Publicado originalmente em 12 de fevereiro de 2022
O próximo mês marcará dois anos desde que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou oficialmente a COVID-19 uma pandemia global. Esse marco sombrio se aproxima enquanto o espalhamento da variante Ômicron impulsiona um acentuado aumento de infecções, hospitalizações e óbitos em todo o mundo.
Apenas nas primeiras seis semanas de 2022, houve mais de 100 milhões de casos registrados de COVID-19 no mundo, quase metade do número de casos em todo o ano de 2021. Mais de 350 mil pessoas morreram. Se esse nível continuar durante o resto do ano, mais de 3 milhões de pessoas irão morrer por COVID-19 em 2022, em comparação com 2,5 milhões em 2021 e pouco mais de 2 milhões em 2020. Isso de acordo com os números oficiais, que subestimam muito a realidade das infecções e mortes.
Nos Estados Unidos, que continua sendo o epicentro da pandemia, mais de 2.600 pessoas estão morrendo todos os dias, de acordo com a média móvel de 7 dias do “BNO tracker”, um número superior a todas as outras semanas, exceto algumas durante o fim de 2020 e início de 2021. Os hospitais em grande parte do país continuam sobrecarregados. Embora os casos diários tenham caído em relação ao pico da Ômicron em meados de janeiro, eles ainda são maiores do que em qualquer outro momento desde janeiro de 2021.
A situação da pandemia em seu terceiro ano levanta questões críticas de perspectiva no combate ao vírus.
Seis meses atrás, em agosto de 2021, antes do surgimento da variante Ômicron, o World Socialist Web Sitepublicou uma declaração apontando as três estratégias básicas que foram avançadas em resposta à pandemia do coronavírus: “imunidade de rebanho”, mitigação e eliminação-erradicação.
A primeira estratégia, “imunidade de rebanho”, explicamos, é “a falsa alegação de que a rápida disseminação do vírus entre os setores mais jovens e mais resistentes da população criará um escudo humano em torno dos mais vulneráveis”. Segundo os defensores da “imunidade de rebanho”, a infecção deve ser incentivada, pois cria imunidade na população e eventualmente irá colocar o vírus sob controle.
Esse programa de infecção em massa deliberada foi implementado de forma mais agressiva nos EUA sob Donald Trump, no Brasil sob Jair Bolsonaro e no Reino Unido sob Boris Johnson. A catastrófica perda de vidas nos últimos dois anos nesses países ‒ liderada pelos EUA, com mais de 900 mil mortos ‒ expôs a estratégia de “imunidade de rebanho” como uma política homicida e criminosamente insana de morte em larga escala.
A segunda estratégia, “mitigação”, escrevemos, propõe “um conjunto amorfo de medidas que busca uma negociação entre a realidade do vírus e os interesses financeiros das elites dominantes”. Os mitigacionistas defenderam que o vírus pode ser contido e que a pandemia pode acabar por meio do uso de máscaras, distanciamento social, testes, vacinação e outras medidas. A declaração apontou para a alegação da administração Biden, uma variante da estratégia de mitigação, de que a pandemia poderia acabar apenas com a vacinação e o uso de máscaras.
Entretanto, o surgimento da variante Ômicron tem sido utilizado pelo establishment político de todos os principais países capitalistas para justificar o abandono de qualquer pretensão mesmo de uma política de mitigação. Isso tem sido feito sob o pretexto de que a Ômicron é “leve”, que a infecção de dezenas de milhões de pessoas está aumentando a imunidade da população e, mais recentemente, que levou a uma situação em que a COVID-19 é “endêmica” ‒ um termo que é amplamente utilizado sem qualquer base científica.
Na Suécia, o lar da estratégia de “imunidade de rebanho” (“modelo sueco”), as poucas restrições restantes contra a pandemia foram removidas na quarta-feira, e até mesmo a maioria dos testes para COVID-19 foram encerrados. No mesmo dia, o governo britânico do primeiro-ministro Boris Johnson anunciou que as leis exigindo autoisolamento dos indivíduos infectados provavelmente serão removidas até o final deste mês.
No início deste mês, o governo da Dinamarca anunciou que não estava mais tratando a COVID-19 como uma doença “socialmente crítica”, apesar do fato de que, impulsionados pela cepa mais perigosa da Ômicron, BA.2, novos casos na Dinamarca estão muito acima de seus registros anteriores, e a média de mortes diárias está se aproximando rapidamente do pico no início de 2021. A Itália e a Espanha estão pondo fim à obrigatoriedade do uso de máscaras em locais abertos, e a Suíça está removendo a obrigatoriedade da vacinação já na próxima semana.
Nos Estados Unidos, os governadores democratas, sob a orientação da administração Biden, estão removendo a obrigatoriedade do uso de máscaras nas escolas e outros regulamentos, alinhando sua política com o que já estava em vigor na maioria dos estados governados pelos republicanos. O governador democrata da Califórnia, Gavin Newsom, disse na quarta-feira que o estado vai fazer a transição para uma estratégia para “endemia”, significando que a COVID-19 será agora tratada como o resfriado ou a gripe comuns.
Como parte integrante das restrições finais, os EUA e outros países estão caminhando para remover ou minar os mecanismos de notificação que permitem um rastreamento preciso de casos e mortes.
Para justificar a posição de que não são necessárias medidas adicionais para conter a transmissão viral, a mídia empresarial está publicando artigos regularmente afirmando que a COVID-19 se tornou “endêmica”. Tais afirmações não têm absolutamente qualquer relação com fatos científicos, muito menos com a saúde pública.
Escrevendo na revista Nature no mês passado, o infectologista Aris Katzourakis, professor de zoologia da Universidade de Oxford, observou que “a palavra ‘endemia’ se tornou uma das mais mal utilizadas da pandemia”. Não apenas uma endemia se trata de uma situação em que as taxas gerais de casos são estáticas e previsíveis, ‒ o que claramente não é o caso da COVID-19 ‒ determinar que um vírus é endêmico não tem qualquer relação com a declaração de que o perigo tenha passado.
“Uma doença pode ser endêmica e simultaneamente disseminada e mortal”, escreveu Katzourakis. “A malária [que é considerada endêmica] matou mais de 600 mil pessoas em 2020. Dez milhões morreram de tuberculose nesse mesmo ano e 1,5 milhão morreram. Endêmico certamente não significa que a evolução de alguma forma ‘domou’ um patógeno para que a vida simplesmente retorne ao ‘normal’”.
Os defensores da estratégia de deixar o vírus se espalhar, do “novo normal” e da “endemia” ignoram certos fatos básicos: que o número global de mortes está próximo de seu nível mais alto já registrado e crescendo acentuadamente; que, embora a Ômicron possa ser menos grave para muitos dos que são vacinados, ainda é uma doença grave e mortal, particularmente para os idosos e imunodeprimidos; que grande parte da população mundial ainda não é vacinada, incluindo a maioria das crianças; e que, enquanto a transmissão viral continuar, há uma pressão evolutiva perpétua para o surgimento de novas variantes mais agressivas e resistentes à vacina.
Ressaltando esse último ponto, o cientista chefe da OMS, Soumya Swaminathan, advertiu ontem: “Vimos o vírus evoluir, sofrer mutações... por isso sabemos que haverá mais variantes, mais variantes de preocupação, portanto, não estamos no fim da pandemia”.
Finalmente, nenhum dos novos defensores da infecção em massa reconhece as conseqüências a longo prazo da infecção, ainda pouco compreendidas. Um relatório na Science nesta semana descobriu que indivíduos infectados pela COVID-19 ‒ mesmo que não tenham sido hospitalizados ‒ apresentavam, um ano depois, um risco significativamente maior de doenças cardíacas e vasculares, incluindo ataques cardíacos, derrames e parada cardíaca. Eric Topol, um cardiologista da instituição médica, Scripps Research, chamou as descobertas de “atordoantes ... Se alguém alguma vez pensou que a COVID era como a gripe, este deveria ser um dos conjuntos de dados mais poderosos para apontar que não”.
Quantas outras pessoas irão morrer de doenças cardíacas e outras conseqüências da COVID longa nos próximos anos se milhões de pessoas estão contraindo o vírus todos os dias?
Há poucos precedentes históricos para essa situação. Diante da infecção e morte em massa, os representantes de todos os principais países capitalistas estão simplesmente declarando: “Já chega! Este é o ‘novo normal’. Aceite-o. Voltem ao trabalho, voltem às escolas e parem de reclamar”.
A adoção aberta e desavergonhada da infecção em massa por parte de todos os principais governos sem dúvida chocou muitos cientistas e epidemiologistas de princípios, inclusive aqueles que defendiam fortes medidas de mitigação.
A falácia básica em sua abordagem tem sido tratar a pandemia primariamente como uma questão médica. Porém, o colapso da estratégia de mitigação expõe da maneira mais direta que a luta contra a pandemia é uma questão de classe, que só pode ser resolvida através dos métodos de luta social.
A catastrófica política durante a pandemia ao longo dos últimos dois anos não foi o produto de erros. A pandemia foi utilizada pela classe dominante para distribuir aos mercados trilhões de dólares, os quais devem ser pagos através da exploração dos trabalhadores, que devem retornar ao trabalho. As medidas necessárias que poderiam e ainda podem ser implementadas para deter a pandemia foram rejeitadas porque atrapalham esse imperativo social e econômico.
Explicando a falência da política de mitigação, o WSWS escreveu em agosto do ano passado:
A mitigação é para a epidemiologia o que o reformismo é para a política capitalista. Assim como o reformista alimenta a esperança de que reformas graduais e parceladas irão, com o tempo, diminuir e amenizar os males do sistema baseado no lucro, os mitigadores alimentam a ilusão de que a COVID-19 acabará se desenvolvendo em uma doença não mais nociva do que a gripe comum. Isso é um delírio completamente apartado da ciência da pandemia.
Assim como é impossível “negociar com o vírus”, é impossível “negociar” com a classe dominante. Por parte da administração Biden, a pretensão de tentar “reformar” a pandemia através de medidas de mitigação entrou em colapso juntamente com a pretensão de que implementaria uma política de reforma social em geral. A sua adoção na prática da “imunidade de rebanho” é parte do seu programa de guerra e reação. Elas são expressões diferentes dos mesmos interesses de classe ‒ os interesses da oligarquia empresarial e financeira.
Conforme o WSWS insistiu, a alternativa à “imunidade de rebanho” não é a mitigação, mas a eliminação-erradicação, o que, como explicamos em agosto, “implica o emprego universal de cada arma no arsenal de medidas para combater a COVID-19, coordenado em escala global, para erradicar o vírus de uma vez por todas”. As medidas de mitigação são necessárias, mas a pandemia só pode ser erradicada na medida em que for combinada com uma estratégia global mais ampla para eliminar o vírus.
Todas as declarações de que tal política é impossível e inviável são refutadas tanto pela experiência histórica ‒ incluindo a erradicação bem-sucedida da varíola ‒ como pelo exemplo da China. A China, o país mais populoso do mundo, mostrou que é possível conter a COVID-19 através de uma política de COVID Zero, empregando os métodos há muito tempo utilizados como parte da política de saúde pública básica.
Entretanto, a implementação de uma estratégia de eliminação global deve ser baseada na classe trabalhadora. A experiência dos últimos dois anos produziu uma enorme revolta social entre milhões de trabalhadores em todo o mundo. Isso hoje se cruza com a crescente oposição à desigualdade, à exploração e à enorme crise social e econômica que tem sido produzida pela resposta da classe dominante à pandemia.
No terceiro ano da pandemia, a luta pela eliminação global da COVID-19 deve estar ligada a um movimento social, político e revolucionário massivo da classe trabalhadora, que tem como objetivo a completa reestruturação da vida social e econômica. Em seu nível mais fundamental, a pandemia expôs a falência do capitalismo e, portanto, a necessidade do socialismo.