Português
Perspectivas

O que teria acontecido se a multidão fascista de Trump tivesse sequestrado reféns?

Publicado originalmente em 16 de janeiro de 2021

Em 6 de janeiro de 2021 – em um evento sem precedentes na história dos Estados Unidos – milhares de extremistas de direita, mobilizados por várias organizações supremacistas brancas, antissemitas, anti-imigrantes neonazistas e fascistas – invadiram o Capitólio em Washington DC. Eles pretendiam assassinar e tomar como reféns aqueles que consideravam ser inimigos de Donald Trump, incluindo os congressistas democratas e até mesmo o vice-presidente Mike Pence. Programado para coincidir com a certificação dos resultados da votação do Colégio Eleitoral pelo Congresso, o objetivo do ataque era impedir o reconhecimento oficial da eleição de Joseph Biden como presidente dos Estados Unidos.

Se os objetivos táticos da operação tivessem sido alcançados, o resultado político não teria sido apenas o atraso da certificação da votação do Colégio Eleitoral exigida pela Constituição. Tendo assassinado congressistas e feito reféns, os líderes fascistas teriam então exigido que o resultado da votação nos estados que Trump falsamente alegou ter ganho – como Geórgia, Arizona, Wisconsin, Michigan e Pensilvânia – fosse anulado. As exigências dos sequestradores teriam recebido apoio esmagador do Partido Republicano, para não mencionar do próprio Trump. Inspiradas pelo poder exercido pelos líderes fascistas em Washington DC, com grandes chances, operações parecidas teriam sido realizadas em várias capitais dos Estados Unidos.

Pessoas na galeria da Câmara enquanto os manifestantes tentam invadir o Congresso na quarta-feira, 6 de janeiro de 2021, em Washington [Crédito: AP Photo/Andrew Harnik]

Enquanto o drama dos reféns se desenvolvesse, com a aproximação da data oficial da posse e inúmeras vidas em jogo, Biden e o Partido Democrata teriam sofrido uma tremenda pressão para acatar pelo menos algumas das exigências dos sequestradores, impedir um banho de sangue e reabrir o governo.

O cenário descrito acima não aconteceu, pois a insurreição fascista não conseguiu atingir seus objetivos táticos. Os líderes perderam o controle de sua multidão, que, após ter invadido o Capitólio, desperdiçou um tempo precioso tirando selfies e saqueando o edifício. Os congressistas escaparam antes que pudessem ser assassinados ou tomados como reféns.

Mas, independentemente do resultado, o evento em si foi uma tentativa de golpe de estado. Negar esse fato óbvio significa contornar e distorcer a realidade, servindo para encobrir os imensos perigos políticos que persistem, e que se agravarão nos próximos meses.

Após a tentativa de golpe, conhecidos jornalistas independentes como John Pilger, Glenn Greenwald, Chris Hedges e Joe Lauria (do Consortium News) estão promovendo uma visão perigosamente equivocada dos eventos de 6 de janeiro, segundo a qual o que ocorreu em Washington não foi mais do que um ato garantido pela Constituição de liberdade de expressão que simplesmente saiu do controle. O evento não deveria ser descrito como um golpe ou uma insurreição. Além disso, o próprio Trump estaria sendo falsamente acusado e punido. A principal ameaça aos direitos democráticos do povo americano em 6 de janeiro não aconteceu através da invasão ao Congresso, mas sim da suspensão da conta de Trump do Twitter. Nessa narrativa desorientada, Donald Trump seria muito mais uma vítima do que o responsável pelo que aconteceu.

O artigo de Joe Lauria em 13 de janeiro no Consortium News, “Trump Impeached Amid Efforts to Cancel Him” (“Trump sofre impeachment em meio a esforços para cancelá-lo”), resume esses argumentos. Rejeitando o significado do golpe de 6 de janeiro, Lauria se coloca como advogado de Trump e seus co-conspiradores. Ele tenta provar, através de uma leitura atenta do discurso de Trump perante milhares de seus apoiadores, que suas palavras ficam aquém do necessário para a condenação pelo Senado, no iminente julgamento de impeachment, nos termos do Artigo I, Seção 3 da Constituição dos EUA.

Lauria alega que o discurso de Trump pode ser lido como “apenas as palavras de luta de um político”, que não tinham a intenção de causar violência, muito menos de levar a um golpe:

Quando [Trump] disse que os democratas eram “implacáveis” e “está na hora de alguém fazer algo a respeito”, ele estava se referindo a Pence e aos republicanos que enviavam o voto do colégio eleitoral de volta aos estados-chave. Esse é todo o contexto de seu discurso de mais de uma hora. Quando ele disse “você tem que fazer seu povo lutar”, ele se referia aos deputados republicanos que teriam que ser priorizados.

Sem nenhuma prova até agora de que Trump tivesse conhecimento prévio do plano para tomar o Capitólio, ou provas de instruções diretas dele para fazê-lo, pareceria difícil condená-lo em um tribunal, mas talvez não em um julgamento político no Senado.

A última frase implica que a condenação de Trump seria um abuso político de justiça.

Não apenas Trump, insiste Lauria, mas também seu filho, Donald Trump Jr., tinha apenas objetivos pacíficos em mente. Donald Jr., escreveu, só estava apelando aos republicanos no Congresso para “votar contra a certificação dos resultados eleitorais de estados-chave” quando disse à multidão que era necessário provar “se você é um herói ou um nada”. Quanto ao advogado pessoal fascista de Trump, Rudolph Giuliani, Lauria diz que seu apelo para um “julgamento por combate” se referia apenas a “continuar a contestar os resultados da eleição por computador” nos tribunais.

Não há, concluiu, “nenhuma prova até agora de que Trump tivesse conhecimento prévio do plano para tomar o Capitólio”. É espantoso que Lauria possa conciliar uma conclusão tão ingênua com décadas de experiência como jornalista investigativo.

Lauria continua insistindo que os eventos não podem ser descritos como um “golpe de Estado”, pois isso se refere à “derrubada de um governo existente e sua substituição por novos governantes”. Isso, no entanto, foi exatamente o que os conspiradores procuraram fazer: mudar o resultado da eleição e impedir a posse de Biden. Lauria, entretanto, afirmou: “O pequeno número de manifestantes que podem ter sonhado com um golpe tinha apenas o palácio presidencial ao seu lado e nada mais”. [itálicos adicionados]

“Apenas o palácio presidencial”?!

Num esforço ainda mais absurdo para negar a gravidade dos acontecimentos de 6 de janeiro, Lauria proclama: “Foi uma tentativa de assumir o controle do Capitólio, não do país”. Os insurreicionistas tentaram apenas tomar Washington DC! Essa notícia certamente será um alívio para os cidadãos que vivem em Los Angeles, Houston, Chicago, Detroit, Boston e Nova York.

Lauria continua a justificar os esforços dos republicanos para anular os resultados da votação do Colégio Eleitoral, a própria manobra que forneceu o pretexto político para o ataque ao Capitólio, afirmando que “aqueles republicanos estavam completamente no seu direito de contestar os resultados e estimular o debate e a votação em ambas as casas. Sugerir que esse direito constitucional representou um incitamento ou apoio ao distúrbio é um enorme exagero”. Não parece incomodar Lauria o fato de os republicanos terem questionado o resultado eleitoral baseado em mentiras absolutas de uma eleição roubada (ou seja, a versão de Trump da explicação “punhalada nas costas” de Hitler sobre a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial).

A defesa de Lauria de Trump ignora a linha do tempo e o contexto político mais amplo das ações de Trump. Ele esqueceu que em 1º de junho do ano passado, Trump usou a polícia militar contra os manifestantes em Washington e ameaçou invocar a Lei de Insurreição e mobilizar os militares em todo o país. Ele não faz referência ao complô para sequestrar e assassinar os governadores de Michigan e Virgínia, expostos em outubro, os quais foram motivados pelo chamado de Trump para “Liberar Michigan!” Ele também desconsidera que os principais aliados de Trump apelaram repetidamente ao presidente para declarar a lei marcial a fim de tomar o poder se ele perdesse a eleição.

A negação de que 6 de janeiro foi uma tentativa de golpe político está sendo acompanhada pela alegação de que a suspensão da conta de Trump no Twitter foi a mais séria ameaça aos direitos democráticos, mais perigosa do que qualquer coisa feita por seus apoiadores.

Em uma entrevista em 11 de janeiro no Democracy Now!, o jornalista Chris Hedges recorreu ao mesmo tipo de formalismo verbal para isentar Trump da tentativa de golpe. “Acho que, claramente, se lermos friamente o que Trump disse a seus apoiadores, ele não pediu que as pessoas invadissem o Capitólio e fizessem as pessoas reféns.”

Em todo caso, deve-se opor à ação tomada pelo Twitter contra Trump: “Mas responder, em essência, empoderando essas corporações privadas para servir como censores sobre bilhões de pessoas fará com que isso se volte a nós para nos assombrar. E vemos isso, porque não é apenas Trump que eles visam. É sempre, no final, a esquerda que paga por este tipo de censura.”

É verdade que o principal alvo da censura do Estado e das empresas é a esquerda socialista e a classe trabalhadora. O Partido Socialista pela Igualdade não defende a demanda de banir ou colocar na ilegalidade os partidos de direita por parte do Estado capitalista. Entretanto, a esquerda socialista e aqueles que se preocupam com a defesa dos direitos democráticos não veem como seu dever garantir a “liberdade de expressão” de um presidente fascista que está dirigindo uma multidão armada que procura anular uma eleição.

Ao justificar a defesa do direito de Trump à liberdade de expressão sem restrições – mesmo que isso signifique, na prática, permitir que ele mobilize e dirija seus seguidores por todo o país em meio a uma insurreição fascista –, Lauria, Hedges e outros lembram seus leitores de todos os terríveis crimes cometidos pelo imperialismo americano com o apoio do Partido Democrata. John Pilger, por exemplo, chama a atenção para os crimes que os Estados Unidos estão cometendo contra os Houthis no Iêmen. Isso nada mais é do que demagogia pequeno-burguesa. Pilger não explica como o estabelecimento de um regime neofascista nos Estados Unidos melhorará a conduta da política externa americana no Iêmen ou em qualquer outro lugar.

Uma análise consciente de classe, fundamentada no marxismo e na experiência histórica do movimento socialista internacional, explicaria que a ação do Twitter ocorreu no contexto de uma crise profunda dentro do Estado burguês, na qual sua fração semi-constitucional altamente fragilizada, ameaçada de ser derrubada violentamente, procurou impedir Trump de mobilizar seus seguidores fascistas. Por que os opositores de esquerda da tentativa de golpe devem se opor à interrupção das comunicações de Trump? De fato, se o Twitter não tivesse tomado essa ação, os socialistas interpretariam muito corretamente sua “neutralidade” como uma cumplicidade aberta com os conspiradores.

Além disso, como parte de seus próprios esforços independentes para mobilizar a oposição da classe trabalhadora à conspiração de Trump, os socialistas fariam um chamado aos trabalhadores do Twitter e outros funcionários da indústria de tecnologia para cortar o acesso dele às redes sociais e interromper os meios de comunicação de seus seguidores armados. Havia, de fato, muitas exigências dos funcionários do Twitter para justamente realizar tal ação, o que foi um fator significativo na decisão do Twitter de desativar a conta de Trump. Um artigo na Vanity Fair, no início desta semana, observou que “o Twitter poderia ter tido sua própria insurreição se não tivesse banido Trump”. Hedges considera tais exigências dos funcionários uma violação inadmissível da liberdade de expressão?

O World Socialist Web Site não é indiferente às consequências de uma derrubada fascista bem sucedida do governo dos EUA. O perigo representado pela “Big Tech” e pelo Partido Democrata não será resolvido aceitando passivamente, sob a cobertura da defesa incondicional da liberdade de expressão, o estabelecimento de um regime autoritário liderado por Trump, apoiado por organizações fascistas. Nosso slogan no meio de um ataque fascista ao Congresso não é: “Tire as mãos de Hitler! Liberdade de expressão para Trump!”

Ao responder aos argumentos falsos e politicamente desorientados de Lauria, Hedges e outros, não é nossa intenção negar ou desacreditar suas contribuições jornalísticas ao denunciar os crimes do capitalismo americano. No entanto, a resposta deles a essa enorme e inédita crise é profundamente errada e deve ser oposta.

Este tipo de minimização serve não apenas para dar uma cobertura política a Trump, mas também semeia complacência na força da democracia americana. Mesmo com o fracasso tático, as consequências da insurreição serão duradouras. O resultado do golpe, auxiliado pelos esforços dos Democratas para encobrir a conspiração, será a integração da extrema direita na estrutura política americana.

É por isso que a questão crítica é a mobilização política da classe trabalhadora. Ela não pode deixar que essa crise seja resolvida pelos democratas, os republicanos ou, aliás, a “Big Tech”.

O significado dos eventos de 6 de janeiro deve ser esclarecido. As lições políticas devem ser tiradas. Somente assim será possível educar os trabalhadores e a juventude, construir um verdadeiro movimento de massas socialista e defender os direitos democráticos e sociais da esmagadora maioria da população.

Loading