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Perspectivas

Revisitando o caso dos “Cinco do Central Park” na era do #MeToo

Publicado originalmente em 8 de Junho de 2019

“É mais do que raiva... É ódio, e eu quero que a sociedade os odeie.” – Anúncio de uma página inteira de Donald Trump no New York Times e outros jornais, 1˚ de maio de 1989.

“Um bando de adolescentes causa alvoroço no Central Park… estuprando uma jovem inocente… os nova-iorquinos respondem com fúria unânime: os culpados pela atrocidade merecem punição rápida e severa.” – New York Times, “A Corredora e a Manada de Lobos”, 26 de abril de 1989.

“As pessoas apenas gritavam, você sabe, ‘Estuprador!’ ‘Seu animal!’ ‘Você não merece estar vivo’... Parecia que o mundo inteiro nos odiava.” – Antron McCray, um dos membros dos “Cinco do Central Park”.

O lançamento de Olhos que Condenam (When They See Us, no título original), a minissérie da Netflix sobre o caso de uma mulher estuprada quando corria no Central Park, dirigida por Ava Duvernay, levou ao julgamento do público a conspiração policial de 1989 contra cinco adolescentes afro-americanos conhecidos como “Os Cinco do Central Park”.

A série mostra em detalhes como policiais, detetives e promotores intimidaram e brutalizaram um grupo de adolescentes para que confessassem um crime que não haviam cometido, e como a caça às bruxas da mídia de direita manipulou um júri a dar o veredito que foi um claro erro de justiça.

O caso fez com que o establishment político estadunidense exigisse medidas histéricas de lei e ordem, que foram completadas por mensagens racistas indiretas. Em uma coluna de opinião do Washington Post intitulada “Os bárbaros estão vencendo”, o ideólogo fascista republicano Pat Buchanan escreveu: “Como um povo civilizado e autoconfiante lida com inimigos que estupram suas mulheres em gangues? Exércitos os colocam contra a parede e atiram neles; ou nós os enforcamos.”

Ecoando provocativamente a longa tradição da “justiça” de linchamento nos EUA, Buchanan continuou: se “o mais velho daquele bando fosse julgado, condenado e enforcado no Central Park, até 1º de junho, e os de 13 e 14 anos de idade fossem despidos, chicoteados e mandados para a prisão, o parque estaria seguro novamente para as mulheres.”

Donald Trump, então um magnata do ramo imobiliário de Nova York, publicou anúncios em quatro jornais locais, incluindo o New York Times, com o título: “TRAGAM DE VOLTA A PENA DE MORTE! TRAGAM DE VOLTA A NOSSA POLÍCIA!” Trump anunciou ferozmente: “Eu quero odiar esses assaltantes e assassinos. Eles devem ser forçados a sofrer e, quando matam, devem ser executados por seus crimes... AS LIBERDADES CIVIS ACABAM QUANDO UM ATAQUE À NOSSA SEGURANÇA COMEÇA!”

O lançamento de Olhos que Condenam provocou um clamor público que levou à renúncia de Linda Fairstein, a promotora principal do caso, do conselho de administração da Vassar College. Fairstein foi ainda dispensada por sua editora de longa data depois que uma petição reuniu mais de 100.000 assinaturas e após a hashtag #CancelLindaFairstein virar uma tendência nas redes sociais.

Escrevendo no New York Times, Sarah Burns atribuiu a culpa pelo erro da justiça diretamente a Trump. “O Sr. Trump deve desculpas a muitas pessoas. No topo de sua lista crescente, devem estar o Sr. McCray, o Sr. Wise, o Sr. Salaam, o Sr. Santana e o Sr. Richardson.”

Qualquer exame sério e objetivo do caso, entretanto, revela que não são apenas Trump e Fairstein os culpados. Toda a mídia ligada ao establishment, quase sem exceção, envolveu-se em uma orgia de histeria vigilante que não era vista desde a era Jim Crow.

O Washington Post, cujo lema atual é “A democracia morre na escuridão”, em um editorial de página completa, instruiu a seus leitores: “Canalizem sua Indignação: Exijam a Pena de Morte” para os adolescentes incriminados. “Se os nova-iorquinos quiserem recuperar sua cidade dos assassinos e dos criminosos, eles devem restaurar a capacidade do sistema de justiça criminal de intimidar os potenciais criminosos”, declarou o jornal.

Referindo-se explicitamente aos adolescentes que foram presos e violentados pela polícia para assinarem suas confissões, o Post escreveu: “Os bandidos que estupraram, esfaquearam e espancaram uma mulher de 28 anos não deram a mínima para a possibilidade de serem punidos de forma proporcional ao seu crime sádico – isto é, torturados e talvez executados.”

Em um sórdido editorial publicado em 26 de abril de 1989, intitulado “A Corredora e a Manada de Lobos”, o New York Times juntou-se entusiasticamente à multidão de linchadores. Segundo ele,

A notícia inspira horror e indignação: um bando de adolescentes atravessa o Central Park, assediando e agredindo várias pessoas, e finalmente brutalizando e estuprando uma jovem inocente que estava correndo em um caminho solitário, deixando-a para morrer na lama de abril. Os nova-iorquinos respondem com fúria unânime: os culpados da atrocidade merecem punição rápida e severa.

O editorial discorreu sobre as possíveis causas do ataque, ponderando se “drogas”, “ganância”, ou o alegado ódio dos jovens afro-americanos às pessoas brancas tinham sido a causa de seu ato criminoso. Na verdade, eles não cometeram e não poderiam ter cometido o crime pelo qual foram acusados e condenados.

O editorial conclui perguntando de forma pomposa: “Os adolescentes são mais propensos à violência hoje do que no passado por causa da violência abundante na televisão e no cinema? Será que mesmo as famílias estáveis não conseguem incutir valores compassivos? Ou poderia este ser apenas um caso extremo e isolado de barbaridade adolescente contagiosa?”

Inteiramente ausente do editorial, com seu subtexto moralizante e racista, está qualquer consideração sobre a questão mais relevante: os alegados perpetradores realmente cometeram o crime de que foram acusados?

Em abril de 1989, uma semana após o incidente, o jornal de Arthur Ochs Sulzberger Sr. já havia decidido que os adolescentes eram culpados, assumindo o papel de juiz e de júri.

E isso nos traz a 2019. Já se passaram 20 meses desde que o Times, agora dirigido por Arthur Ochs Sulzberger Jr. (presidente) e seu filho, A. G. Sulzberger (editor), ajudou a lançar o movimento #MeToo com uma série de acusações obscenas contra o produtor de filmes Harvey Weinstein, um homem judeu-estadunidense.

A caça às bruxas sexual em curso conseguiu prejudicar ou devastar as vidas de, entre outros, Louis C. K. (de ascendência húngara-judaica e mexicana) e Kevin Spacey (que é bissexual), e fez do comediante judeu-americano Woody Allen um pária na lista negra, apesar de nenhum desses indivíduos ter sido condenado por um crime.

Como parte de sua campanha pelo #MeToo, o Times e o Post pressionaram pela destruição pessoal do cineasta polonês Roman Polanski, também judeu e sobrevivente do Holocausto, e difamaram o afro-americano “rei do pop” Michael Jackson, morto há quase uma década.

Retomando seu modus operandi do caso do Central Park, o Times simplesmente dá como certo que esses indivíduos sejam culpados de “estupro”, “agressão sexual”, “má conduta sexual” ou mera “estranheza”! – e piedosamente exige que eles sejam punidos pelo menos através da destruição de suas carreiras. Como a crítica de cinema do Times, Manohla Dargis, escreveu sobre o talentoso e popular Louis C.K., “Eu não me sinto mal por ele ou algum luto por uma carreira que pode ter acabado. Ele é rico e pode entrar em um buraco confortável.”

O Times, o Post e outros meios de comunicação têm solicitado e conseguido obter informações que, assim esperam, façam virar a opinião pública irrevogavelmente contra esses indivíduos, expulsando-os da vida pública, mais uma vez sem colocar a questão que negligenciaram em 1989: será que esses homens são culpados de um crime?

“O #MeToo tem feito o que a lei não conseguiu”, elogiou Catharine A. MacKinnon no Times. Em outras palavras, a campanha de má conduta sexual permitiu que a “justiça” sumária fosse realizada sem que indivíduos fossem condenados ou, na maioria dos casos, sem que aparecessem em um tribunal de justiça. Isso não é, a princípio, diferente da exigência de Buchanan de que “Os Cinco do Central Park” fossem “colocados contra a parede”.

O Times e o Post simplesmente ignoram o papel que tiveram em levar “Os Cinco do Central Park” para a prisão – ou citam seletivamente suas próprias declarações sem comentários. Se seus editores fossem forçados dar alguma resposta, talvez argumentassem que o tempo era outro, os fatos não eram claros e que suas declarações cruéis refletiam preconceitos e insensibilidades passados e há muito abandonados.

No entanto, o jornal Bulletin, o precursor do World Socialist Web Site, foi claro em 1989 sobre o que representavam suas posições violentas e de lei e ordem. O jornal do movimento socialista mundial nos EUA condenou o “sensacionalismo perverso anti-classe trabalhadora ligado ao recente estupro no Central Park”, declarando que a campanha visava “canalizar apoio por trás do acúmulo dos poderes repressivos do estado capitalista, para ser usado contra a classe trabalhadora.”

Concluímos com uma reafirmação do que dissemos em 1989, do que dissemos na época do lançamento do movimento #MeToo em 2017 e do que dizemos hoje: a presunção da inocência serve aos fracos contra os fortes, à minoria contra a maioria, aos outsiders contra o establishment e aos trabalhadores contra o governo capitalista. Todos aqueles que pedem o fortalecimento dos “corpos de homens armados”, conhecidos como o Estado, não têm nada em comum com a luta pela igualdade social, a causa do progresso social ou a defesa dos direitos democráticos.

Fazer “o que a lei não pode” é chamado lei do linchamento. Os trabalhadores devem estar atentos aos caçadores de bruxas e histéricos da lei e ordem da classe média que dizem o contrário.

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