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Trabalhadores são expostos a contaminação e morte enquanto indústria da carne tem lucros recordes no Brasil

O Brasil iniciou 2021 rompendo o terrível marco de 195 mil mortes por COVID-19. Esse índice, superado apenas pelos Estados Unidos, está crescendo em ritmo feroz, com o maior número de mortes desde meados de agosto tendo sido registrado em 29 de dezembro, 1.224 no total.

Em meio a essa escalada mortal, os locais de trabalho e atividades econômicas em geral permanecem inteiramente abertos. Um recente surto de coronavírus numa unidade frigorífica no sul do Brasil acende um alerta aos graves perigos enfrentados atualmente pela classe trabalhadora.

No último 19 de dezembro, um frigorífico da Seara em Seberi, no norte do Rio Grande do Sul, recebeu uma determinação judicial de testar todos seus funcionários após 127 deles terem testado positivo para COVID-19. A unidade emprega 1.241 trabalhadores no total, que foram potencialmente expostos ao vírus.

Um conjunto de condições criminosas de operação da unidade levaram à contaminação em massa dos trabalhadores. O Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul (MPT-RS), que ajuizou a ação contra a empresa, destacou entre elas: “[E]mpregados sintomáticos que continuaram trabalhando; ausência de determinação de afastamento das atividades em 157 casos de atendimentos ambulatoriais relacionados a sintomas compatíveis com a COVID-19, dos quais 19 eram referentes a integrantes de grupos de risco; determinação de afastamentos por períodos inferiores a 14 dias em 43 casos, dos quais 32 permaneceram menos de 10 dias afastados; aumento do ritmo e da jornada de trabalho, chegando a jornadas de mais de 12 horas diárias...”.

Em novembro, a empresa passou a convocar gestantes de até 27 meses ao trabalho. Consta na ação judicial que duas trabalhadoras grávidas foram atendidas no ambulatório da empresa, apresentando sintomas de COVID-19, e foram orientadas a continuar trabalhando. O mesmo ocorreu com trabalhadores portadores de comorbidades como obesidade, hipertensão e doenças cardíacas.

Trabalhadores atendidos pelo sistema de saúde municipal, que aguardavam em licença médica pelo resultado de seus exames de COVID-19, foram assediados pela empresa, submetidos a “testes rápidos” em suas próprias casas, e forçados a voltar ao trabalho se o resultado fosse negativo. Houve casos de trabalhadores que testaram negativo, retornaram à fábrica, e depois tiveram contaminação confirmada no teste RT-PCR, “uma conduta grave que propicia a explosão de contaminações na unidade”, notou o MPT.

De forma sinistra, esses fatos revelam como a administração da empresa adotou conscientemente uma política criminosa que leva à contaminação sistemática dos trabalhadores. Essa política não se restringe, contudo, à fábrica de Seberi.

Sobre o funcionamento da indústria frigorífica como um todo, a ação do MPT observa: “Apesar de ser atividade em que a higiene é essencial, o foco destas medidas sanitárias é no produto, e a forma em que o trabalho é desenvolvido nestas empresas expõe os trabalhadores a risco de contágio consideravelmente superior ao exposto em outras atividades: conta com grande número de empregados, os quais laboram de forma notadamente próxima, em ambientes fechados, úmidos e climatizados, são transportados por veículos do réu, em confinamento de longas distâncias e podem aglomerar-se tanto no início como término do expediente (e nas saídas para descanso)”.

As unidades frigoríficas foram responsáveis por disseminar a COVID-19 não apenas entre seus próprios trabalhadores, mas por municípios e regiões inteiras do Brasil. No Rio Grande do Sul, que concentra parte importante dessa indústria, esses impactos são gritantes.

O World Socialist Web Site falou com a procuradora do MPT-RS que ajuizou a ação contra a Seara, Priscila Dibi Schvarz, também integrante do projeto nacional de frigoríficos do MPT. A procuradora afirmou: “O primeiro caso em vários municípios do Rio Grande do Sul foi de trabalhadores de frigoríficos, antes mesmo dos profissionais de saúde. Nós cruzamos os vínculos de emprego no setor com casos de COVID-19, e era muito nítida a relação entre trabalhadores do setor e casos confirmados.

“Hoje nós temos 54 frigoríficos com casos confirmados no estado desde o início da pandemia. São 10.448 casos [de trabalhadores contaminados] no total. Ocorreram 10 óbitos diretos e 11 secundários.”

Mesmo com uma série de frigoríficos tendo adotado testagens de rotina, orientadas pelo MPT, esses números subestimam enormemente a realidade. “Como em qualquer atividade, nem todas as pessoas são testadas, é um percentual”, disse Schvarz. “A gente não consegue ver quantos trabalhadores já foram expostos; é muito provável que tenhamos sim essa distinção. Até porque quando fizemos testes sorológicos de longo prazo, os resultados eram até 10 vezes maiores”.

O surto na unidade da Seara em Seberi coincidiu com um novo aumento de casos no Rio Grande do Sul, que teve início no fim de novembro. Em 23 de dezembro, o estado registrou o maior número de casos e mortes em um único dia desde o início da pandemia — 6.362 novos casos e 144 mortes.

A inter-relação entre esse novo ascenso de contaminações e a atividade dos frigoríficos é reconhecida pela própria Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul. Em seu boletim epidemiológico de 16 de dezembro, apontou que as três regiões com “maiores taxas de incidência de casos confirmados... também concentram 71% dos surtos ocorridos em frigoríficos e laticínios”.

Segundo Schvarz, o grupo JBS, o maior em processamento de carnes do mundo e detentor da Seara, é o mais resistente em adotar as recomendações emitidas pelo MPT no final de março. “Ajuizamos 29 ações civis públicas [contra frigoríficos], sendo 20 do grupo JBS-Seara. Só assim empresas como a JBS realizaram testagens”, ela disse. Outros cem frigoríficos, por outro lado, firmaram os chamados Termos de Ajuste de Conduta (TAC).

O objetivo declarado do MPT com o esses TACs não é interferir na produção capitalista, mas garantir que obedeça certos padrões de funcionamento. “Num primeiro momento, o setor entendeu que eram medidas inexequíveis”, disse Schvarz, “mas, com o crescimento dos casos, elas passaram a ser implementadas de forma mais receptiva... Essas medidas todas, que diziam que impediria a produção, não tiveram nenhum impacto produtivo. Ao contrário, o setor contratou muitas pessoas”.

Para não interferir na produção, as medidas toleram práticas que são eminentemente inseguras. Num primeiro momento, as TACs determinavam que os trabalhadores utilizassem máscaras de tecido por haver uma carência das máscaras adequadas (do tipo PFF2) no Brasil.

Elas sequer preveem o fechamento de uma unidade no caso de contaminações confirmadas entre os trabalhadores. “Depende, se há um número X de casos e as pessoas estavam em atividade, pode ser que haja uma paralisação”, a procuradora afirmou. “Mas quando o sistema é bem controlado numa empresa, não é necessário o fechamento”.

Schvarz ainda notou que empresas têm reclamado ao MPT que “muitos trabalhadores acabam cansando [das medidas], e percebe-se que gera um aumento [de contaminações]”. Basta imaginar como é manter essas estritas medidas enquanto se realiza um dos trabalhos mais árduos, em condições de intensificação da produção e sob jornadas extenuantes de até 12 horas.

Por que, apesar de reconhecido o seu potencial homicida, tais unidades são mantidas funcionando sob estas condições? Os interesses fundamentais de duas classes sociais distintas encontram-se aqui em conflito inconciliável.

Do ponto de vista dos capitalistas, as mortes em massa da classe trabalhadora representam não mais do que efeitos colaterais da geração massiva de lucros. Segundo a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), “[a] balança comercial do agronegócio brasileiro teve superávit comercial e exportações recordes no acumulado de janeiro a novembro de 2020”. Celebrando um saldo positivo de US$ 81,9 bilhões, destacam como principal produto de exportação, depois da soja, a carne bovina.

O grupo JBS, em particular, encerrou o terceiro trimestre de 2020 com um lucro líquido 778,2% maior do que o registrado no mesmo período em 2019. Seu Ebtida (lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização) teve alta de 35%, puxada pelas operações da JBS USA Pork, com alta de 64,7%, e pela Seara, com alta de 55,4%.

Os interesses socialmente destrutivos dessa oligarquia capitalista encontram seu porta-voz mais direto no presidente fascistoide Jair Bolsonaro. Em 28 de dezembro, durante um “evento beneficente”, Bolsonaro atacou jornalistas por usarem máscaras: “Agora não adianta se esconder do vírus, ...esse vírus vai ficar em nós a vida toda. Nós não aguentamos mais o lockdown, mais medidas restritivas que quebram a economia”. Há um paralelo sinistro entre essa declaração profundamente sociopata e a política assassina adotada em frigoríficos como o de Seberi.

Os interesses da classe trabalhadora, por outro lado, não encontram expressão em nenhuma força política oficial. A covarde oposição burguesa a Bolsonaro, protagonizada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), é incapaz de desafiar a política central do governo em relação à pandemia, pois também defende que o interesse social de preservar vidas não deve interferir na economia capitalista.

Em sua primeira declaração pública em meses, em 17 de dezembro, os sindicatos que clamam representar os trabalhadores dos frigoríficos, a CNTA e a CONTAC, exigiram que o governo priorize a vacinação dos trabalhadores do setor. Seu argumento fundamental, e o único, é que produção nos frigoríficos não pode parar.

Encobrindo a política de assassinato social da classe dominante, a CNTA e a CONTAC argumentam que “as indústrias de alimentos, durante este período de pandemia, não apenas mantiveram suas produções, como elevaram o percentual de produtividade”, confundindo criminosamente a perseguição capitalista por mais lucros com a “responsabilidade de garantir alimentos, para manutenção da segurança alimentar brasileira”.

Enquanto um calendário de vacinação é aguardado, milhares de vidas são perdidas diariamente no Brasil. A situação exige uma ação emergencial da classe trabalhadora:

  • Locais de trabalho não essenciais devem ser fechados;
  • A definição de qual produção é essencial deve ser feita pelos próprios trabalhadores, com base nos interesses da sociedade e não da acumulação individual;
  • As condições de realização dessa produção devem garantir a total segurança dos trabalhadores e suas famílias;
  • Protocolos de segurança devem ser elaborados com o auxílio de cientistas e profissionais médicos e devem ser implementados sob o controle dos trabalhadores.

Para serem implementadas, essas medidas exigem dos trabalhadores o rompimento com o controle dos sindicatos e a criação de comitês de base de segurança do trabalho nos frigoríficos e demais locais de trabalho. A tarefa mais fundamental é desenvolver um movimento da classe trabalhadora para pôr fim ao capitalismo e tomar as rédeas da sociedade em suas próprias mãos.

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