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Perspectivas

A última luta de Lenin

Publicado originalmente em 27 de dezembro de 2022

Há cem anos, em 23 de dezembro de 1922, Lenin começou a escrever um dos documentos mais significativos politicamente na história da União Soviética. Tratava-se de uma série de notas que seriam publicadas como uma carta ao Décimo Segundo Congresso do Partido Comunista. O líder bolchevique, que não havia se recuperado totalmente do derrame que sofreu no início daquele ano, estava plenamente consciente de que seu estado de saúde poderia impedi-lo de participar do congresso.

Essas notas, que ficariam na história como o Testamento de Lenin, incluíam uma avaliação dos principais líderes do Partido Bolchevique. Não era intenção de Lenin, que via a liderança como um processo coletivo enraizado nas relações que refletiam as tendências políticas dentro do partido, propor um sucessor formal. A relação de Lenin com o Partido Bolchevique era de um caráter político e historicamente tão único que ela não poderia, em nenhum caso, ser reproduzida por nenhum outro indivíduo. Ele estava, no entanto, profundamente preocupado que as tensões dentro do partido, sob condições de objetiva crise econômica e social e diferenças sobre políticas, pudessem levar a perigosos conflitos entre frações da direção central.

Vladimir Lenin em 1920

Com a intenção de prevenir conflitos destrutivos, Lenin avaliou os pontos fortes e fracos dos principais membros do Comitê Central (CC).

Na nota de 24 de dezembro, Lenin escreveu:

O camarada Stalin, tendo se tornado secretário-geral, concentrou em suas mãos um enorme poder, e não tenho certeza se sempre será capaz de usar esse poder com suficiente cautela.

Essa avaliação foi seguida pela seguinte apreciação de Trotsky:

O camarada Trotsky, por outro lado, como sua luta contra o CC na questão do Comissariado do Povo das Comunicações já provou, não se distingue apenas por sua excepcional capacidade. Ele é pessoalmente talvez o homem mais capaz do atual CC, mas demonstrou uma autoconfiança excessiva e mostrou uma preocupação excessiva com o aspecto puramente administrativo do trabalho.

Lenin então alertou:

Essas duas características dos dois destacados líderes do atual CC podem inadvertidamente levar a uma cisão, e se nosso Partido não tomar medidas para evitar isso, a cisão pode vir inesperadamente.

Lenin continuou escrevendo as notas durante os dias seguintes.

Entre as questões mais críticas com as quais Lenin se ocupou ao escrever suas notas, estava a relação das repúblicas socialistas dentro do Estado soviético estabelecido em 1922. Lenin, com receio do renascimento do domínio da Grande Rússia dentro da URSS, insistiu no direito das repúblicas socialistas, como a Ucrânia e a Geórgia, de se separarem.

Em notas de 30 de dezembro de 1922, Lenin expressou a preocupação de que o governo soviético pudesse não fornecer proteção suficiente contra a opressão da Grande Rússia. Nesse contexto, os comentários de Lenin sobre Stalin – especialmente ao analisar sua conduta abusiva em relação aos representantes das minorias nacionais na Geórgia – foram cada vez mais severos. Referindo-se claramente ao comportamento de Stalin, Lenin alertou contra “o chauvinista da Grande Rússia, em essência um canalha e um opressor, como é o típico burocrata russo”.

Lenin continuou: “Acho que a pressa e tendência administrativa de Stalin, juntamente com seu rancor contra o notório ‘social- nacionalismo’, desempenharam aqui um papel fatal. Na política, o rancor geralmente desempenha o mais baixo dos papéis.”

Em 4 de janeiro de 1923, Lenin acrescentou o seguinte parágrafo a sua nota de 24 de dezembro:

Stalin é muito rude e esse defeito, embora bastante tolerável em nosso meio e no trato entre nós comunistas, torna-se intolerável em um secretário-geral. É por isso que sugiro que os camaradas pensem em uma maneira de retirar Stalin desse cargo e de nomear outro homem em seu lugar, que em todos os outros aspectos difere do camarada Stalin apenas por uma vantagem, a saber: que seja mais tolerante, mais leal, mais educado e mais atencioso com os camaradas, menos caprichoso, etc. Isso pode parecer um detalhe insignificante.

Mas eu acho que do ponto de vista das salvaguardas contra uma cisão e do ponto de vista do que escrevi acima sobre a relação entre Stalin e Trotsky, não é um detalhe [menor], mas é um detalhe que pode assumir importância decisiva.

Nas semanas seguintes, aumentou a hostilidade política e o desprezo pessoal de Lenin por Stalin. O líder bolchevique pediu apoio a Trotsky na luta que ele planejava travar contra Stalin no congresso do partido. Em 5 de março de 1923, ele escreveu:

Ultrassecreto

Pessoal

Prezado camarada Trotsky: É meu pedido sincero que você empreenda a defesa da questão da Geórgia no Partido CC. Esse caso está agora sob “perseguição” de Stalin e Dzerzhinsky, e eu não posso confiar na imparcialidade deles. Muito pelo contrário.

Eu me sentiria à vontade se você concordasse em empreender essa defesa. Se você se recusar a fazê-lo por qualquer motivo, devolva-me o caso inteiro. Considerá-lo-ei um sinal de que você não aceita.

Lenin enviou então a seguinte carta a Stalin:

Você foi tão rude a ponto de chamar minha esposa ao telefone e usar palavrões. Embora ela lhe tivesse dito que estava disposta a esquecer isso, o fato, no entanto, tornou-se conhecido através dela para Zinoviev e Kamenev.

Não tenho a intenção de esquecer tão facilmente o que foi feito contra mim, e é evidente que o que foi feito contra minha esposa eu também considero ter sido feito contra mim.

Peço-lhe, portanto, que pense se você está disposto a retirar o que disse e a apresentar suas desculpas, ou se prefere que as relações entre nós sejam rompidas.

Quatro dias depois, em 9 de março de 1923, Lenin sofreu um derrame que pôs um fim à sua carreira política. Ele morreu em 21 de janeiro de 1924. Após a morte de Lenin, uma manobra sem princípios de Stalin e seus partidários bloqueou a leitura do Testamento no Décimo Terceiro Congresso do Partido, em 1924. Ele deveria permanecer ocultado dos soviéticos por 40 anos. Em 1964, o governo soviético – 11 anos após a morte de Stalin – permitiu a inclusão do Testamento de Lenin em uma nova edição de suas Obras Completas.

Quando Lenin escreveu o Testamento, a extensão e o significado das divisões que estavam se desenvolvendo dentro do Partido Bolchevique ainda não eram conhecidos. O Testamento de Lenin e as notas e apontamentos que o acompanhavam eram uma antecipação do conflito que se desenrolava. Nos meses que se seguiram, Trotsky continuou e desenvolveu a crítica antecipatória de Lenin ao burocratismo e ao chauvinismo nacional.

Em outubro de 1923, 10 meses após Lenin ter escrito seu Testamento, foi fundada a Oposição de Esquerda. O surgimento do movimento trotskista marcou a continuação da última grande luta de Lenin.

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