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Classe dominante brasileira apoia crescente controle militar enquanto pandemia de COVID-19 toma conta do país

Publicado originalmente em 10 de abril de 2020

O establishment político brasileiro, desde os círculos empresariais, passando pelos conselhos editoriais burgueses até todo o espectro de partidos políticos, está tratando como um fato consumado que o ministro da Casa Civil do presidente Jair Bolsonaro, general Walter Braga Netto, foi designado pelos militares para assumir a resposta criminosa e negligente do governo à pandemia de COVID-19.

A pandemia está rapidamente tomando conta de todo o país, com autoridades projetando um cenário “otimista” de 100.000 mortes no estado de São Paulo e admitindo ter perdido o controle de quantos testes foram realizados em todo o Brasil.

A negligência e incompetência grosseiras do governo Bolsonaro colocaram em xeque a legitimidade de toda a estrutura burguesa no Brasil.

Com o número de mortes por coronavírus se aproximando de 1.000, o presidente fascista do Brasil fez um discurso na noite de quarta-feira em que novamente condenou o fechamento dos negócios nos estados e o distanciamento social. Segundo ele, “as consequências do tratamento não podem ser mais danosas que a própria doença”, alertando também sadicamente que “o desemprego também leva à pobreza, à fome, à miséria, enfim, à própria morte”. Bolsonaro também utilizou o discurso para promover, como o presidente dos EUA, Donald Trump, a utilização da hidroxicloroquina no tratamento de pacientes com COVID-19, mesmo que não existam dados que comprovem a eficácia do medicamento.

Nessas condições, a crescente intervenção militar tem como objetivo principal não auxiliar a luta contra o coronavírus, mas impedir uma explosão social e, se necessário, reprimi-la.

A virada decisiva ocorreu com a quase demissão do ministro da Saúde de Bolsonaro, Luiz Henrique Mandetta, na segunda-feira, devido à sua recusa em defender a tese do presidente de isolamento “vertical”, ou seja, enviar todos os adultos com menos de 60 anos de idade de volta ao trabalho.

Os principais jornais informaram que Bolsonaro havia decidido substituir Mandetta, tendo sido depois dissuadido principalmente pelo general Braga Netto e outros que temiam que sua demissão fortalecesse os ex-aliados de direita do presidente e agora opositores, os governadores de São Paulo, João Doria, e do Rio de Janeiro, Wilson Witzel. O apoio decisivo aos militares foi resumido no editorial de quarta-feira do Estado de S. Paulo, que afirmou: “A tarefa dos militares hoje lotados no governo [como Braga Netto], portanto, tem sido a de proteger o presidente Bolsonaro de si mesmo”.

Mais tarde, Braga Netto também foi elogiado pelo vice-presidente, general Hamilton Mourão, que declarou que o ministro da Casa Civil “está fazendo o que sabemos [os militares]: colocando a ordem na casa”. A declaração de Mourão ocorreu menos de uma semana depois de ele celebrar o golpe militar de 1964 apoiado pelos EUA, que inaugurou uma ditadura de 21 anos, tuitando: “56 anos atrás, as FA [Forças Armadas] intervieram na política nacional para enfrentar a desordem, a subversão e corrupção que abalavam as instituições e assustavam a população”.

Da mesma forma, o comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, deu uma declaração em 24 de março sobre os militares e a crise do coronavírus. Segundo ele, “O Braço Forte atuará se for necessário, e a Mão Amiga estará mais estendida do que nunca aos nossos irmãos brasileiros”, terminando sua declaração com a frase: “LUTAREMOS SEM TEMOR!”.

Houve relatos dentro dos círculos da extrema direita brasileira, sem dúvida expressando o nervosismo do próprio presidente sobre a situação, de que Braga Netto encenou um “golpe branco”, tendo se tornado o “presidente operacional” no lugar de Bolsonaro.

O clima quente dentro dos círculos dominantes brasileiros é alimentado por notícias diárias da propagação catastrófica da pandemia de COVID-19 no país, que está rapidamente corroendo a legitimidade do governo, com sua cruel campanha de que o Brasil deve voltar ao trabalho e sua clara perda de controle sobre a doença nas últimas semanas.

Enquanto as autoridades registraram 941 mortes e mais de 17.857 casos no total até quinta-feira, esses números não têm credibilidade. Os estados não têm testado de maneira uniforme, com praticamente todos eles testando apenas os casos hospitalizados. Isso levou o ex-presidente da Anvisa, Claudio Maierovitch, a afirmar que o número real de casos é até 15 vezes maior que a contagem oficial. Mesmo considerando os números oficiais, há uma semana, as mortes brasileiras por COVID-19 estavam subindo seis vezes mais rápido do que as de Wuhan, na China, durante a mesma fase do surto.

A imprensa tem oferecido apenas uma visão parcial da sombria realidade. Na semana passada, uma fotografia de primeira página do Washington Post mostrou o cemitério da Vila Formosa, na zona leste da cidade de São Paulo, com dezenas de covas recém escavadas aguardando cadáveres que ainda não foram autopsiados. O cemitério registrou um salto de 50% nos enterros.

O maior e mais rico estado do país, São Paulo, agora está preparando sua própria ordem de “voltar ao trabalho”, usando manipulações estatísticas para afirmar que “achatou a curva”. Isso aconteceu deixando de incluir na contagem casos menos graves e testando apenas os que resultaram em hospitalização. Mesmo com uma quantidade extremamente limitada de testes, São Paulo possui 5.682 casos confirmados, 371 óbitos e 17.000 casos suspeitos de COVID-19 que aguardam o resultado, incluindo os de centenas de pacientes mortos. O governo agora alega que “conseguiu” reduzir para 100.000 as mortes esperadas nos próximos seis meses. Considerando que o estado possui uma população de 45 milhões de pessoas, esse número de mortes per capita é 10 vezes maior do que o registrado na Espanha.

No Rio de Janeiro, a segunda maior cidade do Brasil, pesquisadores da UFRJ descobriram que até 25% dos profissionais de saúde em hospitais que atendem pacientes com COVID-19 já estão infectados devido à falta de equipamento de proteção individual. Na Itália, esse número é de 15%. Segundo os números oficiais, o estado do Rio de Janeiro tem apenas 1.500 casos e 75 mortes.

Casos e mortes também foram registrados em favelas do Rio e São Paulo, onde os moradores não têm acesso seguro à água e saneamento básico, assim como entre os Yanomami, uma etnia indígena da Amazônia conhecida pelas aldeias afastadas e a falta de defesa imunológica contra doenças de fora.

A virada para o sanguinário e desacreditado Exército brasileiro em meio a essa catástrofe é o ato de uma classe dominante que não permitirá que uma quantidade de cadáveres atrapalhe seus lucros. A crítica quase universal a Bolsonaro no Congresso e na imprensa se deve unicamente à sua franqueza inquietante em declarar os objetivos dos grandes negócios brasileiros, que seus adversários políticos temem que provoque raiva na classe trabalhadora.

Atolada em uma crise econômica de quase seis anos, que levou a uma queda de 7% no PIB após o fim do boom das commodities, e no meio do fogo cruzado da guerra comercial dos EUA contra a China, a classe dominante brasileira está desesperada para voltar a lucrar. Depois de o Banco Central do Brasil (BC) ter anunciado que injetaria o equivalente a 17% do PIB brasileiro nos mercados financeiros, o Congresso aprovou outro pacote de resgate corporativo de 700 bilhões de reais. Desse valor, apenas 93 bilhões de reais serão utilizados para pagar 600 reais mensais durante três meses para 50 milhões de trabalhadores informais e autônomos, que ficaram sem renda em função do fechamento do comércio nos estados.

Na sexta-feira passada, 3 de abril, a Câmara dos Deputados aprovou em primeiro turno por 505 votos a favor e 2 contra a proposta de emenda constitucional (PEC) do “orçamento de guerra”, que libera o governo para gastar acima do permitido pela meta fiscal e permite que o BC, pela primeira vez na história, compre títulos podres de empresas.

Entre os maiores defensores de tais políticas – e dos militares como os “adultos na sala” e responsáveis naturais do governo Bolsonaro – está suposta oposição política liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e apoiada pelo pseudoesquerdista Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e o maoísta Partido Comunista do Brasil (PCdoB).

Todos eles votaram com o governo na PEC do “orçamento de guerra” aprovada quase de maneira unânime, enquanto declamavam uma retórica de “esquerda” para se defender da torrente de críticas sobre a enorme distribuição de dinheiro a empresas e bancos. Tanto o líder na Câmara do PCdoB, Orlando Silva, como o do PT, Rogério Correia, declararam que a aprovação da PEC era necessária “para não dar desculpa a Bolsonaro para descumprir” os benefícios mínimos de 600 reais.

Por sua vez, o PSOL, segundo as palavras do deputado Ivan Valente, considerou a PEC “muito importante” por “quebrar os parâmetros do neoliberalismo”. A hipocrisia foi ainda mais impressionante com os próprios analistas do PT, que consideraram a compra de títulos podres pelo BC como “a maior transferência de fundos públicos” na história do país.

A dedicação inabalável da oposição aos interesses da elite dominante foi resumida pela defesa tanto de Henrique Meirelles, secretário de Fazenda e Planejamento de São Paulo, o estado governado pelo ultradireitista João Doria, quanto do ex-presidente pelo PT, Luiz Inácio Lula da Silva, de o governo “imprimir dinheiro” durante a crise do coronavírus, utilizando a massiva flexibilização quantitativa do governo Trump como modelo.

Em nome de tal unidade, a oposição está pedindo a renúncia de Bolsonaro. O manifesto publicado, “O Brasil não pode ser destruído por Bolsonaro”, assinado pelos líderes do PT, PSOL e PCdoB, afirma que “Bolsonaro é o maior obstáculo à tomada de decisões urgentes para reduzir a evolução do contágio”, que sua renúncia “seria o gesto menos custoso para permitir uma saída democrática ao país” e que “ele precisa ser urgentemente contido”.

Isso é o mesmo que legitimar os aliados militares de Bolsonaro e os políticos de direita na preparação deles para conter a oposição social.

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