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Perspectivas

A cúpula de Glasgow, as mudanças climáticas e a necessidade do socialismo

Publicado originalmente em 30 de outubro de 2021

Chefes de Estado, ministros e milhares de outros delegados de todos os cantos do mundo se encontram em Glasgow, Escócia, para duas semanas de discussões sobre as mudanças climáticas a partir deste fim de semana.

Bombeiros trabalham em local de incêndio florestal perto da aldeia Kyuyorelyakh, na área de Gorny Ulus, a oeste de Yakutsk, na Rússia, quinta-feira, 5 de agosto de 2021. (AP Photo/Ivan Nikiforov)

Este ano marca a 26ª rodada de negociações após a ratificação por mais de 190 países da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática, que foi acordada no Rio de Janeiro em 1992. Nos 29 anos seguintes de negociações internacionais, os governos capitalistas chegaram a um fracasso atrás do outro, deixando o mundo na trajetória de uma catástrofe. A sessão deste ano em Glasgow promete mais do mesmo.

Muito, entretanto, mudou desde a última sessão de negociações em 2019. Nos últimos dois anos, assistimos a uma série crescente de desastres climáticos em todas as regiões do globo, incluindo enormes incêndios florestais da Austália ao oeste dos Estados Unidos, enchentes devastadoras na Europa, Ásia e Américas, e ondas de calor mortíferas em todo o mundo.

Os avanços científicos reforçaram ainda mais nosso conhecimento sobre as mudanças climáticas e seu impacto sobre a humanidade. O último relatório abrangente do Painel Internacional sobre Mudança Climática, divulgado em agosto, confirmou que os efeitos são “generalizados, rápidos e se intensificam, e algumas tendências são agora irreversíveis”. O mundo já aqueceu em 1,2 graus Celsius em relação aos níveis pré-industriais. A inércia do sistema climático levará a um aumento da temperatura global de 1,5 °C dentro das próximas duas décadas, se não mais cedo.

Nem os terríveis avisos dos cientistas nem as consequências do clima extremo alteraram fundamentalmente a patética resposta global às mudanças climáticas. A paralisia internacional em face da crise climática é agravada pela ausência de qualquer resposta global à pandemia. A própria cúpula de Glasgow foi adiada por um ano, na esperança de que o atraso permitisse uma resposta coletiva para acabar com as mortes em massa. Essas esperanças se quebraram por um ano ainda mais desastroso, com o número global de mortes mais do que dobrando em 2021.

O principal item da agenda de Glasgow é a revisão das metas de emissão de gases de efeito estufa a que cada nação se comprometeu após o acordo de Paris, seis anos atrás. Estes compromissos são inteiramente voluntários e não têm nenhum mecanismo de cobrança. Apesar de sua frouxidão, as aspirações coletivas de Paris não levam o mundo nem perto do objetivo declarado de limitar o aumento da temperatura a 2 °C, e muito menos à meta demandada pelos cientistas de 1,5 °C.

Uma análise do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente divulgada esta semana concluiu que, se os países conseguirem cumprir seus compromissos atuais, é provável que as temperaturas ainda subam 2,7 °C neste século. A realidade, porém, é ainda pior. A maioria das nações fez muito pouco para transitar à energia renovável, aumentar a eficiência e implementar outras medidas necessárias para atingir seus parcos objetivos. Se as políticas atuais continuarem em voga, o mundo provavelmente ultrapassará 3 °C de aquecimento até 2100, uma magnitude de mudança que coloca em questão o futuro da civilização.

A solução oferecida em Glasgow é que os governos estipulem novas metas mais agressivas visando trajetórias de aquecimento menos catastróficas. Estas metas permanecem, entretanto, inteiramente voluntárias e abertas a trapaças cínicas na contabilidade. O Brasil, por exemplo, revisou para cima sua estimativa de emissões feita em 2005, de modo que, em uma base percentual, permanece no caminho para atingir seu compromisso.

O forte contraste entre as promessas de reduzir rapidamente a poluição por carbono e a realidade das políticas que preservam o status quo dos combustíveis fósseis é exemplificado pelos Estados Unidos, atualmente responsáveis por mais dióxido de carbono na atmosfera do que qualquer outra nação. O Presidente Biden chegou em Glasgow na sexta-feira com promessas de reduzir as emissões de gases de efeito estufa para metade dos níveis de 2005 até o final da década e de zerar as emissões líquidas até 2050. Enquanto isso, ele está no meio de negociações com seu próprio partido para secar suas propostas de gastos sociais e com infraestrutura. O financiamento restante para enfrentar a mudança climática é de apenas US$ 550 bilhões em 10 anos, uma fração do que o país gasta em preparativos de guerra em um único ano. A maior parte deste financiamento para o clima é dedicada a isenções de impostos às empresas.

Por trás das falsas promessas e do teatro sobre compromissos nacionais, explosivas rivalidades nacionais permeiam a cúpula de Glasgow. Para o imperialismo norte-americano, a mudança política do governo Trump, que se retirou do acordo de Paris, para o de Biden, que se refiliou a ela, não reflete uma giro rumo à coordenação internacional para resolver um problema catastrófico para a humanidade. Ao contrário, ela reabre uma frente diplomática na luta pelo domínio econômico e geopolítico, visando acima de tudo combater a ascensão da China.

Biden deixou isso claro em um discurso na quinta-feira, no qual começou declarando seu objetivo de “transformar a crise climática em uma oportunidade de nos colocar em um caminho não só para competir, mas para vencer a competição econômica do século XXI contra a China e todos os outros países do mundo”.

Seus comentários vieram na sequência da recente publicação de um conjunto de relatórios encomendados pela Casa Branca sobre as implicações da mudança climática para a segurança nacional. A até então inédita Estimativa da Inteligência Nacional sobre a mudança climática resumiu o que está em jogo em Glasgow. “É provável que as tensões geopolíticas cresçam à medida que os países discutem cada vez mais sobre como acelerar as reduções nas emissões líquidas de gases de efeito estufa que serão necessárias para atingir as metas do Acordo de Paris”, observou o relatório. “O debate se centrará em quem tem mais responsabilidade de agir e pagar – e com que rapidez – e os países competirão para controlar os recursos e dominar as novas tecnologias necessárias para a transição à energia limpa”.

Cálculos semelhantes são feitos por todos os governos imperialistas, que são impulsionados sobretudo por uma tentativa de obter vantagens econômicas para suas indústrias nacionais e de fortalecer sua posição geopolítica.

Enquanto isso, o abismo entre as ações dos governos reunidos em Glasgow e o que é necessário para salvar a humanidade continua a crescer.

Nos últimos meses, a Agência Internacional de Energia, uma agência consultiva intergovernamental, lançou um roteiro para zerar emissões líquidas do setor energético global até 2050. O setor de energia é responsável por três quartos das emissões globais de carbono. Tal trajetória é necessária para limitar o aquecimento a 1,5 °C.

O relatório estabelece que “um grande número de mudanças sem paralelo em todas as partes do setor energético precisaria ser realizado simultaneamente, em um momento em que o mundo está tentando se recuperar da pandemia de Covid-19”. Apenas nos próximos nove anos, o seguinte é necessário:

  • cessar imediatamente as aprovações de todos os novos campos de exploração de petróleo e gás e minas de carvão;
  • mais do que duplicar a participação das energias renováveis na eletricidade para 60%;
  • triplicar o investimento anual no setor de energia elétrica;
  • modernização de metade dos edifícios existentes nas economias avançadas e de um terço nos países em desenvolvimento;
  • duplicação da fabricação global de baterias a cada dois anos;
  • quintuplicação das instalações solares; e
  • transição para 50% de novos veículos de passageiros movidos a eletricidade, partindo de 2,5% em 2019.

Alguém acha que os governos capitalistas ao redor mundo são capazes de concretizar isso? As partes na cúpula de Glasgow não são capazes nem de concordar em cumprir suas promessas extremamente insuficientes, muito menos de implementar uma transformação sistêmica.

A pandemia demonstrou as verdadeiras prioridades da classe dominante, mesmo quando confrontada com mortes em massa. As medidas mínimas para enfrentar a saúde pública foram acompanhadas por uma intervenção maciça dos bancos centrais na crise que eclodiu no sistema financeiro em março de 2020, liberando fundos praticamente ilimitados para apoiar os bancos e instituições financeiras. Com os mercados temporariamente estabilizados, a prioridade mudou para a reabertura da economia na maioria das áreas do globo. O vírus teve permissão para se espalhar e sofrer mutações. Como resultado, milhões de pessoas estão mortas, sem um fim à vista. Ao mesmo tempo, a desigualdade social atingiu novos patamares obscenos.

Os desafios fundamentais colocados pela pandemia são os mesmos que os colocados pela mudança climática. Assim como o coronavírus não conhece fronteiras, o dióxido de carbono também não. Uma resposta efetiva aos problemas básicos de nossa época deve romper as fronteiras nacionais estabelecidas sob o capitalismo.

Eles exigem uma redistribuição massiva de recursos, direcionando recursos sociais para atender às necessidades sociais e não ao lucro privado.

Os enormes investimentos necessários para uma rápida transição para uma economia de energia renovável são impossíveis enquanto as alavancas fundamentais da economia forem controladas de forma privada e operadas no interesse do lucro.

O fracasso em lidar com a mudança climática não é causado pelo homem em abstrato. É causada por um sistema social particular, o capitalismo. As contradições inerentes ao capitalismo – (1) a divisão de um mundo economicamente integrado em países rivais e (2) uma produção socializada acompanhada da propriedade privada dos meios de produção – representam um obstáculo que devemos derrubar se quisermos evitar as implicações catastróficas da mudança climática. Isso requer um plano econômico racional coordenado em nível global. Exige a luta pelo socialismo.

Na sua raiz, a mudança climática é fundamentalmente uma questão de classe. No interesse de quem a sociedade opera? O capitalismo, operando em nome de uma pequena mas fabulosamente rica elite dominante, provou estar totalmente falido. A tarefa urgente é voltar-se para a classe trabalhadora, a força social cujos interesses fundamentais se alinham com a reconstrução da sociedade de modo a satisfazer as necessidades sociais, não à geração de lucro privado.

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