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O impacto mortal da COVID-19 no Peru: A perspectiva de um especialista em saúde

Publicado originalmente em 22 de novembro de 2021

Dr. Juan Pérez é um médico peruano que realizou uma extensa pesquisa sobre as estatísticas da COVID-19 no país utilizando o banco de dados nacional de óbitos, conhecido como SINADEF. O seu nome foi alterado para proteger sua identidade. Ele entrou em contato com o WSWS explicando que era um leitor freqüente e queria discutir seu trabalho sobre a pandemia no Peru.

Até agora, no decorrer da pandemia, mais de 200 mil pessoas perderam suas vidas em um país de apenas 33 milhões de pessoas, tornando-o o país com o maior número de mortes per capita registradas do planeta. Mais recentemente, o Dr. Pérez me notificou que os casos estão começando a subir à medida que a taxa de positividade dos testes está aumentando, anunciando uma terceira onda.

Segundo dados do The Economist, a taxa cumulativa de incidência per capita implicada está atualmente em 150 por 100 pessoas, o que sugere que existe uma alta taxa de reinfecções. As altas taxas de reinfecção estão se tornando comuns, pois as experiências entre países estão demonstrando que, considerando a diminuição da imunidade por vacinação ou infecções anteriores, a imunidade de rebanho é provavelmente impossível. Muitos cientistas e pesquisadores confiáveis sugerem que a pandemia pode continuar pelos próximos anos, especialmente porque os países estão empregando uma estratégia de exclusiva vacinação para garantir que a economia não seja afetada.

Conforme informado pelo Dr. Pérez, a pandemia no Peru começou quando viajantes infectados que retornando da Espanha introduziram a infecção na capital, Lima. A densa população nesse ambiente urbano, combinada com a extrema pobreza, foi a combinação perfeita para a explosão de infecções que devastaram o país, ao mesmo tempo em que provocou tremendas convulsões políticas no governo.

O Dr. Pérez teve a gentileza de conversar conosco e discutir o seu trabalho. A entrevista foi conduzida no início de novembro de 2021, e Bill Van Auken do Conselho Editorial do WSWS participou da discussão.

Benjamin Mateus (BM): Bom dia, Dr. Pérez. Obrigado por ter aceitado a entrevista. Talvez como pergunta inicial, o que o levou a começar a coletar essas estatísticas sobre a COVID-19 no Peru? Por que você fez isso? Eu suspeito que essa foi uma tarefa bastante difícil. Talvez você também possa explicar quais obstáculos encontrou com as autoridades para tentar expor as suas descobertas?

Juan Pérez (JP): Tenho um local de pesquisa clínica em um hospital privado em Lima. Foi um enorme desafio quando a pandemia começou, e eu queria saber em primeira mão o quão terrível ela seria. E foi assim que eu comecei a rastreá-la todos os dias. Eu costumava coletar diariamente todas as reportagens, o que era publicado nos jornais ou era relatado na TV ou qualquer meio.

Uma das coisas que aconteceram muito cedo com todas essas informações é que elas eram bastante inconsistentes. Por exemplo, em um lugar como na selva [amazônica], a primeira reportagem que saiu dizia que não havia mortes, e de repente havia mais de 100. ... Não me lembro se o número era 110, 120 ou outro. E então, nas semanas seguintes, não houve novos registros. O problema era que o governo estava tomando decisões com base nesses relatórios, que eram consistentes em todas as províncias, de que havia poucas mortes.

Mas todas as pessoas tinham a percepção de que havia mais mortes do que aquelas que estavam noticiando. Ouvindo as pessoas que estavam na linha de frente ‒ nos hospitais, nas UTIs ‒ eles diziam que mais mortes estavam acontecendo do que eles estavam realmente reportando.

Assim, uma das coisas que comecei a ver, já que gosto muito de história, uma das coisas que li no passado foi em relação à gripe espanhola, equivocadamente chamada de gripe ... certo?

BM: A gripe espanhola?

JP: Sim, é isso mesmo. ... A gripe espanhola. A forma como os historiadores estudaram o número de mortes foi através do número de mortes em excesso. Comecei a procurar por atestados de óbito e, para minha surpresa, descobri que todos os atestados de óbito estavam online. Eles estão na internet desde 2017. Isso se tornou a fonte que usei para investigar a questão do número de mortes por conta da pandemia. Os funcionários de saúde pública disseram que 90% de todas as certidões de óbito estavam em conformidade, em tempo real.

Bill Van Auken (BVA): Dr. Pérez, o senhor poderia explicar o que quer dizer com conformidade?

JP: Quero dizer que 90% ou 85% de todas as mortes haviam sido registradas. Inicialmente, eles chegam como relatórios [impressos] em papel; depois, devem ser registrados online pelo escritório central. Isso era o que eles estavam afirmando. Eu pensei que essa seria provavelmente uma fonte melhor, já que se trata de um documento legal; seria mais fácil registrar óbitos porque você precisa da certidão de óbito para enterrar alguém.

BM: Dr. Pérez, se eu pudesse apenas fazer uma breve intervenção, na sua opinião, quão precisos foram os diagnósticos dessas certidões de óbito?

JP: Isso não era muito preocupante. ... Deixe-me responder essa pergunta quando eu começar a te dizer como encontrei essa informação. Passei algum tempo procurando nas páginas do governo quando encontrei os dados em um banco de dados que podia ser baixado. Ainda não tenho certeza quando foram colocados lá, mas no terceiro ou quarto mês da pandemia eu os encontrei lá.

Quando comecei a olhar para os números, percebi que o excesso de mortes era quatro vezes maior do que o noticiado sobre a COVID-19, o que finalmente começou a fazer todo o sentido. Comecei imediatamente a distribuir essa informação a todos os meus colegas. Até a publiquei em junho no LinkedIn. Acho que até foi postada em inglês. Porém, muito poucas pessoas prestaram qualquer atenção a ela.

BVA: Provavelmente estou dando me adiantando, mas as diferenças eram entre os números do Ministério da Saúde do Peru e do SINADEF [Sistema de Informática Nacional de Óbitos]?

JP: Enormes diferenças!

BVA: Mas o senhor disse que publicou o relatório em junho de 2020?

JP: Sim!

BVA: Apenas um ano depois eles finalmente chegaram a esses mesmos números.

JP: Correto. A diferença foi gigantesca. E foi quando grupos inteiros de médicos no meu círculo de colegas e amigos ‒ acho que eram 30 ou mais ‒ começamos a contar exclusivamente com os dados que extraíamos do SINADEF.

BVA: Apenas para ser claro novamente. O SINADEF é um registro de mortes?

JP: Correto. Ele é muito preciso. Há uma grande certeza de que ele é pelo menos direcionalmente correto. Muito diferente do que eram os relatórios oficiais que o governo estava fornecendo. E quanto mais publicávamos e distribuíamos essa informação, mais ela era captada pelos jornais, mesmo usando alguns dos gráficos que eu inicialmente distribuía à minha rede de médicos. E então, finalmente, demorou algum tempo até que a curva oficial fosse igualada à verdadeira curva das mortes. Eventualmente todos reconheceram que a informação do SINADEF era o retrato exato dos acontecimentos da pandemia.

O que o governo acabou fazendo foi essencialmente combinar todos os relatórios de óbitos por COVID-19 com o excesso de mortes. Pode-se sobrepor as duas curvas, porque o que o SINADEF mostra é a curva das mortes visuais. Você pode ver a imagem das mortes em excesso, que representa as verdadeiras mortes por COVID-19.

Óbitos por COVID-19 oficiais pelo Ministério da Saúde do Peru (cinza) e mortes em excesso pelo SINADEF (laranja).

BM: Essa é uma pergunta que eu ia fazer posteriormente, mas como estamos discutindo agora, o senhor me disse que sua análise constatou que o excesso de mortes era quatro vezes maior do que o que estava sendo noticiado pelo Ministério da Saúde em junho de 2020. E essas curvas ‒ mortes oficiais por COVID-19 e excesso de mortes ‒ divergiram até o final do segundo trimestre.

Se você olhar a análise do The Economist sobre os verdadeiros números da pandemia, o excesso de mortes e as mortes reportadas para o Peru correspondem perfeitamente. A maioria dos países demonstra uma lacuna significativa entre as mortes por COVID-19 e o excesso de mortes registradas. Eu havia falado com o Van antes, e ele me disse que, em maio de 2021, o número oficial de mortes registradas era de 60 mil, mas, depois, o governo revisou esses números para 180 mil. Presumo que isso tenha total relação com o seu trabalho e esforços para expor isso a todos, o que levou à correspondência entre esses números hoje.

JP: Correto. Uma das coisas que fiz foi tentar influenciar essa questão através de um importante especialista em doenças infecciosas, que também é um grande amigo meu. Apresentei essa informação a ele explicando o que realmente estava acontecendo. Então ele me convidou para participar com o grupo de conselho ao Ministério da Saúde sobre a COVID-19. Isso foi muito cedo. Eles estavam tendo uma reunião em junho ... ou julho de 2020.

Então, eu apresentei minha análise e minhas conclusões ao grupo de especialistas. Depois disso, a sua única resposta foi, é interessante, é uma informação interessante. E então eles começaram a debater: “Não sei se isso é tudo COVID-19”. E eu lhes disse que é irrelevante se é ou não COVID-19.

Porque se olharmos a curva das “mortes habituais” [excesso de mortes] de 2017 até os primeiros três meses de 2020, ela é basicamente constante com um pouco de alteração porque a população aumentou. E depois há um salto enorme. A magnitude das mortes é inacreditável. O que mais poderia ser? E se não é a COVID-19, então é por causa da COVID-19.

O impacto da pandemia é o que realmente se pode perceber nesse gráfico. E eles ainda não estavam convencidos. Eu tive também uma discussão acalorada com um dos membros. Ele disse: “Creio que não é verdade que todos estão morrendo por causa da COVID”. Mas não é relevante se for causado diretamente pela COVID. Direta ou indiretamente, é o impacto da COVID que estamos observando. Também não é importante quão precisos estes números são. Porque, se a pandemia não estivesse aqui, não teríamos todas essas mortes em excesso a menos que você tivesse algo completamente diferente ‒ um grande terremoto ou algo parecido. Caso contrário, não há mais nada, exceto a pandemia. E eu não fiz a minha apresentação. Eles me pediram para enviá-la, mas eu retive minha apresentação apenas para ver o quanto eles estavam interessados ou convencidos de que a informação era útil. E eles nunca mais me pediram novamente.

BM: Por que você pensou que eles não estavam interessados em sua análise?

JP: Tive a sensação de que eles não estavam convencidos que a informação era confiável porque concentraram a sua discussão na distinção se o que estávamos vendo era tudo COVID-19 ou não. Mas essa conversa não faz nenhum sentido porque é o impacto da pandemia. Muito provavelmente, a grande quantidade de pessoas morrendo no Peru foi por causa da COVID-19.

BM: Nos Estados Unidos, durante o terceiro trimestre, muitos estados começaram a desmontar suas equipes de rastreamento da COVID-19. Eles declararam que, ou todos foram infectados, ou receberam as vacinas. A exatidão dos dados se foi. Por trás de tudo isso estavam as óbvias pressões econômicas para levar as crianças de volta às escolas e abrir todos os negócios. E então vimos esse aumento massivo de infecções e mortes, e ninguém estava fazendo nada para realmente os controlar.

Presumo que esses mesmos ministros da saúde a que você se refere estavam mais interessados em não noticiar essas diferenças, ou seja, não queriam causar pânico e fechar a economia do país. Seria essa uma afirmação justa?

JP: Retrospectivamente, você pode dizer que esse poderia ser o motivo, mas eu não sei. Não tenho 100% de certeza.

BM: Na saúde pública, há algo chamado princípio da precaução, o que significa que os políticos deveriam adotar o lado da cautela, especialmente diante de uma pandemia global, e provas do contrário, como seu relatório sugeriu, [mostrando] que o excesso de mortes foi excepcionalmente alto, significam que o governo deveria ter fechado as empresas e escolas até que eles fossem capazes de reunir informações suficientes para verificar o impacto que a COVID-19 estava tendo sobre a população. É preciso determinar por que tantas pessoas estão morrendo. E, se esses políticos não estão seguindo essas precauções, então por quê?

JP: Bem, eles não foram motivados por esse princípio ou por qualquer princípio. De modo algum. Talvez explicando melhor, o médico de doenças infecciosas que me levou à reunião expressou as suas dúvidas sobre o excesso de mortes atribuídas à COVID-19, eventualmente ele foi prejudicado publicamente por outras razões.

Ele está com uma CRO, uma organização de pesquisa clínica, e esteve envolvido no maior ensaio de vacinas do Peru com a vacina Sinopharm [COVID-19] na universidade mais importante de Lima, a Universidade Cayetano Heredia, que é a universidade onde tive minha formação. A versão curta da história é que um grupo de médicos que estavam participando do ensaio e seus amigos receberam o medicamento do estudo fora do estudo [uma violação do protocolo padrão]. E a organização governamental, o Instituto Nacional de Saúde, forneceu a autorização para fazer isso.

Portanto, foi um grande escândalo, e perdemos uma das vozes mais importantes, e ele simplesmente teve que desaparecer publicamente. Ele não estava envolvido na elaboração do protocolo de ensaio da vacina, mas foi uma das pessoas que concordaram em receber o medicamento de estudo da vacina, o que é inacreditável que tenha acontecido.

BVA: O ex-presidente Martín Vizcarra acabou no mesmo barco. [O ex-presidente do Peru disse à mídia que ele foi voluntário no ensaio da vacina, mas a universidade que conduziu o estudo informou que ele havia pedido para ser vacinado com o medicamento em estudo. Ele e muitos altos funcionários e pessoas bem conectadas pularam a fila de vacinação no ano passado para receber secretamente as vacinas antes dos trabalhadores de saúde da linha de frente].

JP: E ele continuou mentindo. Ele disse que era um participante voluntário do estudo, o que significava que ele não sabia se havia recebido o placebo ou a vacina. Mas não. Ele foi vacinado pelo investigador principal na Casa Branca do Peru.

Foi um escândalo enorme, que prejudicou [a reputação] do que a vacina representa no Peru, em particular, aquela da Sinopharm, que, a propósito, não há muita diferença entre ela e a Pfizer com algumas ressalvas. Mas foi isso que aconteceu.

BM: Eu queria introduzir a este ponto os seguintes números. Foram registrados 2,2 milhões de casos de COVID-19 no Peru e mais de 200 mil mortes. A população do Peru é de apenas 33 milhões, o que significa que uma em 165 pessoas morreram de COVID-19. Por que a pandemia foi tão devastadora no país?

JP: Eu tenho tido conversas com médicos que estão tratando e vendo pacientes. E não sei se você já visitou um país de terceiro mundo na América Latina, mas os hospitais são antigos. Eles não têm recursos e estavam completamente despreparados. Foi avassalador.

Eu estava preparando algumas informações para mostrar a vocês que poderiam ajudá-los a entender o que aconteceu. Mas eu estava conversando com pessoas que estavam nas UTIs e nos hospitais e tudo isso. O número de pacientes era espantoso. Estava acima, acima [nossa ênfase] da capacidade. E eles tinham que decidir sobre quem iria ou não ser hospitalizado. A outra coisa que aconteceu, e eu não tenho todos os detalhes completos, é que o oxigênio medicinal era muito escasso.

Muita gente morreu porque não havia oxigênio suficiente. Eu não tenho os números completos, mas conheço essas histórias ou posso conseguir alguém dessas instituições e hospitais que possa contá-las. As pessoas que utilizam hospitais privados representam talvez 2% ou 3% da população, e o resto da população depende da previdência social do Ministério da Saúde e dos hospitais públicos...

Portanto, foi dramático. Foi tão rápido. Eles foram completamente sobrecarregados. Eles simplesmente não estavam prontos para o que os atingiu. Não havia leitos suficientes para a UTI. Não havia o suficiente de tudo.

BVA: Essa questão de não haver oxigênio suficiente, que foi uma das questões da recente acusação de Bolsonaro pelo senado brasileiro. Parte dela era Manaus, onde não havia oxigênio. É reconhecido no Brasil que foi o fracasso criminoso por parte do governo brasileiro. A mesma coisa eu presumo que será verdade com o governo [do Presidente] Sagasti.

JP: Tenho quase certeza disso porque foi o que me disseram os especialistas pulmonares, que estavam ficando sem [oxigênio]. As pessoas alugam oxigênio. Como você chama isso? Um cilindro? Eles iam a uma cidade diferente e os procuravam e pagavam ‒ não sei quanto dinheiro por isso, mas era como procurar ouro.

BVA: Eles traziam seus próprios cilindros para os hospitais.

JP: Correto. Foi o que aconteceu. Meus amigos que trabalham nas UTIs me disseram que muitas pessoas morreram de asfixia porque não havia oxigênio. Foi horrível.

BM: Recentemente você me mostrou estatísticas onde classificou as mortes por várias faixas etárias. Qual foi a taxa de mortalidade entre os idosos?

JP: Vou compartilhar minha tela com você. Um momento. Esta é uma foto dos jogos pan-americanos que foram realizados alguns meses antes da pandemia. Eles os converteram em hospitais. Muitas, muitas pessoas de Lima foram hospitalizadas aqui que não se encontravam em estado crítico. Estas não eram UTIs.

Apartamentos da vila esportiva dos jogos pan-americanos de 2019 em Lima (Fonte: divulgação Lima 2019)

BM: Esses eram apartamentos que foram construídos para os jogos?

JP: Sim, esses apartamentos foram construídos para os jogos e utilizados para essas circunstâncias [da pandemia]. Todos eles foram convertidos em leitos hospitalares.

O Dr. Perez retornou então à questão do contraste entre as mortes oficiais por COVID-19 e o excesso de mortes registradas pelo SINADEF.

JP: Este é o relatório oficial anotado em cinza pelo Ministério da Saúde aqui embaixo e depois a linha laranja mostrando o excesso de mortes muito acima dele. [Existe uma diferença de quatro vezes no número de mortes entre os gráficos]. Veja os números. Fiz a apresentação em junho de 2020 para o Ministério da Saúde. E quantos meses depois eles reconheceram oficialmente a verdadeira escala das mortes? Basicamente 12 meses depois, quando eles reconheceram oficialmente essas mortes como relacionadas à COVID. [Entre maio de 2021 e junho de 2021, as mortes oficiais por COVID-19 saltaram de 69.342 para 193.139].

BM: Por que a mudança repentina? Por que eles reconheceram “oficialmente” que o número de mortes foi muito maior?

JP: Porque as informações do SINADEF foram propagadas por toda [a internet e a mídia] desde que comecei a distribuir os dados reais, e então todas as pessoas começaram a fazer o mesmo. Então todos estavam distribuindo a informação que dizia que mais pessoas haviam morrido.

O argumento que eles estão utilizando para defender a sua posição é bastante infantil. Eles disseram que eram forçados a noticiar exclusivamente aqueles que foram testados positivo para COVID-19. Naqueles dias, não havia tantos PCRs que se pudesse fazer. Somente aqueles com um teste positivo estavam sendo reportados.

Mas isso não fazia sentido porque eles não conseguiriam explicar a disparidade. Apesar de ter sido questionado várias vezes, o presidente continuou tentando mudar a direção da discussão ou levantar tantos argumentos diferentes que se tornou muito confuso e embaraçoso. Mas era absolutamente claro que existia essa disparidade.

BM: Parece que o governo estava sob significativa pressão política.

JP: Todo mundo estava dizendo que as informações oficiais não estavam corretas. Todos estavam dizendo que estamos vendo mais pessoas morrendo. E quando se olha o número daqueles com mais de 60 anos, um em cada 30 perdeu a sua vida. Todos sabiam de alguém que havia morrido.

Óbitos por COVID-19 entre pessoas com 60 anos de idade ou mais no Peru entre março de 2020 e outubro de 2021.

Os dados eram claros. Mas outra coisa interessante que eu descobri foi que a proporção de mortes entre pessoas mais velhas e mais jovens permaneceu a mesma durante a pandemia. Tipicamente, 70% de todas as mortes ocorreram naqueles com 60 anos ou mais e 30% entre aqueles com menos de 60 anos. Embora o excesso de mortes fosse muito superior a partir de suas linhas de base, a proporção de mortes entre idosos e jovens permaneceu constante.

Mortes em excesso no Peru entre dezembro de 2018 e setembro de 2021 (Fonte: SINADEF)

BM: Entendo. Como mais pessoas estavam morrendo, isso também estava afetando um maior número de pessoas mais jovens.

JP: Exatamente.

BM: Você havia mencionado que as coisas têm se mantido estáveis no Peru recentemente com relação à pandemia. Olhando para o painel do Worldometer, a taxa de novas infecções diárias é pouco mais de 800, e as mortes estão em torno de 30. O senhor acredita que o Peru atingiu algum nível de imunidade de rebanho? Você já havia expressado preocupação anteriormente. [O Peru tem uma das mais altas taxas de mortalidade per capita em excesso agora, apenas superada pela Rússia. Segundo o The Economist, a “taxa de infecção acumulada implicada” por 100 pessoas é de 150, o que significa que tem havido altas taxas de reinfecção].

JP: Não sou um especialista... mas quando olhei para a forma como estava subindo, e então analisei a taxa como estava descendo, previ matematicamente, assumindo matematicamente que se o declínio continuasse como estava, veríamos outra onda de infecções.

Assim, quando os números caíram após o primeiro pico, todos começaram a afirmar que havíamos alcançado a imunidade de rebanho. Mas não havia provas para afirmar que era esse o caso. Eu estava discutindo com pessoas e precisava dizer a elas que devíamos esperar. Não podíamos dizer isso. Não havia compreensão suficiente sobre a pandemia, não havia informações suficientes que permitissem a qualquer um reivindicar tal coisa.

Eu disse vamos esperar. Vamos ter uma segunda onda, quer você goste ou não, porque faz sentido; faz sentido por causa da maneira como está evoluindo. E faz sentido porque está acontecendo em todos os países, assim como no Peru. E retornou muito forte. E no verão, não no inverno. E os invernos aqui são suaves. Só usamos camisolas, e não há muito a dizer.

Agora os números abaixaram novamente. Mas todos os dados de seqüenciamento mostram que é a Delta. É 100% Delta. E agora estamos no vale. Não estou dizendo que vai, mas pode voltar.

BM: Que medidas de saúde pública estão sendo utilizadas agora para mitigar a propagação do vírus?

JP: Na minha opinião, eles estão apenas vacinando. [A partir de 17 de novembro de 2021, 51% da população estava totalmente vacinada; 64,7% com pelo menos uma dose].

BVA: Eles estão voltando ao ensino presencial nas escolas? Eles estão trazendo as crianças de volta às escolas, certo? O que eu entendi foi que em 2022, eles estão dizendo ...

JP: Eu comecei a ver muita pressão para isso. A partir desta semana [no início de novembro de 2021], eles estão começando a vacinar crianças de 12 a 17 anos, o que se pode dizer é que o objetivo é abrir as escolas o mais rápido possível.

BVA: Na Europa, esse tem sido o fator de impulso da nova onda na Europa e na Alemanha.

JP: Eu queria mostrar outra figura pra vocês. [Dr. JP apresenta um gráfico mostrando as mortes ocorridas em uma unidade de saúde em comparação com mortes em casa por faixa etária].

Local da morte por COVID-19 por faixa etária ‒ Unidade de saúde ou domicílio

Deixe-me descrever isto. ... IES significa hospital, e cuidados domiciliares significa cuidados recebidos em casa. Tem sido segmentado por faixas etárias. Aqueles que tinham menos de 60 anos de idade possuíam muito mais probabilidade de morrer em um hospital, enquanto aqueles que eram mais velhos muito provavelmente recebiam cuidados em casa. Na faixa etária seguinte, de 60 a 69 anos, o atendimento domiciliar sobe um pouco. Mas veja o que acontece aos 70 e depois aos 80 anos.

Eu falei com médicos que trabalham nas UTIs. Qualquer pessoa que chegasse ao hospital com 70 anos de idade ou mais, bem, o número mais pessoas infectadas que eram mais jovens era maior, e elas tinham a prioridade. E aqueles que eram mais velhos não.

BM: Só para esclarecer. Esses gráficos destacam que os cuidados foram racionados por idade, sim?

JP: Pode ser. ... Se eu tivesse alguém, se eu tivesse meu avô, o que não tenho, e ele tivesse 80 anos de idade e tivesse desenvolvido a COVID-19, talvez aconteceriam algumas discussões na família se seria razoável não trazê-lo ao hospital.

Quando você vai falar com as pessoas que trabalham nas UTIs, elas lhe dizem que tomam decisões baseadas na capacidade em comparação à demanda. E a demanda significa que vamos trabalhar. ... Vamos priorizar o atendimento àqueles que têm melhores chances de sobreviver, especificamente aqueles que são mais jovens e com menos comorbidades.

BM: Juan, você havia mencionado que estava olhando para essa questão. O Reuters informou recentemente que há tribos remotas vivendo na floresta amazônica que acabam de aprender sobre a pandemia da COVID-19. As autoridades sanitárias estavam trazendo a vacina para essas regiões. Procurei os números, e há cerca de 2,7 milhões de indígenas que vivem na Amazônia, divididos entre 350 grupos étnicos diferentes. Você já analisou essa questão? Como a pandemia da COVID-19 afetou essas pessoas?

JP: Eu tentei trabalhar com alguém da IBM que pode realmente fornecer todas as informações sobre as populações em cada distrito no Peru. Felizmente, o SINADEF registra todas as mortes que têm códigos postais distritais. Portanto, podemos comparar esses códigos e olhar para a população, localização, urbano e rural, selva. Eu mesmo não olhei para isso, mas acho que há recursos suficientes para investigar e responder à sua pergunta.

O que é verdade é que existe uma relação de taxas de mortalidade mais elevadas em relação à densidade populacional. O cenário urbano em comparação ao rural tem uma enorme diferença. Por exemplo, na cidade de Lima, o distrito de Lima, que é todo o centro da cidade e tem a maior densidade, também teve o maior número de pessoas que morrem em números absolutos.

Famílias esperam na fila por refeição gratuita em Lima, Peru, 17 de junho de 2020. (AP Photo/Rodrigo Abd)

BM: Como a pandemia afetou a vida cotidiana, o bem-estar social e econômico no Peru? O Banco Mundial disse que o PIB do Peru em 2020 caiu 12% ou mais. Você poderia falar sobre isso e talvez dar um retrato das experiências do Peru?

JP: Bem, minha filha foi demitida. Ela foi treinada nos EUA. Ela já trabalhou em várias empresas. E então, eventualmente, eles a colocaram para trabalhar em casa... depois começaram a reduzir... a sua influência e demitiram muita gente. Acho que isso está acontecendo por toda parte.

No início, foi muito difícil porque não conseguíamos sair de casa por cerca de oito a nove semanas. Então, tivemos que trabalhar de casa. Eu tinha o local da pesquisa clínica e tivemos que adiar algumas visitas porque não podíamos sair de casa.

BVA: Vocês estavam essencialmente sob lockdowns forçados. Eles enviaram o exército.

JP: Sim, sim. Mas foi difícil. Foi difícil para todos. Bem, talvez não para aqueles que têm todo o dinheiro, mas foi muito difícil para a força de trabalho. Quase todo mundo foi terrivelmente afetado.

BM: Você conseguiu participar do webinário com os cientistas discutindo a necessidade de eliminar a COVID-19 organizado pelo WSWS?

JP: Eu escutei todos eles. A propósito, tenho lido o WSWS durante os últimos três anos e meio. E olhei cada uma das apresentações.

BM: Qual é a sua opinião sobre o trabalho, a luta que o WSWS vem conduzindo no chamado para eliminar globalmente a COVID? Você é um cientista, um pesquisador, e estudou a pandemia. O que a eliminação global significa para você, e o que você acha que precisamos fazer?

JP: Bem, nós não sabemos se podemos erradicar o vírus. Mas o melhor entendimento para o mundo é como controlá-lo? Por exemplo, um exemplo simples. E eu acho que isto é absolutamente pertinente. O que aconteceu na Nova Zelândia, o controle total durante 18 meses, e agora eles simplesmente o deixam se espalhar. Os casos estão subindo e, eventualmente, eles virão com mais óbitos.

O que aconteceu na China, Cingapura, até mesmo no Vietnã. Eles estavam controlando muito bem as infecções. Esses eram os países asiáticos. O resto dos países não controlavam nada. Eles simplesmente deixaram se espalhar. O que aconteceu no Brasil é criminoso, certo?

Eu estava conversando com alguns de meus colegas e disse: “Olhe a maneira como estamos lidando com esta pandemia. Não é apropriado. Não estamos suprimindo o vírus”. E a resposta típica deles foi que não temos dinheiro suficiente. Vai ser bastante complexo. E isto sempre leva à discussão sobre como podemos sequer pensar em parar a economia?

Tudo está sendo preparado para aceitar a morte. Isso é terrível. Por que então estudei medicina, para aceitar a morte? Por que eu faria isso?

BM: Eu concordo totalmente com você.

BVA: O Peru é algo único, acredito, em termos do que aconteceu no final de maio com o ajuste nos números de óbitos. Coisas semelhantes poderiam ser feitas em qualquer país que optasse por fazê-lo? Se você pegasse os casos registrados e as certidões de óbito reais, você chegaria a resultados semelhantes?

JP: Eu olhei a forma como as mortes foram registradas no Chile, e isso não tem a força do que temos no Peru. E eu acho que a Colômbia também não tem. Por causa da forma como o SINADEF foi construído, ele é realmente rigoroso. Eles precisam seguir regras, e todos são forçados a utilizar listas de verificação e tudo isso. Basicamente, não precisa nem mesmo de avaliação para ninguém.

BVA: Acho que não fui claro. Você está dizendo que é porque não havia uma contradição tão grande entre mortes reais e mortes registradas, ou não havia um registro tão eficiente de mortes? Quero dizer, na Colômbia, o registro de mortes não seria tão bom quanto o do Peru.

JP: Sua última afirmação é o que eu acredito. Mas não tenho compreensão suficiente para confirmar se isso é 100% exato, porque comecei a revisá-lo há apenas alguns meses. E o deles não era nada próximo do que temos no Peru. Aqui, a forma como está configurado é você [que] deve registrar a certidão; há uma lista de verificação, e não há nada que você possa fazer de diferente. Você tem que apenas postar os dados, e ninguém os revisa. Ele vai diretamente para o banco de dados. É instantâneo.

E eles utilizam a identificação como informação inicial. Cada pessoa no Peru tem uma identificação, até mesmo as crianças. Então, você começa com essa informação e depois ela continua, o resto é simples. Existe a causa da morte, a idade no momento da morte, o código postal da morte e todas essas coisas. É muito bem projetado.

BVA: Parece que o governo peruano é melhor com a morte do que com a vida. É melhor em registrar a morte do que em salvar vidas.

JP: Correto. É até irônico, certo. Muito organizado. Mas, nesse caso, foi incrivelmente bem feito. E até mesmo a vacina está ligada à mesma identificação. Se eu for com minha identificação e eles colocarem essa informação, eles podem dar o [código] QR da minha vacina. É tudo a mesma base de dados.

Estou trabalhando agora com outros para que o Ministério da Saúde vincule as certidões de óbito juntamente com a base de dados da vacina. Podemos facilmente rastrear quantas pessoas foram vacinadas, quando foram vacinadas, e depois ir ao tempo zero e ver quando estão perdendo eficácia. Acho que estamos chegando perto de convencê-los. E se juntarmos isso, então poderemos analisar o impacto da pandemia diariamente.

BVA: Uma última pergunta, Juan, de caráter político. Você tem hoje, é claro, um novo governo supostamente de 'esquerda' liderado por Pedro Castillo, há 100 dias no poder. Existe alguma distinção entre sua política em relação à pandemia e a política anterior seguida pelo governo de Francisco Sagasti ou a de Vizcarra?

JP: Não há diferença. Não vejo nenhuma diferença. Hoje de manhã, eu estava fazendo o check-in. Liguei para dois dos meus funcionários no escritório que têm familiares com a COVID-19. Eles têm que isolar e ser observados e tudo isso. Liguei para eles pela manhã só para saber se havia algum rastreamento de contato, certo? Nenhum! Ninguém perguntou o que aconteceu. Pelo que entendi, o sucesso na China se deve ao fato de que eles fazem o rastreamento de contatos. É tão simples quanto isso.

Eu tinha dois casos, apenas dois. Um deles era simples. Três irmãos e um deles vai para a academia, e esse é o que traz a COVID-19 para casa. Felizmente, ninguém mais foi infectado. Mas não houve nenhuma ação. Eles deveriam ter ido para a academia e olhado quem mais poderia ter sido infectado e quem os infectou. Não houve nenhum rastreamento de contatos. E o outro era o mesmo, e essas são pessoas que trabalham comigo. Eu tenho relatos em primeira mão com informações sinceras e completas.

BM: Juan, algum último comentário, ou pensamentos que você gostaria de compartilhar?

JP: Eu gostaria de colaborar sempre que for necessário, se você considerar que o que eu faço ajudar. O que realmente me importa é ter a verdade sobre tudo isso exposto. Eu tenho que ter a verdade. Isso é o que realmente importa.

BVA: Como você pode enfrentá-la se não tem a verdade. Caso contrário, a próxima, e haverá uma próxima, será muito pior.

JP: Sim, é claro que será. Mas temos que ter certeza de que realmente temos todas as informações, as informações relevantes para fazer um diagnóstico claro do que está acontecendo. Isso é o que realmente importa. E depois, sobre isso, há a decisão política. ... O que vamos fazer com isso? Mas eu acho que é um começo ter os melhores dados possíveis, certo? Para entender realmente o que está acontecendo. E essa tem sido a minha busca.

BM: Bem, você deve ser muito elogiado pelo trabalho que fez e pela sua contribuição à classe trabalhadora. Eu certamente aplaudo o que você está fazendo. Dr. Pérez, obrigado pelo seu tempo. Aguardo com expectativa a nossa próxima discussão.

BVA: Obrigado.

JP: Sem problemas.

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