas da imprensa e das autoridades de minimizar ou ignorar as revelações, seu impacto explosivo forçou a Câmara a convocar Guedes para falar sobre o assunto em uma sessão plenária agendada para 19 de outubro. É a primeira vez na história brasileira que um ministro encarregado da economia é chamado ao Congresso para questionamentos sobre tais assuntos. Uma pesquisa realizada pela Realtime BigData na sexta-feira constatou que 64% dos entrevistados acreditam que Guedes deveria ser demitido.

Não está claro se os deputados pressionarão Bolsonaro a demitir Guedes a fim de se dissociar do escândalo. Qualquer que seja seu destino, está claro que o Congresso, incluindo a oposição liderada pelo PT, está trabalhando para encobrir a crise intratável do capitalismo brasileiro e internacional, negando a conexão entre a especulação financeira e o sistema capitalista no Brasil e internacionalmente.

Após anunciar que o PT pediria à Procuradoria Geral da República que investigasse Guedes, o líder do partido na Câmara, o deputado Bohn Gass, tentou explicar a alta inflação brasileira pelo lucro de Guedes ao apostar contra o real. Ele tuitou, em uma tentativa estúpida de ironia: “Vocês entenderam? Quanto mais valorizado o dólar, mais rico fica o Paulo Guedes, que tem dinheiro aplicado em paraíso fiscal.” A ex-presidente Dilma Rousseff, entrevistada na quinta-feira pela agência de notícias TVT, ligada aos sindicatos da CUT, disse que Guedes exemplifica a “insensibilidade da elite” que “tem origem na escravidão”, ou seja, que não é capitalista o suficiente.

A “indignação” fingida do PT é ridícula. Guedes foi o fundador de um dos maiores bancos de investimento do Brasil, o BTG Pactual - após ter sido treinado como economista em Chicago e trabalhar sob o ditador fascista Augusto Pinochet no Chile em meio a suas políticas de “choque neoliberal”. A história de sua empresa no exterior, a Dreadnoughts International, começa em 2014, quando o Banco Central do Brasil, sob a presidência de Dilma, iniciou uma venda maciça de reservas para acalmar os mercados e evitar a desvalorização do real.

O PT, cuja função principal tem sido servir aos interesses financeiros nacionais e internacionais, foi completamente incapaz de conter a fuga de capitais. Tendo ganho a reeleição com um falso programa anti-austeridade em outubro de 2014, Rousseff fez uma reforma ministerial e nomeou como ministro da Fazenda outro economista formado em Chicago, Joaquim Levy, que seria nomeado pelo próprio Guedes como presidente do banco estatal de desenvolvimento do país, o BNDES, quando ele assumiu o cargo. Em 1º de setembro, a oposição liderada pelo PT votou maciçamente a favor da reforma do imposto de renda apresentada por Guedes, que manteve os ativos offshore isentos de impostos.

Uma verdadeira luta contra a desigualdade social crescente no Brasil e internacionalmente exige uma ruptura com o capitalismo e todos os seus defensores nacionalistas, como o PT brasileiro, que tem como única preocupação evitar que a revelação dos enormes recursos não tributados dos ricos provoque uma explosão social.

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