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Tribunal russo estende sentença de historiador do terror stalinista para 13 anos

Publicado originalmente em 23 de outubro de 2020

Em 29 de setembro, a Suprema Corte da Carélia, uma região da Federação Russa, anulou uma decisão anterior contra o historiador Yuri Dmitriev e estendeu a sua sentença de três anos e meio para um total de 13 anos nas colônias penais. A condenação é promovida como justiça e é na prática uma sentença de morte para Dmitriev, que tem 64 anos de idade, correndo maior risco de morte pelo coronavírus. A doença está se disseminando desenfreadamente na Rússia, e tem contaminado a população prisional há meses.

A sentença foi declarada na ausência do advogado de Dmitriev, que estava doente. Ela foi o auge de uma campanha vingativa de quatro anos do Estado russo contra Dmitriev, na qual ele havia sido acusado – e absolvido – de múltiplas acusações relacionadas à pornografia infantil e pedofilia.

O julgamento contra Dmitriev tem prosseguido à portas fechadas durante anos, e é um ataque politicamente motivado não apenas contra Dmitriev, mas ao direito à liberdade de expressão e à verdade histórica mais amplamente. A campanha estatal de denúncias sujas contra Dmitriev e a sentença brutal têm o objetivo de intimidar todos aqueles que procuram descobrir a verdade histórica sobre os crimes do stalinismo.

As únicas "evidências" contra Dmitriev são fotos que ele tirou de sua filha adotiva quando ela estava doente, que mostram as suas partes íntimas, assim como um "depoimento" da menina. De acordo com um dos colegas de Dmitriev, que viu o depoimento em vídeo, ele foi reunido a partir de várias sessões, todas elas ocorridas após a absolvição inicial de Dmitriev em abril de 2016. A menina, que tem oito anos de idade hoje, estava chorando e teve que ser trazida para casa repetidas vezes. Dmitriev sempre declarou a sua inocência, insistindo que tirou as fotos quando a garota estava doente para facilitar o seu tratamento médico. Todos os seus depoimentos foram confirmados pelo hospital local onde ela foi tratada.

Em julho, um tribunal declarou Dmitriev "culpado" de abuso sexual de um menor de idade. Porém, a sua sentença de três anos e meio de prisão equivalia a uma admissão de que a acusação, que geralmente traz consigo uma pena mínima de 12 anos, era insustentável. Em uma clara tentativa de preparar a opinião pública para o veredito, três dias antes do novo veredito do tribunal em 29 de setembro, o canal de televisão estatal, Rossiya, transmitiu uma reportagem sobre Dmitriev em que as imagens da sua filha adotiva foram mostradas.

Dmitriev, ele próprio um homem profundamente religioso e anticomunista, fez um trabalho importante na recuperação dos nomes das vítimas de fuzilamento e deportações em larga escala que aconteceram na Carélia, região de fronteira com a Finlândia, durante o Grande Terror stalinista na década de 1930. Ele e a sua equipe comprovaram o local das valas comuns de milhares de vítimas do terror, incluindo dezenas de antigos bolcheviques e apoiadores da Oposição de Esquerda de Leon Trotsky, os opositores socialistas ao stalinismo.

Embora o foco político de Dmitriev tenha sido nas muitas vítimas das chamadas "operações nacionais" da polícia secreta stalinista, NKVD, o seu trabalho se mostrou imensamente importante para comprovar o registro histórico tanto sobre as vítimas quanto sobre os executores do terror stalinista.

O local dos fuzilamentos em Sandarmokh é hoje um dos poucos locais do Grande Terror que são conhecidos e que possuem memoriais públicos. Os historiadores estimam que existem dezenas de outros locais no território da Federação Russa, com os restos mortais de dezenas de milhares de vítimas do terror. Entretanto, as suas localizações são desconhecidas, tendo sido mantidas em segredo tanto pelo regime stalinista quanto pelos governos capitalistas de Yeltsin e Putin, que emergiram da restauração do capitalismo pela burocracia stalinista.

Memoriais em Sandarmokh

A campanha contra Dmitriev é motivada sobretudo pelo medo do Estado russo do interesse crescente pela verdade histórica sobre a Revolução de Outubro e o terror stalinista.

A campanha provocou choque e revolta amplos. Uma carta aberta à Suprema Corte da Carélia, de 27 de setembro, opondo-se à perseguição de Dmitriev, foi assinada por 250 intelectuais, artistas, historiadores, jornalistas e residentes de Carélia. Entre eles estão Oleg Khlevniuk, um conhecido historiador, o diretor Andrei Zvyagentsev e a escritora Liudmila Ulitskaya.

Em 17 de outubro, um filme sobre Dmitriev de Kirill Safronov, um jovem documentarista, foi lançado no Youtube. O filme é baseado em discussões com jovens historiadores e artistas que haviam sido influenciados pelo trabalho de Dmitriev e pelo seu compromisso de continuá-lo com todas as suas forças.

Outro documentário do Youtube de 23 de julho, intitulado "O que está por trás do caso de Dmitriev?", discutiu o seu trabalho e as acusações de abuso sexual de um menor contra ele. O filme já foi assistido por mais de 1,2 milhão de pessoas até o momento desta publicação. No documentário, um historiador do Museu Gulag, em Moscou, aponta que o número de visitantes ao museu está crescendo a cada ano. Uma vizinha de Dmitriev entrevistada para o documentário ressaltou que ela e a maioria dos seus vizinhos estavam firmemente convencidos de sua inocência e impressionados com a tenacidade com que ele fazia o seu trabalho mesmo diante da perseguição política.

As entrevistas nestes filmes ressaltam fortemente o fato de que o terror stalinista continua sendo uma ferida aberta na sociedade, mesmo que já tenham se passado mais de 80 anos desde o auge do Grande Terror de 1937-1938. Embora praticamente todas as famílias tenham sido afetadas pela campanha de assassinatos em massa, e a população de regiões e cidades inteiras seja freqüentemente composta, em grande parte, de descendentes daqueles que foram deportados, exilados e presos, muitas vezes não há compreensão do que aconteceu e, mais importante ainda, de porque aconteceu.

Essa falta de compreensão histórica é ela própria o produto da contrarrevolução stalinista contra a Revolução de Outubro de 1917. Durante a perestroika, enquanto a burocracia stalinista estava prosseguindo com a restauração do capitalismo, um número significativo de documentos previamente inacessíveis foi publicado. Eles forneceram, pela primeira vez desde os anos 1930, indícios tanto do escopo do terror quanto de sua dinâmica. Os documentos publicados na época formaram a base para o estudo da Oposição de Esquerda por Vadim Rogovin. Foi também nessa época que Dmitriev e outros iniciaram o seu trabalho sobre o terror na Carélia.

Entretanto, o impacto dos crimes do stalinismo sobre a consciência socialista e histórica da classe trabalhadora provou ser tão profundo que a burocracia foi capaz de resolver a sua profunda crise sob os seus interesses: ela agiu para destruir a União Soviética em 1991 e restaurar completamente o capitalismo.

O fato de que a burocracia stalinista foi capaz de liquidar todos os ganhos da Revolução de Outubro atrasou temporariamente um completo acerto de contas histórico e político com o stalinismo.

Hoje, porém, essas questões históricas estão ressurgindo com força total: conforme o capitalismo mundial mergulha na maior crise desde os anos 1930, com a desigualdade social atingindo níveis recordes e o perigo cada vez maior da guerra, a questão da Revolução de Outubro – e da contrarrevolução stalinista contra ela – está na ordem do dia. Esses processos objetivos estão por trás tanto do crescente interesse por essas questões históricas, como da resposta histérica da oligarquia russa ao trabalho de Dmitriev, por mais politicamente limitada que ele tenha sido, e a promoção e a justificativa incessante dos crimes de Stalin na mídia e por pseudo-historiadores. A pandemia, à qual a oligarquia russa respondeu com a política de "imunidade do rebanho", – assim como as classes dominantes internacionalmente – só intensificou e acelerou ainda mais essas dinâmicas.

A questão decisiva para trabalhadores, intelectuais e jovens é entender que o stalinismo não representou a continuação, mas a reação contra a Revolução de Outubro. A continuidade de 1917 e do marxismo não foi representada por Stalin, mas pelo seu principal oponente, Leon Trotsky, que fundou a Oposição de Esquerda em 1923 e a Quarta Internacional em 1938, antes de ele próprio ser assassinado por um agente stalinista em 1940. O Grande Terror foi, acima de tudo, um genocídio político de todos aqueles que participaram e lideraram a revolução, que lembravam das suas principais figuras – Lenin e Trotsky – e que dedicaram as suas vidas à luta pelo socialismo. A assimilação dessas experiências históricas continua sendo decisiva para a orientação política da classe trabalhadora na Rússia e internacionalmente.

Conforme Trotsky observou em 1937, escrevendo sobre os Processos de Moscou em exílio no México:

Ninguém, sem excluir Hitler, deu golpes tão mortais contra o socialismo como Stalin. Isso não é surpreendente, pois Hitler atacou as organizações da classe trabalhadora por fora, enquanto Stalin o fez por dentro. Hitler ataca o marxismo. Stalin não só o ataca, mas o prostitui. Nem um único princípio permaneceu despoluído, e nenhuma idéia deixou de ser danificada. Os próprios nomes do socialismo e do comunismo foram cruelmente prejudicados, desde o dia em que policiais descontrolados, ganhando o seu sustento com um passaporte "comunista", deram o nome de socialismo ao seu regime policial. ... A memória da humanidade é magnânima no que diz respeito à aplicação de medidas duras para alcançar grandes objetivos históricos. Porém, a história não perdoará uma única gota de sangue derramada em sacrifício ao novo deus da vontade própria e do privilégio. A sensibilidade moral encontra a sua maior satisfação na convicção imutável de que a vingança histórica corresponderá ao tamanho do crime. A revolução abrirá todos os compartimentos secretos, revisará todos os julgamentos, reabilitará todos os caluniados, levantará memoriais para as vítimas da arbitrariedade e cobrirá com eterna infâmia os nomes dos executores. Stalin sairá de cena carregando todos os crimes que cometeu – não apenas como coveiro da revolução, mas como a figura mais sinistra da história da humanidade.

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