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Governo peronista é castigado nas eleições argentinas de meio de mandato em meio a recordes de pobreza

Publicado originalmente em 16 de novembro de 2021

A coalizão governista peronista Frente de Todos do Presidente Alberto Fernández sofreu uma derrota espantosa nas eleições legislativas de meio de mandato realizadas no domingo, perdendo quase 6 milhões de votos. Isto representa 35% dos votos que os peronistas ganharam nas eleições para a Câmara dos Deputados em 2019, quando Fernández foi eleito no primeiro turno com 48% dos votos.

As eleições de domingo renovaram metade da Câmara dos Deputados em todo o país e um terço do Senado. Neste último caso, uma comparação direta com os resultados anteriores não pode ser feita, pois apenas um terço das províncias, que não haviam votado em 2019, renovaram seus senadores. As eleições também renovaram uma série de legislativos provinciais e municipais.

Alberto Fernández e Cristina Fernández de Kirchner após a vitória peronista em 2019.

A enorme derrota sofrida pela coalizão de Fernández resultou na perda de 10 deputados e dois senadores, o que significa a perda da maioria no Senado pelos peronistas, pela primeira vez desde o retorno ao governo civil em 1983.

A derrota eleitoral de domingo é ainda mais significativa por ter ocorrido em condições nas quais todas as frações do peronismo estão unidas na coalizão governista Frente de Todos, sob a liderança política da ex-presidente Cristina Kirchner, vice-presidente de Fernández e presidente do Senado.

A derrota do governo significará um impasse político para os dois anos restantes da presidência de Fernández, uma vez que a principal oposição burguesa ao governo, a coalizão Juntos por el Cambio liderada pelo antecessor de Fernández – o bilionário de direita Mauricio Macri – também perdeu 2 milhões de votos e não conseguiu obter a maioria no Congresso.

As eleições também proporcionaram a maior votação de todos os tempos para a pseudoesquerdista Frente de Esquerda e dos Trablhadores - Unidade (FITU), que aumentou seus votos em 82% em comparação com 2019, para mais de 1,3 milhões de votos. Isto duplicará sua bancada na Câmara para quatro deputados. A FITU obteve 25% dos votos para a lista do partido na província de Jujuy, ao norte do país, onde o sindicalista Alejandro Vilca assumirá um dos seis assentos da província na Câmara federal.

Logo atrás dos pseudoesquerdistas ficou a lista de extrema-direita La Libertad Avanza, do economista fascistoide Javier Milei, apoiador de Donald Trump e do brasileiro Jair Bolsonaro. Ela obteve três assentos e mais de um milhão de votos. Em sua campanha, Milei liderou atos radicalmente anticomunistas em que seus partidários cantavam ameaçadoramente que “os esquerdistas estão com medo”.

Os resultados de La Libertad Avanza são vistos como um terremoto político num país que há apenas 38 anos era governado por uma ditadura militar-fascista que matou 30.000 trabalhadores e ativistas socialistas e de esquerda. Esse regime ficou conhecido por métodos particularmente cruéis, como roubar os filhos dos presos políticos e executar prisioneiros jogando-os de aviões no meio do Oceano Atlântico, onde não seria possível encontrar provas dos crimes do regime.

Milei tinha como companheira na lista a advogada Victoria Villaruel, que há décadas se especializa na defesa de ex-militares acusados pelos tribunais argentinos de participar da “guerra suja” conduzida através de sequestros e execuções. Ela sustenta que o golpe de 1976 e o regime de terrorismo de estado que se seguiu foram uma reação necessária às ações de guerrilheiros peronistas. Em seu comício da vitória na casa de entretenimento Luna Park em Buenos Aires, Milei falou com uma bandeira de Gadsden ao fundo, enquanto bandeiras dos Estados Confederados da América eram vistas na multidão, que segundo relatos cantava “basta de negros”, um insulto racista dirigido, na Argentina, contra populações indígenas e imigrantes com origens indígenas de outras nações da América do Sul.

Tal terremoto político tem como pano de fundo uma situação social explosiva. A pobreza atinge hoje mais de 40% dos argentinos, contra 35% em 2019. Esta é a maior taxa desde 2004, na sequência da pior crise econômica da história do país em 2002, quando o PIB caiu 11%. No ano passado, a Argentina sofreu a segunda pior queda do PIB em sua história, de 10%.

A recuperação de quase 10% deste ano pouco fará para compensar as perdas dos trabalhadores após três anos consecutivos de recessão, com quedas do PIB de 2,6% e 2,2% em 2018 e 2019. Mais de 60% das crianças são agora pobres, enquanto o desemprego se situa em 10%. Um terço dos empregados está no chamado setor informal, sem acesso a aposentadoria e outros direitos sociais. A inflação é de 55% ao ano, enquanto crescem os sinais de que o governo será forçado a aceitar uma grande desvalorização da moeda nacional, o peso, que está sendo negociado no mercado negro por metade da taxa de câmbio oficial.

O governo também está enfrentando hostilidade popular devido à forma desastrosa com que lidou com a pandemia da COVID-19, que causou mais de 115.000 vítimas no país, que tem 45 milhões de habitantes. Isso representa quase 260 mortes por 100 mil habitantes - acima dos 232 mortos por 100 mil nos Estados Unidos e atrás apenas do Peru e do Brasil na América Latina.

Tal catástrofe social ocorreu apesar do uso pela administração Fernández de todas as ferramentas falidas no arsenal nacionalista-corporativista do peronismo, incluindo leis que proíbem demissões, exigem aumentos salariais no setor privado e controles de preços sobre bens de consumo considerados “essenciais’, uma proibição das exportações de carne e um limite à quantia de dólares que cada pessoa pode comprar, em uma economia que funciona na prática com duas moedas. Nada disso impediu o salto de mais de 5% na taxa de pobreza. Este ano, a taxa de inflação projetada no orçamento federal será quase metade da taxa real, o que significa que todos os ajustes obrigatórios nos salários e programas sociais ficarão muito atrás do aumento dos preços.

Na sua última tentativa de apelar aos grandes empresários por “estabilidade”, em outubro, o governo anunciou que estava exigindo o congelamento dos preços de 1.400 produtos, vendo logo em seguida uma inflação de 3,5% sobre os preços de setembro. A exigência de congelamento de preços foi uma resposta à derrota acachapante sofrida pelo governo nas Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias (PASO) de setembro, nas quais cada partido precisava superar um limiar de 1,5% dos votos para poder lançar seus candidatos nas eleições legislativas. Agora, tais apelos corporativistas fictícios - quase ritualísticos - às grandes empresas pelo congelamento de preços serão utilizados pelo governo para atrasar seus já ineficazes decretos de aumento salarial.

As eleições também trouxeram ao primeiro plano a dívida da Argentina com o FMI, de mais de US$ 50 bilhões, a maior quantia já emprestada pelo Fundo a um país. O acordo foi firmado em 2018 pelo ex-presidente Mauricio Macri, que perdeu sua tentativa de reeleição para Fernández em 2019. Durante sua campanha presidencial, os peronistas jogaram politicamente com a ideia de dar um calote na dívida, classificando-a como “ilegítima” e até mesmo “ilegal,” com base no apoio aberto da administração Trump ao acordo, que se deu em oposição às dúvidas iniciais sobre sua viabilidade levantadas pela ala técnica do FMI.

Ao tomar posse, Fernández iniciou um brutal programa de austeridade dirigido pelo FMI, com a promessa de que os cortes nos programas de alívio da pobreza, o restabelecimento dos impostos sobre produtos básicos e o fim dos reajustes das aposentadorias segundo a inflação seriam compensados por um crescimento econômico maior, que nunca veio. Quanto à “legitimidade e legalidade” da dívida, um conceito central para a campanha peronista, o novo governo colocou a questão de lado, considerando-a irrelevante e alegando que o único caminho adiante seria atrair investimentos estrangeiros e mostrar “credibilidade” através do pagamento da dívida.

Quando a pandemia atingiu o país, a administração Fernández culpou a oposição de direita liderada por Macri e sua demagogia sobre as “liberdades individuais”, semelhante à da extrema-direita europeia, brasileira e americana, pelo fracasso de seu governo em deter a propagação catastrófica do vírus no país.

Diante de uma derrota impressionante nas PASO em setembro, o governo tentou reviver a demagogia anti-FMI. Cristina Kirchner, que desempenha um papel mais direto nas organizações “de base” corporativistas do peronismo, dos sindicatos aos chamados “movimentos sociais”, escreveu uma carta aberta tentando jogar a culpa por todos os problemas do governo na incapacidade de Fernández de ouvir seus conselhos e declarando esperar que ele “honrasse a decisão” tomada “individualmente” por ela “de apresentar Alberto Fernández como candidato a presidente de todos os argentinos,” além de criticar o fato de que o governo estava contingenciando verbas que estavam disponíveis.

Kirchner deixou claro que ela “não estava pedindo radicalismo”, mas que o governo seguisse o que ela disse que “está acontecendo amplamente nos Estados Unidos e na Europa, ou seja, o estado agindo para mitigar as trágicas consequências da pandemia”. O governo então pagou US$ 1,9 bilhões ao FMI sob mais falsas promessas de que a austeridade seria aliviada pelas negociações com o Fundo. Espera-se agora que o governo aceite uma ampla desvalorização do peso para mitigar a discrepância entre seu valor nominal e aquele do mercado negro, trazendo mais inflação e empobrecimento.

O significado histórico das eleições de 2021 não pode ser subestimado. Elas expuseram ainda mais a falência histórica do peronismo, que sob a liderança de Kirchner e durante a chamada “Maré Rosa” conseguiu se dissociar por um breve período das brutais medidas de austeridade do ex-presidente Carlos Menem, que levaram à crise de 2001.

Desde seus primeiros dias, o retorno do peronismo foi saudado pelos mercados financeiros como um possível meio de impor medidas de austeridade e ao mesmo tempo manter a classe trabalhadora sob controle através dos sindicatos corporativistas peronistas. O surgimento de forças abertamente fascistoides e pró-ditadura, na forma de La Libertad Avanza de Javier Milei, é um alerta claro dos preparativos dentro das classes dirigentes para enfrentar o crescimento da luta de classes com os métodos mais brutais.

Essas advertências devem ser estendidas ao papel pernicioso desempenhado pela pseudoesquerdista FITU. Apesar de suas referências nominais ao socialismo e à independência de classe, as forças da FITU são uma coleção de renegados pequenos-burgueses do trotskismo, liderados pelo Partido dos Trabalhadores Socialistas (PTS), especializados em sabotar as lutas da classe trabalhadora, fomentando ilusões de que os sindicatos peronistas, reacionários e anticomunistas, podem ser empurrados para a esquerda. Esse mesmo papel foi desempenhado no período anterior ao golpe de 1976, permitindo aos esquadrões da morte da Aliança Anticomunista Argentina (AAA), auxiliados pelos peronistas, decapitar as organizações da classe trabalhadora antes da tomada do poder pelos militares. Mais tarde, nos anos 80, o predecessor da FITU, o morenista Movimento ao Socialismo (MAS), apoiou o Partido Comunista Argentino e o governo Alfonsín em sua anistia aos torturadores e assassinos da ditadura, após a revolta militar fascistoide dos caras pintadas.

A campanha da FITU foi orientada a canalizar o descontentamento com a administração Fernández para o seu próprio cretinismo parlamentar e sua própria luta por mais assentos no Congresso argentino. Os trabalhadores argentinos devem estudar a história de traições das organizações da FITU e tomar uma decisão consciente de construir uma nova direção da classe trabalhadora, baseada em uma perspectiva socialista e internacionalista - uma seção argentina do Comitê Internacional da Quarta Internacional.

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