Português

Os primeiros 100 dias de governo de Pedro Castillo no Peru: destruindo as ilusões promovidas pela Jacobin e pela pseudo-esquerda

Publicado originalmente em 26 de novembro de 2021

Pedro Castillo discursa sobre seus primeiros 100 dias de governo (Crédito: Andina)

Pedro Castillo, ex-líder do sindicato dos professores rurais eleito como presidente do Peru, viajou para a cidade sulista de Ayacucho em 10 de novembro para proferir um discurso marcando seus primeiros 100 dias no cargo.

A estreita vitória eleitoral de Castillo sobre a candidata de extrema-direita Keiko Fujimori e sua posse em julho passado foram saudadas internacionalmente por setores da pseudoesquerda como uma vitória para a classe trabalhadora peruana e os oprimidos. Alguns chegaram ao ponto de saudar uma segunda vinda da chamada “Maré Rosa”, a onda de governos nacionalistas burgueses que chegaram ao poder na América Latina na virada do século, na esteira do boom das commodities. O mais proeminente entre eles foi o do venezuelano Hugo Chávez, que defendeu o conceito de “revolução bolivariana” e de “socialismo do século 21”.

Uma das maiores entusiastas de Castillo foi a revista Jacobin, o órgão semi-oficial dos Socialistas Democráticos da América (DSA), que proclamou em uma manchete que 'O peruano Pedro Castillo pode romper com o neoliberalismo de vez'.

Se os primeiros 100 dias da presidência de Castillo serviram a algum propósito, foi para destruir impiedosamente tais ilusões sem fundamento promovidas pela pseudoesquerda.

O discurso de Castillo em Ayacucho soou muito como aqueles que ele havia proferido durante a campanha, cheio de retórica vazia e, em última análise, populista de direita, mas desprovido de quaisquer políticas concretas para enfrentar a pobreza massiva e a vasta desigualdade social, imensamente aprofundadas pela pandemia da COVID-19, que afligem as massas de trabalhadores oprimidos rurais do Peru.

Ele se dirigiu a “todos os homens e mulheres do Peru, os poderes e instituições do Estado, as forças políticas, os empresários, os trabalhadores, para dizer-lhes que agora é o momento da reconstrução nacional”. Segundo o diário estatal El Peruano, Castillo lançou um apelo especial aos empresários para “investir no país e gerar empregos decentes para os peruanos, aqueles que sempre demonstraram seu ímpeto e que mantiveram a produtividade e o avanço do país durante a pandemia”.

Ele não fez nenhuma menção ao custo deste esforço, imposto no interesse das multinacionais de mineração e das grandes empresas e impulsionado pelo desespero popular nascido da pobreza e da fome. Com mais de 200.000 mortes por COVID-19, o Peru é o país com o maior índice de fatalidades per capita do mundo - quase 6.000 por milhão, contra cerca de 2.400 para os Estados Unidos. De acordo com especialistas em saúde, o governo Castillo não fez nenhuma mudança nas políticas homicidas aplicadas por seus antecessores em relação à pandemia.

Em seus primeiros cem dias de governo, Castillo conseguiu se mover mais rapidamente para a direita do que qualquer um de seus antecessores. Ele demitiu praticamente todos os membros de seu gabinete para acomodar a pressão implacável da direita peruana, que continua a buscar sua derrubada através de um golpe parlamentar.

As demissões começaram com seu Ministro das Relações Exteriores, Hector Béjar, que foi acusado de ofender a honra da Marinha peruana e demitido quando o novo governo tinha um mês de existência. Ele substituiu seu primeiro ministro com base em acusações infundadas de uma associação de décadas com o movimento guerrilheiro Sendero Luminoso e, mais recentemente, demitiu seu ministro da defesa, acusado de interferir na “institucionalidade” das forças armadas.

Apoio obsequioso às forças armadas peruanas

Castillo não perdeu nenhuma oportunidade de proferir declarações obsequiosas de sua própria lealdade aos militares peruanos. Em uma declaração recente, ele declarou seu “respeito incondicional pela institucionalidade das forças armadas”, isto é, à sua autonomia em relação ao governo civil, ao mesmo tempo louvando os militares como “os garantidores da integridade territorial, do Estado de direito e da ordem constitucional”.

No mês passado, ele chegou ao ponto de convocar o Exército para as ruas sob o pretexto de combater o crime. Sua ação ocorreu apenas poucas semanas depois de o presidente Guillermo Lasso, o banqueiro direitista e ex-executivo da Coca-Cola, ter convocado às ruas o Exército equatoriano sob o mesmo pretexto.

Também demitido na última semana foi o secretário geral do gabinete da presidência, Bruno Pacheco, que também foi acusado de interferir na “institucionalidade” dos militares na área de promoções de oficiais. Posteriormente, uma busca feita por promotores e investigadores policiais encontrou $20.000 em dinheiro em seu banheiro pessoal no palácio presidencial.

O nomeado para substituir Pacheco como principal conselheiro presidencial é Carlos Jaico do partido populista de direita Alianza para el Progreso. No LinkedIn, ele se descreve como um advogado empresarial que “trabalha com negócios globais, executando para eles estratégias e negociações que melhoram significativamente sua cadeia de valor e vantagem competitiva...”

O único alto funcionário do governo com estabilidade garantida no cargo tem sido Julio Velarde, o economista de direita que preside o Banco Central do Peru. Ele mantém seu cargo no controle da economia peruana desde 2006. Este campeão dos interesses capitalistas transnacionais e peruanos foi mantido no posto para sinalizar o compromisso do governo Castillo de não fazer mudanças fundamentais nas políticas “neoliberais” aplicadas durante as três décadas que se seguiram à ascensão da ditadura de Alberto Fujimori, que atualmente está preso. Ao tomar posse para um novo mandato no mês passado, Velarde advertiu que os protestos nas regiões mineiras do Peru estavam “afetando a percepção do país em termos de investimentos futuros”, e fez eco aos apelos das empresas de mineração para que o governo “restabelecesse a ordem”.

Com o mesmo objetivo, Castillo nomeou Pedro Francke, ex-funcionário do Banco Mundial, como seu ministro de economia e finanças, viajando com ele para Washington e Nova York em suas primeiras semanas de mandato para reafirmar ao Departamento de Estado, ao FMI e a Wall Street o compromisso de seu governo com os lucros do capital internacional e peruano.

Em uma breve saída do roteiro, Castillo e um de seus ministros falaram sobre a nacionalização do consórcio privado de gás Camisea, de propriedade de conglomerados americanos e argentinos. Em resposta a uma reação barulhenta da direita, Francke foi convocado a explicar que o governo estava usando a palavra “nacionalização” meramente para expressar sua crença de que a empresa deveria operar “a serviço dos peruanos” e “de forma alguma significaria assumir controle estatal sobre uma atividade privada'.

O giro à direita de Castillo foi tão gritante que o partido que o abrigou como candidato à presidência, o Perú Libre, apresentou no mês passado uma moção de censura a seu governo, com sua bancada no Congresso se dividindo quase ao meio. Castillo fez tudo ao seu alcance para aplacar as exigências da elite governante peruana de se distanciar do líder do Perú Libre, Vladimir Cerrón, um político regional corrupto e populista, que tem sido retratado pela direita peruana e pela imprensa como um bicho-papão “comunista”.

Entre os que votaram contra o governo estava o ex-ministro-chefe de Castillo, Guido Bellido, que declarou que o presidente não era socialista ou mesmo de esquerda, mas apenas um “sindicalista básico”.

Castillo está seguindo o caminho bastante batido de outros presidentes com retórica de esquerda na América Latina, com uma grande semelhança com o peruano Ollanta Humala, que passou do flerte com o “socialismo bolivariano,” antes de sua eleição em 2011, à violência selvagem contra a classe trabalhadora em defesa dos interesses empresariais, uma vez no cargo. Em um contexto de desigualdade social sem precedentes e aprofundamento da pobreza, é apenas uma questão de tempo até que o governo Castillo realize ataques semelhantes. Já no mês passado, ele enviou a Polícia Nacional peruana a Ayacucho para reprimir um protesto de trabalhadores da mineração com gás lacrimogêneo, cassetetes e balas de borracha.

O giro à direita de Castillo e sua incapacidade de aplicar qualquer política significativa no interesse dos trabalhadores peruanos custou-lhe um apoio significativo. Uma pesquisa divulgada pelo Instituto de Estudios Peruanos (IEP) em 31 de outubro mostrou que seu índice de aprovação no empobrecido sul do país, sua principal base de apoio, havia caído de 58% para 42% ao longo do mês anterior.

Álibis da Jacobin para o giro à direita de Castillo

No entanto, os entusiastas pseudoesquerdistas de Castillo não demonstraram tais reservas. A revista Jacobin, que fez uma cobertura generosa do novo presidente supostamente “de esquerda” e campeão contra o “neoliberalismo”, tem oferecido repetidos álibis políticos para o novo presidente que se move rapidamente para a direita no período que se seguiu à sua vitória nas urnas. Em um artigo de 4 de setembro, a revista opinou que os desafios que Castillo enfrenta para realizar “mudanças sociais” irão “resumir-se mais às minúcias da política cotidiana do que à grandeza ideológica. O sucesso - e a sobrevivência - de qualquer governo democrático no Peru muitas vezes tem mais a ver com a navegar em um campo minado de pequenos escândalos de corrupção, acenar a aliados-chave e projetar de uma imagem de força, enquanto enfrenta um cerco constante”.

Em outras palavras, a suposta vitória da “esquerda” no Peru só pode ser consolidada sob a forma de outro governo burguês corrupto, que já está tomando forma em Lima.

Nicolas Allen, um editor de Jacobin e o editor-chefe da Jacobin América Latina, publicada em espanhol, tornou-se o homem-chave nesta operação política. Em uma entrevista publicada em julho pela Jacobin, Allen declarou que, com a vitória eleitoral de Castillo, “pode haver algo como uma nova Maré Rosa a caminho”.

Quanto aos resultados da primeira “Maré Rosa”, o jargão pseudoesquerdista de Allen - “um ‘empate hegemônico’ entre governos de esquerda insurgentes e uma restauração capitalista” - serve apenas para encobrir governos burgueses corruptos, como os de Lula, Maduro e Correa, cuja retórica populista deu lugar a programas de ajuste estrutural e ataques frontais à classe trabalhadora em face do declínio do “boom das commodities”.

Em relação às perspectivas do novo governo “de esquerda” no Peru, Allen afirma que seu destino “depende, em última análise, de até onde o povo peruano está disposto a acompanhar um processo de transformação radical”, acrescentando: “Essa resposta pode não satisfazer alguns esquerdistas de sofá...”

Ele prossegue afirmando que o Peru é “um país onde o neoliberalismo se infiltrou na mentalidade popular e moldou muito do que passa por bom senso - mesmo que esse bom senso tenha sido abalado. Não é o tipo de coisa que pode ser desfeita através de um conjunto de políticas progressistas bem elaboradas impostas pelo poder presidencial”.

Em outras palavras, o giro à direita de Castillo é culpa das massas peruanas e de sua “mentalidade popular” neoliberal. Quando ele se refere aos “esquerdistas de sofá”, o que ele realmente tem em mente é qualquer um que tenha como ponto de partida não dessa suposta “mentalidade popular,” como justificativa para apoiar um governo burguês, mas sim da profunda crise objetiva do capitalismo peruano e mundial e da necessidade de construir uma direção socialista revolucionária no interior da classe trabalhadora.

A política externa da DSA, como expressa pela Jacobin e suas edições latino-americanas, é uma extensão da política doméstica da organização. Como uma fração do Partido Democrata, a DSA se dedica a oferecer a este instrumento da reação imperialista de 200 anos - responsável por inúmeros golpes de Estado militares-fascistas, invasões e operações de desestabilização da CIA na América Latina durante o último século – uma fachada “de esquerda”, bem como a apoiar os sindicatos corporativistas da AFL-CIO à medida que eles enfrentarem uma rebelião cada vez mais ampla por parte de trabalhadores de base militantes.

Na América Latina, a DSA funciona como o equivalente a “socialistas do Departamento de Estado”. Eles promovem tipos como Castillo no Peru e Lula no Brasil como um meio de suprimir uma revolta de baixo para cima, subordinando a classe trabalhadora a regimes burgueses supostamente “esquerdistas” com os quais Washington pode fazer negócios. Em sua cobertura da eleição de Castillo, a Jacobin não fez menção ao fato de Washington ter estado entre os primeiros a felicitá-lo, com os EUA tendo ficado positivamente impressionados com seus ataques gratuitos ao venezuelano Nicolás Maduro ao longo da campanha.

Uma nova direção revolucionária da classe trabalhadora só pode ser construída em um enfrentamento implacável com as tendências políticas como a Jacobin e a DSA, cuja política reflete os interesses sociais de uma camada privilegiada da classe média alta e serve às necessidades mais profundas do imperialismo. Esta é a luta que está sendo travada pelo Comitê Internacional da Quarta Internacional, o movimento trotskista mundial, que é o único a defender um programa socialista internacionalista genuíno para unir os trabalhadores do Peru e da América Latina com os trabalhadores dos Estados Unidos e internacionalmente em uma luta comum para pôr fim ao capitalismo.

Loading