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Perspectivas

Genocídio e propaganda de guerra

Publicado originalmente em 14 de abril de 2022

Na terça-feira, o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, declarou que a Rússia estava praticando genocídio na Ucrânia. A acusação feita por Biden é uma mentira, mas é mais do que isso. É uma provocação política com o objetivo consciente de incitar uma histeria pública para legitimar a escalada massiva da guerra, incluindo a participação total e aberta dos Estados Unidos.

Genocídio é uma palavra preenchida com profundo conteúdo histórico. Não existe acusação mais grave que possa ser feita.

Na Rodovia 80, ou “Rodovia da Morte”, veículos foram destruídos conforme as forças iraquianas recuaram do Kuwait durante a Operação Tempestade no Deserto, 8 de abril de 1991.

Em 1944, Raphael Lemkin, um advogado judeu polonês, em seu livro, Domínio do Eixo na Europa ocupada, cunhou a palavra “genocídio” ‒ um acoplamento de genos (do grego, raça ou povo) com caedes (do latim, assassinato). Tanto a própria palavra como a sua posterior codificação legal pela Organização das Nações Unidas estavam inseparavelmente ligadas ao Holocausto. O que as forças Aliadas descobriram no final da Segunda Guerra Mundial foram evidências do pior crime na história da humanidade: campos de extermínio, valas comuns, câmaras de gás, os fornos humanos e os amontoados de óculos e cabelos humanos e dentes de ouro extraídos. O neologismo de Lemkin abarcou com dificuldade esse enorme crime: o extermínio cuidadosamente planejado pelos nazistas dos judeus europeus, seis milhões de pessoas mortas com eficiência industrial.

Essa experiência exigiu uma formulação precisa que entregasse força legal e especificidade ética à expressão “nunca mais”. Em 1948, na Convenção sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, a ONU codificou uma definição legal internacional de genocídio. Seriam crimes específicos “cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal”.

Os crimes do Holocausto foram gravados na consciência do mundo. O genocídio foi o extermínio premeditado e sistemático de uma população por causa de sua raça, etnia, nacionalidade ou religião. Os crimes monstruosos do imperialismo e da guerra foram ponderados na consciência popular com essa medida, e aqueles que se aproximavam de suas barbáries foram considerados genocidas. A história foi reexaminada sob essa perspectiva, e se chegou à conclusão de que os crimes de Hitler foram prenúncios dos crimes do imperialismo.

A expansão do capitalismo americano para o oeste foi alimentada pelo carvão das ferrovias e por atos genocidas. As populações indígenas eram obstáculos para esse avanço, e a cavalaria e os colonos os exterminaram sistematicamente. A Lei de Remoção dos Índios de 1830, a Trilha das Lágrimas, o Massacre de Sand Creek, a remoção forçada de crianças ‒ Sioux e Cheyenne, Comanche e Yuki foram massacrados. Assim foi realizada “a conquista do Oeste”.

O surgimento do imperialismo americano, com a conquista das Filipinas na virada do século, obtendo uma colônia formal na Ásia, foi conduzido em uma escala e com uma rapacidade genocidas. Mais de 200 mil filipinos foram mortos. Eles foram torturados, as suas aldeias foram incendiadas e as populações foram levadas à força para campos de concentração. O general Jacob Smith encarnou a brutalidade da conquista quando disse aos seus soldados: “Desejo que você mate e queime, quanto mais você matar e queimar, melhor me agradará”. O assassinato em massa foi um meio para a conquista colonial.

Cada uma das grandes potências coloniais tomou suas possessões pela força genocida quando julgaram necessário. Os belgas conseguiram borracha do Congo com trabalhos forçados, mutilações, torturas e assassinatos em massa. Os britânicos mantiveram a Índia com repetidos massacres. Os franceses subjugaram a Argélia com a violência genocida.

O lançamento de bombas atômicas pelos Estados Unidos em Hiroshima e Nagasaki foram atos genocidas. Os bombardeios mataram quase 250 mil pessoas, a esmagadora maioria delas civis. É inegável que o racismo foi um fator crítico. Cidadãos americanos de ascendência japonesa foram presos em campos de concentração nos Estados Unidos. Era afirmado freqüentemente que os japoneses seriam diferentes, e eles não se renderiam a menos que se matasse todos eles. Centenas de milhares de médicos, estudantes do ensino médio, avós ‒ foram incinerados nas explosões nucleares; outros dezenas de milhares sofreram com a morte agonizante pela radiação.

A classe dominante americana sustentou a sua hegemonia na Guerra Fria auxiliando e supervisionando o derramamento de sangue ao redor do mundo, muitas vezes de dimensões genocidas. O ditador indonésio, Suharto, subiu ao poder em 1965 através do massacre de centenas de milhares de membros do Partido Comunista da Indonésia. Os Estados Unidos coordenaram esse assassinato em massa, acompanhando seu decorrer e fornecendo comunicação de rádio para as unidades militares e paramilitares que o realizaram. Comunistas e pessoas declaradas comunistas foram esfaqueados até a morte e seus corpos mutilados preencheram os rios de Sumatra, Java e Bali.

Quando a convenção sobre genocídio da ONU foi concluída em 1948, os Estados Unidos não assinaram, e não o fizeram por mais quarenta anos. Exisita o entendimento de que acusações poderiam ser feitas contra os Estados Unidos por suas guerras na Coréia e no Vietnã, pelo bombardeio de saturação do Laos e do Camboja, e pelo uso do agente laranja e do napalm. Em 1988, quando Washington finalmente assinou a convenção contra o genocídio, foi com a ressalva de que os Estados Unidos teriam imunidade contra a acusação de genocídio, a menos que o governo nacional dos EUA a autorizasse.

Nos últimos trinta anos, ocorreram crimes ininterruptos do império americano no Oriente Médio e na Ásia Central. Hospitais e vilarejos foram deliberadamente bombardeados. Cidades foram reduzidas a escombros. As sanções econômicas mataram de fome centenas de milhares de crianças, e os ataques com drones as mataram enquanto brincavam. O que foram antes orgulhosas civilizações são hoje assombradas por ruínas.

A única defesa plausível que Bush, Obama e Trump poderiam preparar se fossem acusados de genocídio, é a de que, enquanto lançavam e conduziam guerras de agressão que matavam mais de um milhão de iraquianos e centenas de milhares de afegãos, eles viram a morte de homens, mulheres e crianças como um meio útil para um fim, e não como o fim em si mesmo. As suas ações são inegavelmente genocidas.

Biden está no comando dessa potência encharcada de sangue e acusa a Rússia de genocídio. As acusações distorcem deliberadamente, tanto os fatos contemporâneos quanto a definição legal estabelecida historicamente.

Biden aponta para eventos específicos ‒ corpos nas ruas de Mariupol, o bombardeio de uma estação de trem ‒ que podem ser crimes de guerra, mas isso exige investigação. Nem os detalhes precisos nem o perpetrador foram concluídos até agora. Não foram apresentadas quaisquer evidências de que Putin tenha a intenção de erradicar o povo ucraniano.

Nada do que aconteceu na Ucrânia pode ser medido na escala genocida estabelecida pelos nazistas e os Estados Unidos e outras potências imperialistas. A acusação de Biden trivializa o Holocausto e comete uma violência contra a história.

As acusações de genocídio de Biden não são o exagero retórico da indignação moral. Elas são a escalada deliberada e imprudente do conflito a serviço dos interesses do imperialismo americano e possuem como alvo os inimigos de Washington.

Washington grita genocídio quando a Rússia bombardeia Kiev, mas não quando a Arábia Saudita lança bombas americanas sobre o Iêmen, tendo matado mais de 377 mil pessoas. Biden acusa a China de genocídio pelo tratamento dos uigures, mas não diz uma palavra sobre a devastação sistemática do povo palestino por parte de Israel.

As histórias de atrocidades contadas por Washington e as repetidas acusações sem fundamento de genocídio nos contam muito menos dos próprios acontecimentos e muito mais sobre a febre de guerra que está convulsionando as potências imperialistas. Uma vez que o genocídio é apontado, não é possível continuar uma escalada retórica.

Os EUA estão se preparando para um conflito militar direto com a Rússia. Biden fala de genocídio ‒ que confunde distinções legais, históricas e morais obtidas com grande dificuldade ‒ para fins de propaganda de guerra. Os russos ‒ que não são responsáveis pelas ações de seu governo ‒ são hoje estigmatizados, bloqueados de competições internacionais, ameaçados e perseguidos internacionalmente.

Em um sentido inequívoco, Biden está cultivando uma mentalidade genocida, marcada pela culpabilização irracional e pelo ódio baseado na nacionalidade. O falso uso desse termo por Biden está desencadeando uma guerra global que poderia se revelar genocida, na qual o sujeito do genocídio é a própria espécie humana.

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