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Perspectivas

A pandemia global e a Primeira Guerra Mundial: a classe dominante decide pela morte

Publicado originalmente em 25 de novembro de 2021

O World Socialist Web Site tem frequentemente comparado a pandemia global do coronavírus com a Primeira Guerra Mundial.

A pandemia, como escreveu em maio de 2020 o Presidente do Conselho Editorial Internacional do WSWS, David North, é um “evento desencadeador”, análogo ao assassinato do arquiduque austríaco, Francisco Ferdinando, em 28 de junho de 1914, que desencadeou uma cadeia de eventos que culminou na eclosão de uma convulsão mundial. “O assassinato acelerou o processo histórico”, explicou North, “mas atuou sobre condições socioeconômicas e políticas preexistentes e altamente inflamáveis. O mesmo pode ser dito da pandemia”.

“Quando a Primeira Guerra Mundial começou”, explicou uma resolução adotada pelo Partido Socialista pela Igualdade em julho de 2020, “todos os países em guerra consideravam que ela terminaria relativamente rápido. Entretanto, o conflito se arrastou ano após ano, porque as elites capitalistas dominantes, que determinavam a política governamental, consideravam o sacrifício da vida de milhões de trabalhadores um custo aceitável para alcançar seus interesses geoestratégicos no conflito”.

À medida que se aproxima a conclusão do segundo ano da pandemia e as mortes em massa continuam aparentemente sem fim, a analogia com a Primeira Guerra Mundial está sendo trágica e brutalmente confirmada.

Trabalhadores médicos vestem o corpo de uma vítima da COVID-19 no necrotério de um hospital em Kakhovka, Ucrânia, na sexta-feira, 29 de outubro de 2021. (AP Photo/Evgeniy Maloletka)

O número de mortos da pandemia já é comparável ao número de mortos da Primeira Guerra Mundial. As estimativas do total de mortes de militares durante os quatro anos da guerra variam entre 9 e 11 milhões. As mortes de civis são estimadas entre 6 e 13 milhões, elevando o número total estimado de mortos a 15 a 24 milhões.

Em comparação, o número de mortes causadas pela pandemia de COVID-19 está hoje em 5,2 milhões mundialmente, de acordo com números oficiais. Sabemos, entretanto, que esse número é uma grande subestimação da realidade. O Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde da Universidade de Washington estima que o número total de mortes atribuíveis à COVID-19 (“excesso de mortes”) é superior a 12,1 milhões, e possivelmente chega a 17,5 milhões.

E a pandemia está apenas chegando ao início de seu terceiro ano. O terceiro ano da Primeira Guerra Mundial começou no verão de 1916. Os dois primeiros anos da guerra haviam testemunhado uma série de banhos de sangue terríveis, incluindo ofensivas devastadoras das forças alemãs contra a Rússia e a Primeira Batalha do Marne, travada nos arredores de Paris, com mais de meio milhão de baixas.

Porém, com a entrada da guerra em seu terceiro ano, a escala de mortes aumentou. Na Frente Leste, a Ofensiva Brusilov, envolvendo os exércitos da Rússia de um lado e da Alemanha e Áustria-Hungria do outro, causou mais de 2,3 milhões de vítimas entre junho e setembro de 1916. É estimado que a Batalha de Somme – uma ofensiva britânico-francesa contra a Alemanha na Frente Ocidental, travada durante 140 dias entre 1º de julho e 18 de novembro de 1916 – tenha tido 1 milhão de baixas, incluindo mais de 310 mil mortos.

A Batalha do Somme foi iniciada cinco meses após o início da Batalha de Verdun, uma ofensiva alemã contra a França lançada em fevereiro de 1916 que terminou 302 dias depois. O massacre sangrento causou 750 mil baixas, incluindo mais de 300 mil mortos. O historiador Alistair Horne (em The Price of Glory: Verdun 1916) observa que “Verdun ganharia a reputação invejável de ser o campo de batalha com a maior densidade de mortos por metro quadrado provavelmente já conhecida”.

À medida que os corpos se amontoavam aos milhões, a vida humana parecia não valer nada. Em seu “Memorando de Natal” de dezembro de 1915, o General Erich von Falkenhayn, Chefe do Estado-Maior Alemão, delineou o objetivo, posto em prática em Verdun, de “sangrar a França até a morte”. A Unternehmen Gericht (Operação Julgamento) de Falkenhayn colocou em prática a estratégia do materialchlacht, ou batalha de atrito. Um número massivo de baixas era esperado em ambos os lados, mas a batalha seria considerada vitoriosa se as baixas do outro lado fossem maiores.

A mesma indiferença pela vida humana foi expressa do lado da classe dominante francesa. Horne relata as instruções dadas por um coronel francês – operando sob a direção do futuro líder da França de Vichy, General Philippe Pétain – aos batalhões enviados para serem mortos pela artilharia alemã em Verdun: “Vocês têm uma missão de sacrifício; aqui está um posto de honra onde eles querem atacar. Todos os dias vocês terão baixas. ... No dia em que eles quiserem, eles os massacrarão até o último homem, e é seu dever tombar”.

A classe trabalhadora internacional enfrenta hoje uma situação análoga. Durante os últimos meses, ocorreu uma reorientação homicida na política de classe dominante. Governos de todo o mundo estão abandonando qualquer pretensão de acabar com a pandemia. O sinal foi dado por Biden em julho, quando ele anunciou que os EUA estavam “declarando nossa independência de um vírus mortal... Podemos viver nossas vidas, nossos filhos podem voltar à escola, nossa economia está acelerando de volta”.

A “independência” do vírus não significava a diminuição das infecções e mortes, mas que nenhum esforço significativo seria feito para deter a morte em escala massiva. A mesma política foi implementada na Europa e uma enorme pressão foi aplicada sobre os países que haviam seguido uma estratégia de eliminação do vírus (incluindo a Nova Zelândia e outros países da Ásia-Pacífico) para mudarem de curso. Lockdowns, rastreamento de contatos, testes e todas as outras medidas de saúde pública essenciais para controlar e eliminar o vírus foram sistematicamente abandonados.

As consequências foram ao mesmo tempo previsíveis e catastróficas. A alegação de que o vírus poderia ser barrado apenas pela vacinação é desmascarada pelo ascenso massivo de novos casos em todo o mundo.

Na Europa, 4.200 pessoas estão morrendo todos os dias. Na terça-feira, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou uma declaração alertando que a situação deve piorar drasticamente. A OMS projeta que o número oficial de mortes na região europeia, incluindo a Rússia, chegará a 2,2 milhões até a primavera, ou seja, a OMS prevê outras 700.000 mortes somente na Europa durante os próximos quatro meses.

Repetimos: até a primavera, a OMS prevê que 700.000 pessoas morrerão na Europa de COVID-19, uma média de mais de 5.000 mortes a cada dia. O número de mortos previsto nos próximos quatro meses é aproximadamente o dobro do número de mortos da Batalha de Verdun, que durou 10 meses.

Nem a Alemanha, nem nenhum dos governos europeus fará nada para deter a catástrofe. “Retiramos medidas como lockdowns, fechamento de escolas e empresas ou toques de recolher”, proclamou o membro do Partido Democrático Liberal, Marco Buschmann, o futuro ministro da justiça do novo governo alemão comandado por Olaf Scholz do Partido Social Democrata (SPD).

Nos Estados Unidos, mais de 1.000 pessoas estão morrendo diariamente. Os novos casos diários estão em 90.000 e estão aumentando. Em Michigan, agora o centro da pandemia nos EUA, mais de 17.000 novos casos foram reportados durante os últimos dois dias, juntamente com 280 mortes. A média de novos casos em Michigan é mais alta hoje do que em qualquer ponto de toda a pandemia, com uma grande porcentagem consistindo de infecções “de escape”, ou seja, de pessoas já vacinadas.

O número oficial de mortes por COVID-19 nos EUA, atualmente em quase 800.000, provavelmente ultrapassará 1 milhão até a primavera de 2022. O total de mortes em 2021 já é superior ao número de mortos em 2020, restando mais de um mês no ano.

Ainda mais alarmante, a Academia Americana de Pediatria (AAP) relatou esta semana que as infecções infantis estão novamente em ascensão. Houve 141.905 novos casos de COVID-19 pediátricos para a semana que terminou em 18 de novembro, acima dos 122.000 da semana anterior. Mais de 150 crianças menores de 18 anos estão sendo hospitalizadas todos os dias, e o número total de mortes de crianças subiu para 636.

No entanto, o establishment político e a mídia declararam que nada pode ou será feito. A perspectiva homicida, e na realidade criminosa, da classe dominante foi articulada em um artigo publicado ontem no The Atlantic por Juliette Kayyem, ex-secretária assistente do Departamento de Segurança Interna sob Obama e presidente do programa de Segurança Interna da Harvard Kennedy School of Government.

Sob o título “A pandemia está terminando com uma lamúria”, Kayyem reconhece que mais de 1.000 americanos estão morrendo todos os dias, mas insiste que é hora de declarar o fim da guerra e seguir em frente.

Kayyem, com credenciais liberais impecáveis, afirma: “Embora o risco ainda exista, o país precisa ser empurrado para a fase de recuperação – e somente líderes eleitos podem dar esse empurrão”. Ela acrescenta que “a questão de quando uma crise termina não é uma questão objetiva que Anthony Fauci ou qualquer outro especialista científico possa decidir. O que é um acordo aceitável entre prevenir contaminações e promover a retomada das rotinas pré-pandêmicas? Os empregadores e os sistemas escolares devem basear suas políticas nas expectativas das pessoas mais avessas ao risco ou daquelas que têm uma tolerância maior?

“A escolha diante dos EUA hoje”, conclui Kayyem em seu artigo, “é se devemos reconhecer o progresso que fizemos – e a natureza subjetiva, política e não científica dos juízos de valor que temos diante de nós”.

O que significa isso? Na realidade, é uma “questão objetiva” que 1.000 pessoas morrem todos os dias nos Estados Unidos. Entretanto, Kayyem está declarando que a decisão de que a “crise acabou” não será decidida pela ciência e por fatos objetivos, mas com base puramente política. Mas quem está tomando essas decisões políticas e em nome de quem? Se a ciência e a realidade objetiva não devem ser os fatores determinantes, o que deve ser? A conclusão inevitável é que a decisão deve ser tomada pela classe dominante e suas instituições políticas, com base em considerações econômicas e geopolíticas.

Poderíamos perguntar à Sra. Kayyem, quantas mortes ela e outros que têm uma “maior tolerância” consideram “um acordo aceitável”? Dez mil? Cem mil? Um milhão? Qual é o resultado final dos seus “julgamentos subjetivos, políticos, não científicos ... de valor”?

Essa é uma política monstruosa, e aqueles que a executam e a defendem são nada menos que criminosos políticos. Como levar alunos de volta às salas de aula e trabalhadores de volta aos locais de trabalho inseguros é diferente de enviar soldados para uma rajada interminável de tiros de canhão e balas de metralhadora? O resultado é o mesmo.

A pandemia, como um “evento desencadeador”, está acelerando os processos e tendências subjacentes à crise do capitalismo global. O crescimento dos movimentos de caráter fascista é a expressão mais violenta da exigência de remoção de todas as restrições à propagação da pandemia. Como o artigo de Kayyem demonstra, no entanto, a agenda básica é apoiada por toda a classe dominante.

Com o segundo ano da pandemia chegando ao fim, o World Socialist Web Site e os Partidos Socialistas pela Igualdade afiliados ao Comitê Internacional da Quarta Internacional (CIQI) estão dando início à Investigação Mundial dos Trabalhadores à Pandemia de COVID-19. A tarefa desta Investigação será examinar e refutar todas as mentiras promovidas pelos governos e na mídia nos últimos dois anos, indiciar e revelar os responsáveis por uma política que produziu mortes em escala massiva, educar os trabalhadores sobre o que pode e deve ser feito para eliminar o vírus e elevar a consciência política e social da classe trabalhadora.

Há uma última comparação com a Primeira Guerra Mundial que talvez seja a mais importante. A guerra finalmente terminou somente através da intervenção da classe trabalhadora, culminando na Revolução Russa de 1917 e numa onda de lutas revolucionárias por toda a Europa. Da mesma forma, uma mudança na política em resposta à pandemia não será realizada se não através de um movimento social e político de massas da classe trabalhadora internacional exigindo uma estratégia de eliminação global.

A lógica dos interesses de classe, expressa na experiência dos últimos dois anos, torna evidente que tais exigências colocam a classe trabalhadora em um confronto com as elites dominantes e todo o sistema capitalista.

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