Português
Perspectivas

A morte de Mikhail Gorbachev e o legado da contrarrevolução stalinista

Publicado originalmente em 31 de agosto de 2022

O ex-secretário geral do Partido Comunista (PC) e presidente da União Soviética, Mikhail Gorbachev, morreu no dia 30 aos 91 anos de idade em um hospital em Moscou. Ele sofria de doença renal há muitos anos.

Presidente soviético, Mikhail Gorbachev, discursando para um grupo de 150 executivos de negócios em São Francisco em 5 de junho de 1990. [AP Photo/David Longstreath]

Gorbachev, que entrou no PC em 1950, foi um leal servo da burocracia soviética por três décadas e meia. Ele foi responsável pelo ato final de traição realizado pelos parasitas que se elevaram acima da classe trabalhadora soviética e se aproveitaram dela: a restauração completa do capitalismo e a dissolução da URSS em mais de uma dezena de Estados. Nas palavras da arquirreacionária, Margaret Thatcher, Gorbachev era um homem com quem “se poderia negociar”.

A política da perestroika (reestruturação) de Gorbachev, implementada ao longo dos anos 1980 e início dos anos 1990, iniciou o desmonte sistemático do sistema de propriedade nacionalizada que surgiu da Revolução Russa de 1917. A perestroika eliminou as restrições ao comércio exterior, legalizou as pequenas empresas, acabou com os subsídios para indústrias chave, jogou fora as leis trabalhistas e desorganizou a economia e a sociedade soviéticas.

As empresas subitamente forçadas a um sistema de “autofinanciamento” se viram incapazes de assegurar os recursos necessários para produzir, pagar salários ou financiar os serviços e benefícios sociais que eram direito da classe trabalhadora e a espinha dorsal do seu padrão de vida. Os administradores das fábricas mais bem posicionadas, dirigidas pelo Estado para fabricar com fins lucrativos, desviaram bens do setor estatal da economia e venderam artigos de consumo desesperadamente necessários pelo preço que o mercado suportasse.

As reformas iniciaram um processo de amplo saquede bens estatais. Os filhos da elite tiraram proveito de privilégios legais especiais concedidos aos membros da organização de juventude comunista, o Komsomol, para abrir negócios e vender bens e recursos soviéticos no país e no exterior. Surgiu uma indústria bancária secundária, pois aqueles com acesso às contas financeiras das empresas criaram operações de empréstimo que lucraram com a crise e o desespero social.

Em 1989, cerca de 43 milhões de pessoas na URSS viviam com menos de 75 rublos por mês, bem abaixo da linha oficial de pobreza de cerca de 200 rublos. Escrevendo em 1995, o pesquisador, John Elliot, descreveu a época como uma caracterizada pela “deterioração da qualidade e indisponibilidade de bens, proliferação de canais de distribuição especiais, filas mais longas e demoradas, racionamento prolongado, preços mais altos... estagnação no oferecimento de saúde e educação, e o crescimento do escambo, da autarquia regional e do protecionismo local”. Oficialmente, cerca de quatro milhões de pessoas estavam desempregadas em 1990, mas especialistas argumentam que se tratava de uma subcontagem, com o número real chegando a 20 milhões. Com grandes números de pessoas falidas, o alcoolismo, o uso de drogas e as mortes por desespero cresceram rapidamente durante os anos seguintes.

Por tudo isso, Gorbachev é ampla e justamente odiado em toda a ex-URSS.

Durante a perestroika, o Comitê Internacional da Quarta Internacional (CIQI), o movimento trotskista mundial, foi a única tendência política que rejeitou as declarações de Gorbachev de que estava iniciando uma nova era de prosperidade e “justiça socialista” na qual os merecedores seriam recompensados e os corruptos seriam eliminados. Em uma declaração de 1987, O que está acontecendo na URSS? Gorbachev e a crise do stalinismo, o CIQI advertiu:

Tanto para a classe trabalhadora da União Soviética quanto para os trabalhadores e massas oprimidas internacionalmente, a chamada política de reforma de Gorbachev representa uma sinistra ameaça. Ela compromete as conquistas históricas da Revolução de Outubro e está ligada a um aprofundamento da colaboração contrarrevolucionária da burocracia com o imperialismo em escala mundial.

O CIQI publicou dezenas de declarações expondo Gorbachev e suas políticas pelo que foram. Esse extraordinário registro de análise política pode ser acessado aqui. David North, atualmente representante nacional do Partido Socialista pela Igualdade e representante do conselho editorial internacional do World Socialist Web Site, viajou para a URSS em 1989 para intervir nos acontecimentos. Ele conversou com trabalhadores, estudantes e intelectuais sobre os perigos políticos que a falsa agenda de reforma de Gorbachev representava.

Ao se opor a qualquer concepção de que a burocracia soviética estava passando por um processo de “autorreforma”, o CIQI fez oposição a todos aqueles que se diziam socialistas que apoiavam e aplaudiam Gorbachev. À frente entre eles estavam os partidos pablistas, que, em 1953, romperam com o trotskismo com o argumento de que o stalinismo não precisava ser derrubado, mas podia ser pressionado para a esquerda. Eles encobriram e facilitaram os muitos crimes do stalinismo contra a classe trabalhadora no decorrer do meio século subseqüente. Durante os anos 1980, os pablistas foram dominados pela “Gorbimania” que saudou o líder soviético como um grande libertador do povo e sua esposa, odiada na URSS por suas exibições desavergonhadas de riqueza pessoal, como uma verdadeira “primeira-dama”.

Escrevendo em 1989, Ernest Mandel, figura destacada do pablismo, declarou em seu livro, Além da Perestroika: “Do ponto de vista do povo operário soviético e do proletariado mundial, Gorbachev seria hoje a melhor solução para a URSS”. Segundo dados oficiais, somente naquele ano, a URSS perdeu 7,3 milhões de dias úteis em greves, em grande parte impulsionadas pela agitação em massa nas minas. Durante apenas os primeiros nove meses do ano seguinte, esse número subiu para 13,7 milhões.

O CIQI insistiu que Gorbachev não estava rompendo com o stalinismo, como foi declarado pelos pablistas e muitos outros, mas o levando à sua conclusão lógica. O CIQI baseou sua análise numa perspectiva histórica, enraizada na luta liderada por Leon Trotsky contra o stalinismo e na subseqüente luta do CIQI contra o pablismo.

Trotsky, que liderou a Revolução Russa de 1917 ao lado de Lenin e mais tarde a oposição socialista a Stalin, descreveu a burocracia que surgiu no contexto do atraso e isolamento da União Soviética como semelhante a uma força policial controlando a distribuição de uma cada vez maior mas ainda inadequada torta. Ela assegurou a maior parte para si.

Em conflito com os princípios igualitários da revolução e as reivindicações das massas trabalhadoras da riqueza produzida a partir de seu próprio trabalho, a burocracia governou pela força. O Grande Terror dos anos 1930, que culminou no assassinato de Trotsky pelas mãos de um agente stalinista em 1940, exterminou uma geração inteira de revolucionários e procurou reprimir violentamente as demandas do proletariado.

Entretanto, a brutalidade do Terror não resolveu o problema da classe trabalhadora para a burocracia soviética. Na medida em que a elite dominante vivia da propriedade nacionalizada que surgiu da Revolução de 1917, ela sabia que os trabalhadores da URSS podiam reafirmar suas reivindicações ao que uma vez haviam conquistado e, ao fazê-lo, expulsar os burocratas do poder. Conforme Trotsky escreveu em A Revolução Traída, a questão era: “O burocrata irá devorar o Estado operário, ou a classe trabalhadora irá limpar o burocrata? As repetidas erupções de revolta da classe trabalhadora contra o stalinismo – na Hungria em 1956, na Tchecoslováquia em 1968, na Polônia em 1980-1981 – assombravam e assustavam o PC.

Gorbachev estava subindo nas fileiras da burocracia do partido durante esse período. Ele subiu cada vez mais nos círculos partidários com o apoio de forças que, apesar das críticas que algumas passaram a fazer aos crimes de Stalin como parte do degelo da era Khrushchev, foram participantes plenos do sangrento regime do ditador. Eles eram defensores absolutos de seu próprio privilégio e poder, seus confortáveis apartamentos, casas de férias, motoristas, lojas fechadas onde só eles podiam comprar mercadorias especiais e assim por diante.

Com o apoio de Leonid Brezhnev, Gorbachev se movimentou para a alta elite do PC durante os anos 1970. Ele era politicamente e pessoalmente próximo de Yuri Andropov, o chefe da polícia secreta stalinista e o primeiro arquiteto das reformas da perestroika. Eles até mesmo saíam de férias juntos.

Após a morte de Andropov em 1984, Gorbachev se tornou o principal representante daquela ala do PC que acreditava que a única maneira de preservar seus privilégios era mover-se o mais rápido possível para restaurar o capitalismo na URSS – isto é, tornar-se, como Trotsky previu, uma verdadeira classe proprietária antes que o proletariado pudesse agir contra ele. Quando as greves dos mineiros atingiram a URSS no final dos anos 1980 e milhões de trabalhadores de outros setores da indústria saíram do trabalho em protesto contra as políticas da perestroika, a burocracia acelerou o processo de restauração capitalista.

Ao lado da perestroika, Gorbachev iniciou a glasnost (abertura). Ela permitiu, pela primeira vez em muitas décadas, o debate público e a discussão da história soviética, incluindo mais revelações sobre os crimes de Stalin. Entretanto, o objetivo da glasnost não era democratizar a sociedade soviética, muito menos dar à classe trabalhadora o direito a qualquer poder de decisão nos assuntos de seu próprio Estado. Ao contrário, o objetivo de Gorbachev era criar uma base pela restauração capitalista entre a emergente pequena burguesia soviética e as camadas que procuravam entrar nela, permitindo-lhes voz nos assuntos políticos e encorajando a reinterpretação democrática liberal da história soviética que fosse ao mesmo tempo anticomunista e defendesse o ataque de Stalin a Trotsky. Além de ser objeto de infindáveis mentiras históricas, Trotsky foi menosprezado como um “apologista da igualdade”.

Com o desenvolvimento da glasnost, o Partido Comunista promoveu um agressivo ataque ao princípio da igualdade. Ele foi identificado como a verdadeira fonte dos inúmeros problemas da URSS. Particularmente vingativo foi o ataque dirigido contra a classe trabalhadora, que supostamente recebia muito e fazia muito pouco. Enquanto muitos antigos revolucionários foram oficialmente reabilitados durante a era Gorbachev, Trotsky permaneceu um objeto de ódio e falsificações oficiais. Em seu discurso de 1987, comemorando o 70º aniversário da revolução de 1917, Gorbachev denunciou explicitamente Trotsky como um herege e “um político excessivamente seguro de si que sempre vacilou e trapaceou”. Ele nunca foi reabilitado pelo Partido Comunista.

Em seu discurso de 1990 no congresso do Partido Comunista, Gorbachev declarou que suas reformas estabeleceram “as bases materiais para um período irreversivelmente pacífico da história e para a solução do problema global da humanidade”. Nada disso se concretizou. A dissolução da União Soviética produziu um colapso na expectativa de vida visto apenas nas guerras mundiais.

O regime de Putin na Rússia representa uma fração da oligarquia que se enriqueceu enormemente com a liquidação dos bens do Estado. A grande maioria das pessoas na Rússia e na ex-URSS está empobrecida. Toda a região é objeto de maquinações imperialistas. Pouco resta de todo o acordo pós-Segunda Guerra Mundial. O Oriente Médio e o Norte da África estão em chamas. A Ucrânia está sendo destruída como parte da guerra dos EUA-OTAN contra a Rússia. O mundo está mais próximo do holocausto nuclear do que nunca.

Conforme o CIQI tem argumentado há décadas, a liquidação da URSS pela burocracia soviética não marcou o triunfo da ordem capitalista global, mas foi um sinal inicial de seu decaimento para a crise cada vez mais profunda. Durante os anos 1980 e 1990, o sistema de Estados-nação do período pós-guerra estava se desintegrando sob a pressão da globalização, e todas as forças – dos stalinistas aos socialdemocratas e aos sindicatos – usadas para conter e encurralar a classe trabalhadora, e manter suas lutas presas dentro das fronteiras nacionais estavam desmoronando. Os imperialistas, que durante muito tempo haviam confiado nos stalinistas para estabilizar politicamente o sistema mundial, estariam mais uma vez disputando uns com os outros, lutando pelo controle dos recursos e dos mercados. A abertura da URSS para os investidores estrangeiros aumentou enormemente o tamanho dos espólios.

Em 25 de dezembro de 1991, Gorbachev assinou a declaração que extinguiu a União Soviética. Desde então, passaram-se 30 anos de guerra sem fim. Pouco depois de sua morte, na terça-feira, as páginas da imprensa ocidental se encheram de homenagens para o antigo líder soviético. Os próprios veículos de notícias que estão derramando lágrimas pelo último contrarrevolucionário da URSS também são aqueles que aplaudem a guerra dos EUA e da OTAN contra a Rússia. Eles exigem não o fim do banho de sangue, mas a sua expansão.

O verdadeiro legado de Gorbachev não reside em seus tolos pronunciamentos sobre as supostas virtudes do capitalismo e de que o imperialismo foi um mito, não uma realidade, mas na guerra fratricida, preparada pelos EUA e pela OTAN, que está atualmente dilacerando a Ucrânia e visando o desmembramento da Rússia.

Quanto às proclamações do Ocidente de que as reformas de Gorbachev e a dissolução da URSS anunciaram “o fim da história” e o triunfo da ordem mundial liberal – elas se mostraram igualmente falsas. A democracia americana está em estado de quase morte. Dezenove meses após o golpe de extrema direita quase derrubar o governo americano, o presidente Biden deve falar hoje sobre a ameaça do colapso da democracia americana. Enquanto isso, a expectativa de vida nos EUA caiu por três anos devido à resposta homicida da classe dominante à pandemia.

Porém, tanto quanto os burocratas stalinistas e os imperialistas estavam errados sobre a vitória do capitalismo global, também estavam errados sobre a luta de classes e o suposto fim do socialismo. O crescimento massivo da desigualdade social, o estado grotesco da política moderna e a brutalidade da vida cotidiana estão atraindo dezenas de milhões de pessoas à luta em todo o mundo. Para elas, o socialismo não morreu com a União Soviética, mas está na ordem do dia.

Loading